sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Uma questão de família

A recente campanha para a Prefeitura de São Paulo introduziu no debate político o questionamento sobre a condição familiar de um dos candidatos. É casado? Tem filhos? Para evitar dúvidas, alguns cronistas têm feito suas declarações a respeito, como o Affonso Romano de Sant’Anna. O dono deste blog entra na corrente: é casado e tem filhos.

O filhão, Lauro Antonio, com Márcia Cristina e Bárbara Christina (Babi)

Babi, desfilando sua graça

Aos dois anos e quatro meses, Babi, a alegria da casa, encontra-se em pleno processo de descoberta do mundo. Dia destes, experimentou pastel pela primeira vez. Ficou maravilhada: “tem comidinha dentro”.

A filhota, Laura Isabel, com dois gatos tem direito a exposição dupla. O felpudo chama-se Thomas e o quadro ao fundo foi pintado por sua mãe (dela)

E aí com João, ás do cross country

Estabelecendo-se na carreira

Márcia com sua afilhada Camila.

Por conta das obrigações familiares, Márcia, minha mulher, começou no Piauí sua trajetória de madrinha. O ápice aconteceu em Brasília, quando à condição de avó agregou também a de madrinha de Babi. “Vó dinda”, portanto. Mas, na capital já tinha antecedente como “dinda”: ela também é madrinha de Camila, filha de Lilian, professora da Universidade Católica de Brasília, e de Henrique, ínclito chileno. Camila freqüenta, desde pequenininha, a chácara da madrinha. No início do ano esteve com sua mãe nos Estados Unidos. Os familiares de lá programaram uma viagem a Orlando, na Flórida. Um sobrinho antecipou o roteiro: “vamos pra Disney”. Camila corrigiu: “Não é Disney, é Dinda, nós vamos pra casa da Dinda”.

Pois, pois...

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Natal

Emanuel Medeiros Vieira

O menino mítico não submerge,
inunda-me: natal.

Ele contempla um presépio imemorial,
espreita a eternidade.

Natal:
oferendas, rei mago, missa do galo:
o menino está em paz.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

“O Pão” da Padaria Espiritual

No disco “Berro”, de 1976, duas músicas do cantor Ednardo possuem referências literárias: “Padaria Espiritual” e “Artigo 26”. Trechinho de “Padaria Espiritual”: Nessa nova padaria espiritual / nessa nova palavra de ordem geral / eu faço o pão do espírito / e você cuida do delito / de comer, de comer. Padaria Espiritual foi uma confraria literária cearense que existiu no período de 1892 a 1898. Era uma “sociedade de rapazes de Letras e Artes [com a finalidade de] fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos em geral”. O “pão de espírito” consistia no jornalzinho “O Pão”.

Em “Artigo 26” (que trata do direito à instrução na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU) Ednardo descreve o processo de distribuição do jornalzinho: Lá vai o padeiro / entregando o pão / de casa em casa / naquela não. “Naquela não” porque certamente os rapazes da Padaria Espiritual teriam muitos desafetos.

Segundo o artigo 2º do Estatuto da Padaria Espiritual: “A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mór (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de padeiros”.



Como todo bom tema cultural, a Padaria Espiritual é objeto de produção acadêmica. De forma não exaustiva podem ser citados: “O pão... da padaria espiritual”, dissertação de mestrado da Regina Cláudia Pamplona Diniz, apresentada à UFRJ; “O Pão... da Padaria Espiritual e sua produção crítica”, dissertação de mestrado, UNESP; “A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará”, tese de doutorado de Rafael Sânzio de Azevedo, UFRJ; além do livro “Padaria Espiritual: biscoito fino e travoso”, de Gleudson Passos Cardoso.

Entre os colaboradores de “O Pão” o “eminente poeta e querido consócio” Raimundo Correia. Além de crônicas, o poeta nele publicou poesia dedicada a uma Anarda, musa de ocasião. Não teve ter sido fácil encontrar inspiração com um nome desses.

Em 1982, em uma iniciativa admirável, a Universidade Federal do Ceará conseguiu localizar todos os exemplares da coleção de “O Pão” e os publicou em uma edição fac-similar. O Reitor era o Prof. Paulo Elpídio de Menezes Neto. Se mais não tivesse feito, só por isto merecerá, oportuno tempore, um conjunto de benefícios: green card celestial, de validade eterna, asas tamanho GG e um harpa americana da Lyon & Healy, consideradas as melhores do mundo (deste).

Paulo Elpídio recentemente publicou “inconfidências@indeletáveis.com.br - os deslizes dos outros (e os nossos também)”. Editado em Fortaleza: Imprece/Oficina da Palavra. Segundo o próprio autor, as histórias do livro “mais se assemelham a uma escuta clandestina (...), de cujas revelações desfrutará o leitor o prazer de compartilhar comentários e insinuações indiscretas, malévolas, até, sobre tudo e todos”. Muito melhor do que qualquer Big Brother. Apresentando a obra, Lustosa da Costa dá conta de que, com testemunho fotográfico, lançou exemplar do “Anuário do Ceará”, de que era um dos editores, ao rio Sena para que os conterrâneos soubessem do primeiro lançamento de um livro seu em Paris.

Portanto, reitero a recomendação: ouça o disco, leia o livro. Que livro? Bem, qualquer um é melhor do que nenhum. Não encontrou o do reitor? Então leia Emanuel Medeiros Vieira. Possui cerca de 20 títulos, entre livros de contos e de poesia. Finalizando: este blog não é imparcial. Aos amigos, tudo. Aos inimigos, o rigor das críticas literárias.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Diferenças de gênero

Repassei vídeo com Rita Pavone, aos 63 anos, cantando “Fortissimo”.
Comentário de uma colega:
- Continua com aquele tremidinho na voz.
Comentário de um colega:
- Está gostosa!

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Uma homenagem aos antigos reis de Paris

Morando em Teresina, anos 70, a distância permitia volta e meia algum passeio por São Luis. Certa ocasião alugamos uma casa em uma praia afastada. Éramos três casais. De frente, o mar. Ao lado, uma senhora que nos preparava peixe frito, camarões e outros quejandos. Paradisíaco, ao pé da letra.

Na primeira viagem, praia de Ponta d’Areia, encontramos um artista popular com sua cantilena: “São Luis, São Luis / Uma homenagem aos antigos reis de Paris”... É a lembrança mais antiga que tenho de São Luis do Maranhão. Na verdade, a homenagem é a um rei só. O local da cidade foi colônia francesa e seu nome deriva do forte Saint Louis, ali estabelecido, por referência ao rei de França Luis XIII. Os portugueses mantiveram o nome.

Um pouco além, na baía de Mogúncia, em 1859, a bordo do navio São Luis, nasceu Raimundo Correia, ícone do movimento parnasiano, cuja poesia mais conhecida, “As Pombas”, toda criança de colégio sabia de cor. Como convinha a um maranhense de estirpe, faleceu em Paris, França.

O Maranhão é uma terra fértil para a literatura. Gonçalves Dias nasceu em 1823. Mais adiante, em 1833, nasceu Sousândrade, Joaquim de Sousa Andrade, poeta erudito formado em letras pela Universidade de Sorbone. Sua obra teve reconhecimento tardio, graças basicamente à edição crítica de seu principal poema, “Guesa Errante”, por Humberto de Campos. Entre os contemporâneos, Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi e José Chagas. Este último, embora nascido na Paraíba, é o grande intérprete da São Luis de hoje.

“A janela abre a solidão da vida” (José Chagas)

Voltei a São Luis, por razões de serviço, após cerca de 30 anos. Bati muita perna nas ruas do centro histórico, procurando por dois sebos: “Poeme-se” e “Papiros do Egito”. Seria uma tarefa trivial não fosse o fato de a rua de referência ser conhecida por três nomes distintos. Paciência...

Em uma das ladeiras, na janela aberta e gradeada de uma casa de esquina, uma velha senhora em pé olhava para o nada. Um olhar de imensa tristeza.

Janela gradeada poderia, em princípio, receber duas interpretações. Impedir de entrar ou impedir de sair. A última acepção me remete à terra natal de minha mulher, Oeiras, no Piauí, onde, com o alto índice de consangüinidade nos casamentos (isto, gente, no começo do século XX), era freqüente ter em casa um cômodo gradeado para o “louco da família”. Quem tiver interesse em um episódio com esta circunstância, desde que não seja noviça em um convento, deve ler “O rio subterrâneo”, de O.G. Rêgo de Carvalho, um grande autor piauiense. Aliás, mesmo sem interesse na circunstância, ainda assim deve ler O.G. Rêgo de Carvalho.

A janela gradeada da velha senhora seguramente serviria para impedir de entrar. A insegurança urbana está por toda parte. Para ela não teria significado impedir de sair. Ela já estrava presa em si mesma. Sabe-se lá desde quando.

Mas, São Luis é a cidade dos mirantes. Mirante, segundo a descrição do Houaiss, é uma “pequena construção geralmente sobre um edifício de onde se goza a vista em redor”. Mirantes estão em Ferreira Gullar: “Desconheço a angústia /que alucina as sombras / dentro do mirante”. Mirantes estão em Bandeira Tribuzi: “Quero ler nas ruas, fontes, cantarias, torres e mirantes, igrejas, sobrados, nas lentas ladeiras que sobem angústias, sonhos do futuro, glórias do passado”. Sobretudo, porém, os mirantes estão em “Os canhões do silêncio”, de José Chagas:

Só o mirante é que sabe
quantas noites acumularam estrelas
em olhares perdidos no espaço
e que agora estão perdidos no tempo
cegos ou iluminados de tudo


Por onde andei, muita gente andou. Aurora da Graça Almeida é mais intensa: “Tantas escadas / e ladeiras pra subir / tanto calor / escondido nos telhados / tanta febre / explodindo no meu peito”.

É isto aí.

Minha filha Laura Isabel foi gerada em São Luis do Maranhão. Há-há.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

É dando que se recebe (São Francisco)

A revista do Correio Braziliense, edição de 26/10/2008, publicou uma matéria com o título “Vou ali e já volto (ou não!)”, abordando experiências de quem “deu um tempo” e realizou uma “viagem ao centro de si mesmo”. O texto comenta o livro Comer, rezar, amar, da jornalista americana Elizabeth Gilbert. Na entrevista que compõe a matéria, diz Elizabeth Gilbert: “Um ritual que faço todos os dias antes de dormir é escrever em um pedaço de papel o momento mais feliz daquele dia que vivi”.

A idéia é muito interessante. Principalmente porque nos atuais dias depressivos a tendência é de enfatizar o sufoco, o tédio, estas coisas. Também porque felicidade não dá boa literatura.

Experimentando a idéia, registro que meu dia de ontem teve dois momentos expressivos. No primeiro, ganhei de uma colega, Flávia Lacerda, o livro A última grande lição – o sentido da vida, de Mitch Albom. A dedicatória foi comovente: “Toda vez que me chama para ajudá-lo em um conserto da área de informática, ou mesmo quando me pergunta sobre música, ou quando surge com um CD de pura música boa, o senhor não avalia o bem que me proporciona, o quanto me sinto bem por poder compartilhar minhas idéias e impressões com alguém que só tem a me ensinar e acrescentar como pessoa”.

No segundo momento, foi minha vez de dar um livro. Encontrei, em meu confuso acervo (algum dia terei prateleiras e estantes na medida das minhas necessidades), um exemplar de The Future of Man, de Teilhard de Chardin, padre jesuíta, filósofo e palentólogo. Teilhard tentou a ponte entre ciência e religião. Foi incompreendido pelos dois lados. Terminou seus dias em um silêncio obsequioso, recurso utilizado pela Igreja Católica quando entende que alguma voz dissonante deve estar calada. O recurso, no Brasil, foi aplicado ao nosso preclaro Leonardo Boff. O livro, em inglês, presente de um pastor amigo que realizou seu doutorado nos Estados Unidos, ultrapassa minha compreensão do idioma. Teilhard de Chardin usava muitos neologismos conceituais, além de uma escrita não propriamente simples. Não era para as minhas possibilidades. Como me dói na alma ver um livro sem o seu leitor certo, ocorreu-me a feliz idéia de ofertá-lo a outra colega, Carmen Puig, brava catalã de obstinada dedicação à Igreja Católica. Seu contentamento com o mimo foi tão altamente expressivo que lembrou a alegria que só as crianças, em sua pureza, conseguem demonstrar. Felizmente encontrei o leitor certo.

Isto posto, 2x0 para os bons momentos. Outros se seguirão. Quem viver, verá.

O Alquimista Kafka*

Emanuel Medeiros Vieira

Franz Kafka (1883-1924),
três quilos mais magro,
enigmático sorriso no canto da boca,
renasceu numa repartição do INSS,
misteriosa demanda. .
O velho Franz esperou em cadeiras mofadas,
“falta um documento” (voz do sub-burocrata mor)
“o carimbo do órgão K”,
Esperou, envelheceu.
Kafka: quieto, longilíneo, gentil e protocolar
(como o seu próprio estilo: cartorário - sutil
relatório para ser lido nas entrelinhas),
contempla uma barata passeando nas bordas
do processo, castelos sonâmbulos,
américas perdidas (inúteis caravelas),

Esperou mais – sorriso insubornável,
Franz Kafka retira-se –
plagas que não conhecemos.

* Este poema obteve o 3° lugar – concorrendo com mais de 700 trabalhos em evento de âmbito nacional – no III Varal de poesias da UNIFAMMA – Faculdade Metropolitana de Maringá, Paraná, 2008.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

POR QUE ESCREVEMOS?

Emanuel Medeiros Vieira*

Começamos escrevendo para viver e acabamos escrevendo para não morrer.
Para quem edifica palavras mal rompe a aurora, escrever é inadiável e urgente, mesmo que nada externamente nos obrigue a isso. Mas a necessidade interna é visceral, orgânica, chama e fogo, flecha, algo colado à pele.
Não conseguimos escapar desse apelo.
Escrevemos para perdurar, para vencer a poeira do tempo, para despistar a morte, para regar nossos fantasmas e (por que não?), para amar e ser amado.
A literatura é o refúgio da sinceridade num mundo de pose.
“A literatura é um apelo de fogo, onde mora meu desespero, a minha inquietação e o meu paraíso”, escreveu alguém.
Eu sei: tento escrever um hino de amor à palavra.
Qual a maior viagem (interior) que podemos fazer, senão aquela que é um mergulho no livro, nesta criação de outros mundos, nessa peregrinação às áfricas interiores?
“Se o mundo dos objetos palpáveis e vida prática, não é mais real que o mundo das ficções, dos sonhos e dos labirintos, então pode ser que o autor de artifícios verbais tenha mais direito à condição de demiurgo que qualquer outro candidato”, escreveu Samuel Titan Jr., falando sobre Borges.

Hoje, a realidade chamada virtual fica sendo mais importante que o humano propriamente dito.
Uma personalidade não aparece porque é boa, mas é boa porque aparece.
Vivemos uma mudança de época e não uma época de mudanças.
Ou está inapelavelmente decretado que não há nada mais a fazer, que o destino já rabiscou todos os destinos?
Queremos um modelo de consumidores ou de cidadãos?
Aceita-se passivamente um mundo onde são as coisas que comandam e não os valores.
Queremos pessoas abúlicas, inertes, numa globalização onde impera a uniformidade e não a igualdade?

A literatura é um sonho do eterno. Sua morte tem sido decretada diariamente.
Mas por que ela continua tão viva?
Pois há dentro do homem uma sede de infinito que nenhum modelo meramente mercantil pode saciar.

*Escritor

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Chocalho hi-tech

Eva, no Paraíso, queimou o filme de muitas mulheres. Nos primórdios da história da humanidade a mulher era vista com uma certa desconfiança e, pelo menos no caso da lei mosaica, considerada como possessão do homem. A própria Igreja Católica custou a creditar-lhe a existência de alma. Na Idade Média, por precaução, era adotado o cinto de castidade. Afinal, o espírito das mulheres seria, digamos, volúvel. Mas, como o homem poderia proteger-se?

Elino Julião tinha sua idéia a respeito. Elino Julião nasceu no ano de 1936, em Timbaúba dos Batistas, cidadezinha próxima a Caicó, região do Seridó, Rio Grande do Norte. Foi um grande compositor e intérprete de forró, xote, baião. Parceiro, entre outros, de Jackson do Pandeiro, teve músicas gravadas por Luiz Gonzaga e a escritora Rachel de Queiroz como admiradora. Em uma de suas músicas, “Amor Enchucalhado”, ele expõe sua visão particular das relações de gênero:

Quando o gado tá enchucalhado
Tá tranquilo o pastorador
Eu só teria mais sossego neste mundo
Se eu pudesse enchucalhar o meu amor


“Tranquilo” é dito como está escrito, sem trema, que, aliás, vai ser banido da língua portuguesa. Tranquilo sem trema é coisa do falar nordestino. Mas, o coitado se lamentava: “Ah! Se eu pudesse enchucalhar o meu amor / Não seria um sofredor / Procurando nas escuras”. Procurando nas escuras? A moça devia ser bem serelepe...

O chocalho a que se refere Elino Julião no Rio Grande do Sul é conhecido como “cincerro”, termo derivado do espanhol, como tantos outros. É uma espécie de sininho, colocado no pescoço dos animais para facilitar sua localização na mata. Este aparato fazia parte do cotidiano de Sebastião Barbosa, a candura em pessoa. De origem rural, foi estudar em Bagé, onde, nos anos 60, tornou-se um dedicado secretário da União Bageense de Estudantes Secundaristas. Para ele tudo era novidade na cidade grande. Ficou intrigado quando conheceu uma menina vesga: “ela olhava pra ti e, ao mesmo tempo, olhava também pra mim”. Aliás, com exceção da Argentina, onde estão os vesgos, ditos estrábicos? Teria a tecnologia oftalmológica acabado com a raça? Pois surpreendeu-se Sebastião quando ouviu, pela primeira vez, a buzina de uma lambreta, que soava como uma sinetinha: “parece um cincerro”.

Mas, o pobre do Elino Julião morreu em 2006 sem ter conseguido enchucalhar seu amor. Agora isto é possível, e com sofisticada tecnologia. A Lindelucy, empresa de Minas Gerais, lançou na última Fenit – Feira Internacional da Indústria Têxtil, um espartilho com GPS. Confira em: www.lingeriecomgps.com.br. O slogan de lançamento ainda provoca: “ache-me se for capaz”. Estas mulheres...

Antes, o que poderia ser entendido como posse, dominação, exploração de gênero, enfim tudo que constitua alvo da fúria das feministas, tornou-se alta tecnologia hi-tech a serviço da segurança pessoal. Para evitar que as feministas comecem novamente a afiar seus facões de cozinha, convém avisar que o dispositivo pode ser desligado. Portanto, mudam os tempos e os instrumentos com idêntica finalidade recebem significados diferentes.

Bueno, isto pode parecer comentário tosco, elementar. Caso o leitor prefira um sofisticado tratamento intelectual da questão, leia “O Quixote de Pierre Menard”, do escritor argentino Jorge Luis Borges.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

ATLÂNTICO

Emanuel Medeiros Vieira

Imperfeitos,
singraram o Atlântico,
mãos ansiosas, mapeando novas terras,
bússolas afetivas,
acalentando sonhos distantes,
peles queimadas,
gosto de sal na boca
(tanto mar, tanto mar),
febre, malária, fibra e pranto.

Na cadeira de balanço -
depositário da memória da tribo,
contemplo a caravela de madeira, pai, mãe, tio violinista,
um agregado louco,
penso no Atlântico,
velas ao vento,
astrolábios,
à beira do poço do passado,
mais fundo do que o suportável pela memória – não acaba
nunca -, proclamo,
“terra à vista, terra à vista”.
(Alvíssaras)

quarta-feira, 18 de junho de 2008

De padre, bispo, contador de histórias a ouvidor

Um de meus cunhados vendeu o carrinho e pagou um curso sobre motivação, auto-ajuda, liderança. Na cerimônia de encerramento iniciou seu depoimento dizendo que havia se matriculado no curso porque queria ser guru.

Nunca pretendi ser guru no sentido estrito, mas alguma coisa assemelhada. Primeiro foi um efêmero interesse em ser padre. Não parecia ser muito difícil pronunciar uma prédica: “Caríssimos irmãos. Naquele tempo, Jesus desceu a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e ali ensinava aos sábados”. A temática era permanente, só mudando a exemplificação de acordo com as circunstâncias de momento. O interesse foi fortemente reforçado quando apareceu em Lavras o Bispo Dom Antonio Zattera. Nos anos 50 Lavras do Sul pertencia à arquidiocese de Pelotas. O bispo chegou à cidade como um potentado. O imenso carro americano de suspensão macia, que balançava suavemente ao frear, antecipava, com os recursos da época, os atuais sensores de estacionamento. Como naqueles tempos de poucos automóveis fazer baliza era um exercício de retórica, mais útil era um dos seus recursos, um pedacinho de arame retorcido que, fixado junto aos paralamas, indicava com um barulhinho quando o carro estivesse próximo a encostar nos meios-fios altos.

A figura do bispo me impressionou, principalmente pelas meias de cor grená. O impacto causado pela cor daquelas meias quase me fez entrar imediatamente no
seminário mais próximo. Depois refleti melhor e vi que chegar a bispo não era tão automático assim quanto escalar degraus em uma carreira hierarquizada com mais oportunidades, como a dos militares. Havia o risco de permanecer eterno cura de aldeia. E com um visual rotundo, conseqüência dos almoços dominicais oferecidos pelas fiéis paroquianas.

Na adolescência quis ser contador de histórias. No Brasil era publicada a versão nacional da Popular Mechanics, revista norte-americana que lá pelas décadas de 50 e 60 tinha uma certa obsessão com a hipótese de uma hecatombe nuclear. Lembro que uma das reportagens tratou de um exercício em que a revista pedia a alguns especialistas em incursões no mato, atividade que nos Estados Unidos sempre foi muito popular, para simular a necessidade de uma evacuação da cidade em pouco tempo, algo como uns 20 minutos. O exercício consistia em ver que itens ele comprariam rapidamente em um supermercado para fugir da cidade e sobreviver nas cercanias por umas duas semanas, tempo em que se estimava que a radiação não oferecesse mais tanto perigo. Não lembro se teriam que passar no caixa e pagar as mercadorias, afinal seria uma situação de pânico e o vendedor não teria onde descontar o cheque, enfim, o pessoal pegava lanternas, pilhas, barbante, facão, estas coisas. Provavelmente também muitos enlatados. O restante do exercício consistia em ver se efetivamente conseguiam sobreviver contando somente com aqueles apetrechos.

Na ficção científica o tema foi recorrente. Imaginava-se, então, que tipos de profissionais seriam importantes no caso da devastação nuclear. Um deles, que hoje os avanços tecnológicos modificam sua atuação, era o arquivista, ou o bibliotecário, porque seria da maior importância imediatamente começar a coletar e classificar o conhecimento remanescente. Basicamente livros. Outro, também considerado da maior importância, era o artista, o cantador, o tocador de violão, enfim alguém que pudesse estimular a agregação dos sobreviventes em torno de um fogueira arquetípica. Nesta acepção, um contador de histórias seria bem vindo. A humanidade, i.e o que restou dela, iria presenciar o retorno da transmissão do conhecimento e do entretenimento por via oral.


Achei atraente a possibilidade. Lia muito, achava que teria muita coisa para contar. E era a chance de ter uma ocupação útil e reconhecida, pois a depender de outras qualificações seria um “homem sem qualidades”, como o título do livro do escritor austríaco Robert Musil. Mas, toda esta visão era idílica. Hoje, filmes como Mad Max e O Exterminador do Futuro projetam a imagem de um futuro sombrio.

O período como professor até que permitiu exercitar o ofício da linguagem. Nas ciências sociais, pela necessidade de referência a processos sociais e comportamentos, era mandatório contar histórias. A Universidade de Brasília experimentou o teatro para discussão de temas de Sociologia. Filmes também foram muito utilizados com este propósito. “Bagdá Café”, por exemplo, é um prato cheio.

Para quem tem algum interesse em conhecer um pouco melhor as circunstâncias da arte
da oratória ou mais especificamente da pregação religiosa, vale ler o Padre Antonio Vieira, que dedicou um sermão inteiro, o Sermão da Sexagésima, ao tema da eficácia do pregador: “no pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala”.

Mas, como dizia o saudoso João Saldanha, vida que segue... Não chegando a “cantador de alvoradas, relentos / rimas ricas, sonora canção / trovador de invejável talento / orador que desperta a nação”, como na “Cantoria do Galo”, de Augusto Jatobá, eis que o parafuso deu uma volta e o Altíssimo, cujos desígnios são insondáveis, transformou o antigo candidato a contador de histórias em uma figura da mais absoluta introspecção. Uma legítima coruja, que, aliás, era o símbolo da Faculdade de Filosofia da UFRGS, onde me formei. Foi então que, por meio de um instrumento legal, uma portaria, ou seja, por um imperativo categórico, fui lotado na Ouvidoria do órgão público onde trabalho. Uma verdadeira inflexão da curva. Justa, contudo. Afinal, não havia conseguido prosélitos, nem seguidores de espécie alguma.

Bueno, agora ando olhando os classificados para ver se é possível encontrar um confessionário usado por bom preço.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Aquiles

Emanuel Medeiros Vieira

À vida calma, optou pela guerra: Aquiles.
Tétis, tua mãe, matava seus filhos querendo imortalizá-los,
mas quando nasceu o sétimo, resolve banhá-lo no Rio Stix,
segurando-o pelos calcanhares:
seu corpo não é mais vulnerável
(fica apenas com um único ponto fraco).

Esta mesma mãe te adverte, antes que partas para Tróia:
“Morrerás em breve, mas tua fama será eterna.”
(Escolhes a fama e a morte rápida.)
E o guerreiro comandará frota de 50 navios.
Não indo para a luta, teu destino será a morte por velhice.
Aquiles: o oráculo avisou teu pai, Peleu, que morrerias
junto aos muros de Tróia.
O pai tenta ludibriar a profecia: disfarça-te como mulher e te esconde.
(Outro oráculo disse a Ulisses que Tróia não seria conquistada, se Aquiles não fosse junto.)

Voluntarioso, não escutaste a ordem de Apolo para não
seguires adiante.
Segues: então, o deus guia uma flecha para o teu calcanhar,
guerreiro Aquiles.
É a mão de Páris que a envia, e a flecha revela teu
ponto fraco e tua finitude, que não te permitiu a
velhice.
Te apaixonas pela filha de Príamo, Polixena,
mas o amor não é mais possível:
o tempo é de guerra.

Tróia está perdida,
como o destino de todas as gerações que
“caem como as folhas das árvores”.
(Homero na “Ilíada”.)

Então, Ulisses desce ao Hades e encontra os mortos da guerra de Tróia.

O Pavão e Dorothy Lamour

O Brasil inteiro tomou conhecimento de “O Romance do Pavão Mysterioso”, música de Ednardo, quando ela foi incluída na trilha sonora da novela Saramandaia, em 1976. O LP original, porém, havia sido lançado em 1974. Pouco antes, em 1973, Fagner lançara seu primeiro disco: “O Último Pau-de-Arara” ou “Manera Fru Fru Manera”. Seu sucesso, coincidentemente, foi acontecer no mesmo ano da novela, 1976, impulsionado pela repercussão da música “Canteiros”, executada pelas rádios de todo o País.

A trilha sonora da novela

Antes destes fatores de marketing impulsionarem as vendas, tentativas maternas procuravam auxiliar na divulgação paroquial dos referidos discos. Fagner e Ednardo moravam na mesma rua, a Artur Timóteo, no bairro de Fátima em Fortaleza. As respectivas genitoras, para ajudá-los, colocam seus discos na vitrola em alto som para que quem passasse pudesse ouvir. A, digamos, testemunha auricular desta história nasceu em Oeiras, Piauí, e passou a adolescência na capital do Ceará. Em sua festa de 15 anos , Maria Edirlene também teve sua epifania sonora: “na minha casa havia uma radiola (toca discos) e rádio em um móvel enorme. Era um "buffet" grande, com portinhas, quase uma arca, que tinha uma caixa de som na parte de baixo (metade inferior do móvel e em toda a largura do mesmo) que me parecia bastante potente na época. Há uma foto na qual eu estou colocando um LP nesse 'móvel'. Mas era só uma pose para foto! Para animar a festa, um amigo trouxe um daqueles aparelhos de som "modernos" dos anos 70, com caixas de som possantes e muitos fios. Mas sinto saudades daquele móvel”.

Além da música-título, o disco “O Romance do Pavão Mysterioso” tem outras faixas notáveis, realçadas pela voz melodiosa de Ednardo: Carneiro, Mais um frevinho danado, Ausência, Varal (“no umbral da porta já torta / à sombra, o sombrio olhar / e no olhar coisas mortas /que ninguém irá velar”), Alazão e A Palo Seco. Além da belíssima “Dorothy Lamour”.

O Pavão original

Dorothy Lamour era estrela do cinema norte-americano: Mary Leta Dorothy Slaton, que nos anos 40 esteve no auge (lá). Viveu até os 81 e faleceu em 1996. A composição Dorothy Lamour é de Petrucio Maia e Fausto Nilo. É de ouvir com o lenço na mão.

O Pavão Mysterioso ainda teve gravações de Elba Ramalho, Ney Matogrosso e até de Fernanda Takai. Ednardo voltou a gravá-lo em outro disco excepcional: “O Pessoal do Ceará”, de 2002, com a participação de Belchior e Amelinha.

O reencontro do Pessoal do Ceará

Entonces, escute o disco, qualquer um dos três que todos já foram editados em CD, e leia o livro. Que livro? Machado, de preferência. Ou então: “Música perdida”, de Luiz Antonio de Assis Brasil, da L&PM.

terça-feira, 3 de junho de 2008

PLANALTO

Emanuel Medeiros Vieira

O Planalto é sempre:
antes e depois,
pedras, rios, sol, entardecer, pessoas
(céu sem mediação, espaços abertos,
seca, chuva, manga madura no chão.)

O Planalto não passa:
nós é que passamos.

O pó volta a terra,
mas queremos permanecer: algo de papel,
algo de carne, um jeito de menino que foi
nosso, riso, boininha, gaita-de-boca
ah, um desajeitamento,
estranho no mundo, um lenço,
cheiro de naftalina no guarda-roupa,
macaco em loja de louça.

Já faz tempo que o homem existe,
mas o Planalto é mais antigo.

E uma ilha,
que fica ao Sul do efêmero,
pandorga, vento, tainha
inundado de água: aqui,
no Planalto,
que não passa,
nós é que passamos.

(Brasília, 30 anos depois de chegar
ao Planalto Central – maio de 2008)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Maio (1968)

Emanuel Medeiros Vieira(*)

Há datas que não passam em branco.
1968.
40 anos: 2008
Sinceramente, vivi intensamente aquele período, dia e noite (escrevendo, panfletando, indo pra rua enfrentar a polícia, fazendo cursos pré-vestibulares para pobres, criando cine-clubes, ativando grêmios literários)-, eu e 'thurma', Eduardo Dutra Aydos, Alberto Pedroso Albuquerque, Edgar Pontes Magalhães - na faculdade de Direito; André Forster, Ciências Sociais, (tão querido amigo, depois quando ia na na ilha pelo IEPES, só parava lá em casa, e ia quase todo o mês, década de 70), Flávio Wolf Aguiar, Letras.
Não quero esquecer de alguém de uma geração um pouquinho anterior, muito digno e muito sensível, Clóvis Paim Grivot.
E, certamente, esqueci de outros.
E assistia às belíssimas aulas do Xausa e do Tavares...

MAIO

(Prosa poética: 1968-2008)
Emanuel Medeiros Vieira*
Para Celso Martins

(Em 10 de maio de 1968,
estudantes ocupavam a Sorbonne.)

Desejávamos soprar a poeira da eternidade.
Seja realista: exija o impossível,
passeatas, cassetetes, éramos eternos.

Comíamos o pão de cada dia
com a flor da utopia na lapela.
“A imaginação no poder”,
(o apelo),
mas nossos amigos não estão no poder.
Destinos rabiscados, entes descartáveis,
grãos de areia na imensa praia global?

Alguém narra (não história de ninar):
“Deslumbrados, complacentes com tenebrosas
transações, neo-pelegos” – o tom é panfletário e
me exaspera.

Fragmentados, ilhados: o barco fez água,
comitês de sonhos viraram praças de
vorazes burocratas,
o povo servindo aos donos da pátria,
crendo que a servem.

No muro, li:
“Acorda, Lênin: eles enlouqueceram.”

A barricada fecha a rua, mas abre a via.

Cerração dissipada, abre-se o sol no Planalto Central do País,
alguém solta uma pandorga,
lembro-me de uma regata assistida aos sete anos,
na Baía Sul de outra ilha – a memória, esta vida .

(Brasília, maio de 2008)

*Escritor catarinense residente em Brasília

quinta-feira, 15 de maio de 2008

“Românticos de Cuba, Brasil e adjacências” – um show!

Tanto se falou de amor e dor, tanta poesia foi criada, tantos corações ora palpitantes, ora dilacerados, debateram-se em um sobe-desce de emoções, tão bem identificadas nas músicas de “Românticos de Cuba, Brasil e adjacências” bem como nos textos que as entremeiam.

Em Brasília, uma platéia atenta e emocionada acompanhou o show do tenor Cassiano Barbosa. Durante a apresentação verificaram-se cenas explícitas de intensa dor de cotovelo. Na seqüência, algumas seqüelas foram constatadas, como forte dependência emocional.

Mas, quem é Cassiano Barbosa? Mineiro de Carangola, brasiliense de coração, Cassiano é um dos fundadores do Coral da UnB, Serenata de Natal, do Coro Masculino de Brasília e do Coral Brasília. Estudou canto nos EUA, nas Universidades de Cornell, Ithaca, NY e do Missouri, Columbia. Participou como solista em obras de Haydn – Salve Regina; Puccini – Gianni Schichi e Madama Butterfly; Donizetti - Lucia de Lammermoor; Verdi - La Traviata; Rossini – Barbeiro de Sevilha, entre outras. Atuou ainda, em musicais como Oklahoma, de Rodgers e Hammerstein; Sweeney Todd, de Sondheim e Wheeler; A Bela e a Fera de Menken, Ashman e Rice; Jesus Cristo Superstar e O Fantasma da Ópera, ambas de Weber. Protagonizou também os shows com os mais variados estilos musicais, todos sucessos de público e crítica: Dois Tenores contra uma Pianista, ou É Brega mas eu Gosto; Alto Astral de Natal, Os Menestréis do Rádio e Elas e Eles, além do mais recente, Românticos de Cuba, Brasil e adjacências. Teve como professores de canto Francisco Frias, Costanza Cuccaro, Maralin Niska, Karen Holvich e Marconi Araújo. Considera que sua maior glória, no entanto, é ser pai da Sofia, energética adolescente e marido de Daphne, a paciência em pessoa.

O vídeo abaixo apresenta “Por una cabeza”, de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera. A seleção do texto de apresentação é de Célia Campos. Cassiano é acompanhado ao piano por Deyvison Miranda.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Na soleira da porta

Manoel Hygino dos Santos

Emanuel Medeiros Vieira acaba de lançar, pela Thesaurus, “Cerrado Desterro”, primeiro volume de suas memórias, com orelhas de Victor Alegria. A primeira consideração é de que me parece muito cedo para ingressar nesse gênero.

Emanuel nasceu em Florianópolis no ano em que Vargas desceu as escadas do Catete, em 1945, sem descer à sepultura, como na segunda vez, em 1954. O período de vida do autor é relativamente curto para cogitar de reunir lembranças.

Mas o escritor de Santa Catarina achou que a hora era chegada, e ele mais do que ninguém sabe de si e de seu cronograma e perspectivas. O primeiro volume soma quase quatrocentas páginas, e há mais três temas nos trilhos.

A primeira idéia é de memórias serem elaboradas ou organizadas quando a marcha etária ultrapassa a casa dos 70 anos. Assim fez Pedro Nava, e acertou plenamente. O seu legado para as letras e a história brasileira é fantástico.

Mas Emanuel Medeiros Vieira encontrou motivos para deslanchar antes o projeto. Com o primeiro volume se constata que ele tem razão. Viveu momentos difíceis, duros, até horripilantes da crônica brasileira no século passado.Esteve junto aos acontecimentos, sofreu-os, teria o que revelar.

Andou por estes Brasis que não são tanto mais de meu Deus, para passar aos numerosos demônios que o habitam. Mudou de acampamento com diploma da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul e sentou praça em Brasília, o centro do poder.
Escreveu muito, vários livros, alguns com títulos cinematográficos. Escreve bem, conhece-se e reconhe-se. O primeiro volume de suas memórias traz uma amostra do que será a obra, como um todo. Reúne lembranças, depoimentos em jornais, pensamentos alheios que o impressionaram, fragmentos, que dão testemunho de uma época.
A “revolução” de 1964, com tantos erros cometidos, com crimes e torturas, o pegou em suas malhas. Esteve preso, por motivos em que incorreriam e incorreram homens de bem, jornalistas, escritores, artistas, intelectuais.

De uma hora para outra, descobriu que álcool não faz bem. Todo mundo sabe que assim é, mas somente a experiência pessoal, traumática às vezes, convence. Parou de vez. Nem por isso deixou de ter padecimentos. No início de seu livro, afirma:
“E a Morte, encostada na soleira da porta, quis dançar comigo um tango argentino. Fingi, disfarcei. Cínica, ela abanou. Fechei os olhos, cama de hospital, botei o cobertor na cabeça. Fui baixando, olhei, ela ainda me contemplava, o sorriso desaparecera, olhar mais grave - alguma compaixão?”

À indesejada proposta do tango, disse: “Sou muito desajeitado, não sei dançar, esbarro em todo mundo. Há parceiros melhores”. Mas ela não abria mão de sua preferência. Uma grave enfermidade cardiológica quase o tirou do meio do salão da vida.

Encontrou médicos excelentes, enfermagem de alto nível, carinho e apoio da família. A cirurgia foi plena de êxito, recuperou-se. Agora, verifico que as memórias de Emanuel Medeiros Vieira eram inadiáveis, devem e precisam ser lidas.

Publicado no jornal HOJE EM DIA, 01/04/2008
Transcrito com autorização

terça-feira, 15 de abril de 2008

Obras da Literatura Gauchesca

Raimundo Tadeu Corrêa

Em julho de 2007, Carlos Alberto Crusius, no blog Nova Klaxon http://novaklaxon1.blogspot.com/ referiu-se à iniciativa de um professor universitário de Porto Alegre, que traduziu Odisséia do grego para o português utilizando expressões regionalistas. Questionando o procedimento, Crusius alegava que já existiam na literatura exemplos do que poderia ser um Ulisses regionalista: Fausto, do argentino Estanislao del Campo, e Fidêncio Quixote, do gaúcho Darcy Azambuja.

Fausto, de Estanislao del Campo, publicado pela primeira vez em 1866, foi concebido
a partir da apresentação, em Buenos Aires, da ópera Fausto, de Gounod, esta, por sua vez, uma versão da obra clássica de Goethe. O texto é facilmente encontrado na internet, a exemplo de: http://www.los-poetas.com/b/faust.htm.
Um trecho de Fausto, de Estanislao del Campo:

El Doctor apareció
Y en público se quejó
De que andaba padeciendo.
Dijo que nada podía
Con la cencia que estudió,
Que él a una rubia quería,
Pero que a él la rubia no


Fidêncio Quixote está em “Coxilhas”, contos de Darcy Azambuja, publicação de 1956, vol. 9 da Coleção Província, da Editora Globo. Meu exemplar foi conseguido graças à pertinácia de Andréa Lima Leal e ao sempre eficiente trabalho de pesquisa da Martins Livreiro.

A figura de Fidêncio Quixote, a exemplo do seu referencial espanhol, é comovente. A imaginação aos poucos toma o lugar da realidade. Capitão Fidêncio na revolução de 23, subdelegado de polícia depois, não se deu bem em tempos de paz: “acampara no passado, com uma tropa de saudades encurraladas no coração”.

Fidêncio Quixote não foi um tipo raro no Rio Grande do Sul. Meu avô materno, Antonio Fagundes, barbeiro, embora não fizesse manifestações explícitas a respeito, era um nostálgico dos tempos de revolução. Qualquer uma. Nos meus imberbes seis, sete anos de idade, me ensinava o modo mais prático de se degolar um paysano. Bueno, foram apenas explicações didáticas sobre procedimentos. Não houve nenhum exercício prático de aplicação dos conhecimentos. É provável, no entanto, que imaginasse coisas, quando afeitasse alguém com navalha. Afiadíssima, Solingen, alemã. Mas, ao contrário de Fidêncio Quixote, acostumou-se com as platitudes da vida civil. Morreu como um devotado Congregado Mariano.

A literatura gauchesca ainda tem um exemplar notável, um dos maiores: El Gaucho Martin Fierro, do argentino José Hernandez. Um gaúcho que tudo enfrentou na vida.


Soy gaucho, y entiendaló
Como mi lengua lo explica:
Para mi la tierra es chica
Y pudiera ser mayor;
Ni la víbora me pica
Ni quema mi frente el sol.
...
Mi gloria es vivir tan libre
Como el pájaro del cielo:
No hago nido en este suelo
Ande hay tanto que sufrir,
Y naides me ha de seguir
Cuando yo remuento el vuelo.



O Rio Grande do Sul produziu também Antônio Chimango, de Amaro Juvenal, pseudônimo de Ramiro Barcelos, publicado em 1935, uma sátira política vigorosa, referência a Borges de Medeiros, nascido em Caçapava do Sul e Governador do Rio Grande do Sul por muitos anos. Transcendendo o intento de sátira, o texto se notabilizou por sua descrição das condições de vida no campo.

Para les contar a vida
Saco de mala o bandônio
A vida de um tal Antonio
Chimango por sobrenome
Magro como lobisome
Mesquinho como o demônio

Nos cerros de Caçapava
Foi que viu a luz do dia,
À hora d’Ave Maria,
De uma tarde meio suja;
Logo cantou a coruja
Em honra de quem nascia.

Veio ao mundo tão flaquito,
Tão esmirrado e chochinho
Que, ao finado seu padrinho,
Disse espantada a comadre:
“Virgem do céu, Santo Padre!
Isto é gente ou passarinho?”


Martin Fierro e Antonio Chimango são auto-referenciados em suas respectivas culturas. Fidêncio Quixote e Fausto, de Estanislao del Campo, possuem referenciais europeus.

Mas há um caso interessante e pouco conhecido de literatura gauchesca: “Los partes de Don Menchaca”, de Simplicio Bobadilla. Don Menchaca era comissário de polícia em Puntas del Arrayán Chico, no Uruguai. Por não saber escrever nem assinar o nome, seus relatórios eram redigidos e firmados por Esmeraldo Zipitrías, o escrevente, que apesar de pouco mais que alfabetizado era uma sumidade para as circunstâncias locais. Condição que volta e meia incluía nos relatórios, como quando recebeu uma licença de dois meses: “licensé por dos meses en su abrumadora tarea plumaria al Escribiente Don Esmeraldo Zipitrías, funsionario de basta coltura y de inempardable fasilidá de palavra hablada y escrita, que asegún nadies lo inora es la persona que posé letra más linda y mejor hortografía en toda la jurisdisión de mi encumbensia”. Don Esmeraldo Zipitrías rebuscava o texto dos relatórios com referências clássicas: ora era o Campo de Agramante, local onde todos brigam com todos e retirado de uma passagem de Dom Quixote, ora era a menção a “la Parca cruel [que] cortó el hilo bitalisio de la esistensia del finado Merejildo”. As Parcas eram três deusas gregas que determinavam o curso da vida humana.

Don Menchaca era o supra-sumo do indivíduo autoritário e atrabiliário. Isentava os poderosos, dos crimes que cometiam. Superfaturava a necessidade de recursos para a sua Comissaria, indicando necessidades financeiras extras para atender ao seu “personal cabalar”, os cavalos pertencentes ao serviço. Reivindicava o cumprimento da promessa de ter incorporado ao seu soldo o de três guardas civis, que só existiriam na folha de pagamento, o que permitiria melhorar sua remuneração. E argumentava: “qué sinifican para las arcas de la Patria, que al fin y al cabo es nuestra madre y tiene el dever de belar por el porbenir de sus hijos, los míseros suelditos de tres guardiasibiles imajinarios, que sóllo figurarán en las planillas, y siempre saldrán más económicos que los guardiasibiles de verdá, en birtú de que estes últimos consumen botas, ponchos, sables y otros engredientes propios de la embestidura policial”. Isto em 1895!!

Don Menchaca relatava casos de “suicidio personal, cometido por el causante en perjuisio direto de su proprio corpo”. Encerrava inquéritos por razões óbvias, como no caso de uma execução, quando considerou como “natural” a morte de um cidadão que levou cinco tiros, pois isto levava ao seu “rápido fenecimiento”. Às vezes invadia residências com um bom propósito, quando uma ocasião em que escutou os gritos de “Degollación! Degollación!”, para só então descobrir que se tratava de um pai chamando sua filha, que teve a infelicidade de ser batizada com o nome que constava no almanaque no dia do seu nascimento: “Degollación de los Santos Inocentes”. Para ele não havia nada mais lindo do que “ir a disfrutar de la guerra, que es la mallor de las fiestas tradisionales para los bástagos de nuestro suelo natibo, ya que en ella se pueden carnear bacas gordas y montar cualisquier caballo ajeno sin que le bengan a uno com reclamasiones los dãnificados, como acontece por desgrasia en épocas de paz”. Meu exemplar de “Los partes de Don Menchaca”, de Simplicio Bobadilla, é de 1965, 3ª ed., Libreria Blundi, Montevidéu.

Literatura gauchesca é isto aí.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Aquém do Oiapoque: em direção ao Brasil pouco conhecido

Marcos Formiga*

O Piauí é o terceiro maior Estado da Região Nordeste, mas sua costa de apenas 66 km é a menor dentre todos os Estados litorâneos brasileiros. O Rio Parnaíba em seus 1485Km, ao desaguar no Atlântico forma um grandioso Delta com cerca de 90 ilhas em um cenário surpreendente. Delta do Parnaíba

Neste verão, fomos buscar o estuário do Parnaíba com suas praias extensas, dunas de areia branca e lagoas de água doce. Um santuário ecológico onde o cerrado e a caatinga cedem lugar aos cocais com a predominância da carnaúba – “a arvore da vida”. Delta do Parnaíba

Para se chegar do Centro-Sul aquele paraíso nordestino, a melhor opção é por via aérea até Teresina, e de lá por rodovia são 340 Km até Parnaíba e mais 60 Km até Coqueiro da Praia, na divisa com o Ceará; antes fica Luiz Correia com seu Porto inconcluso e a famosa Praia dos Coqueiros.Praia dos Coqueiros

O litoral piauiense dispõe de uma razoável infra-estrutura turística com hotéis de qualidade e estradas bem conservadas. Estranho é o isolamento com é tratada aquela Região. Ela clama por uma melhor utilização do seu potencial turístico. Parnaíba, a segunda maior cidade do Estado com mais de 200 mil habitantes, têm belos casarões do apogeu das exportações da cera de carnaúba, onde desponta o seu belíssimo conjunto arquitetônico do Porto das Barcas. No entanto não dispõe de nenhuma ligação área, nem mesmo aviação regional. Seu aeroporto devidamente equipado continua ocioso.

Injustiça total com aquela bela Região que precisa de maior divulgação, e até mesmo ser (re) descoberta pelos brasileiros, e em especial, pelo Ministério do Turismo, cuja a presença não se faz sentir.

Antes de chegar à Região do Delta, uma visita obrigatória ao Parque Nacional de Sete Cidades. Sentia-me em débito com o Piauí, pois já escalara a Muralha da China e desconhecia as maravilhas de Sete Cidades!Parque de Sete Cidades

O Piauí é pleno em tesouros arqueológicos. No Sul do Estado localiza-se o esplendor da Serra da Capivara, que sob a liderança da arqueóloga Niede Guidon, teve suas pinturas rupestres declaradas Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Lá se encontra a Fundação Museu do Homem Americano, considerado o melhor museu de todo o Nordeste, justa homenagem ao mais antigo povoamento do Continente Americano.Serra da Capivara

Sete Cidades, deveria replicar o trabalho ímpar da Serra da Capivara, e o Estado do Piauí poderia organizar um roteiro arqueológico que se iniciaria no extremo Sul do Estado e chegaria até o extremo Norte, em um percurso de quase 1000 Km, de um Brasil pouco conhecido, mas rico em paisagens, povo hospitaleiro e culinária exótica. Ao planejar sua próxima viagem, inclua o Piauí em seu roteiro!


Brasília, abril de 2008
(*)Marcos Formiga – um turista bissexto

terça-feira, 18 de março de 2008

Além do Chuí: a Patagônia argentina

Andréa Leal*

Saí de Porto Alegre com um grupo da Galápagos, formado na sua maioria por pessoal de terceira idade. Pegamos um tornado no caminho, e cheguei bem mareada a Buenos Aires. Quando entrei no quarto de hotel, surpresa! Uma banheira! Fiz um mate, me estabeleci na banheira e fiquei por ali até passar o enjôo... ê, vidão!

No outro dia fomos direto ao fim do mundo, Ushuaia, a cidade mais austral do mundo. Dali pra frente, só o pólo sul. Uma coisa fantástica! Passeio de barco pelos rios de gelo cheios de tempanos (icebergs) e glaciares. Paisagens de sonho.

Tempanos (icebergs)

Dali, a El Calafate, um pouco mais a noroeste. Mais glaciares e o lago argentino, cor azul turquesa por causa do magnésio que desce dos Andes. De El Calafate, passamos a fronteira para o Chile, para o Parque Nacional de Torres del Paine. Incrível. Além da paisagem, vimos guanacos, sorros e o condor. De volta a El Calafate, fomos no Glaciar Perito Moreno, onde fiz trekking sobre o gelo. Inesquecível. Uma experiência de não mais esquecer.

Glaciar Perito Moreno

Dali, de volta a Buenos Aires, onde fiquei mais três dias. Buenos Aires é realmente muito européia. A cidade é limpa e organizada, visitei toda ela de metrô, que tem um sistema muito bom e barato, o passe custa 90 centavos de pesos (mais ou menos 60 centavos de real) e a gente pode baldear de linha sem pagar mais por isto, podendo cruzar toda a Buenos Aires.
Achei os portenhos extremamente simpáticos, ao contrário do que dizem. Tá certo que passeei sempre com a minha camiseta do Che Guevara e sempre dizendo que eu era brasileira, que eles adoram. Aliás, Maradona, Evita e El Che são legendas para os portenhos. Eles idolatram. Buenos Aires merece muito mais do que apenas três dias. Fotos dão apenas uma vaga idéia. Só indo lá pra ver ao vivo.

(*) Andréa Leal é filha da dedicada professora Marina Lima Leal, líder sindical da categoria em Canoas, RS.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Lendo Emily Dickinson

Poema de Emanuel Medeiros Vieira
Para Célia de Sousa

Poderia ser 1830,
quando nasceste,
mas é 2008,
chuvoso domingo de março,
não publicaste livro em vida (o que menos importa).
“Ela chegou afinal, mais ágil porém a Morte
Havia ocupado a casa:
A pálida mobília já disposta,
Junto com sua palidez metálica” (...).
Só poeira e esquecimento,
nada dura,
Felicidade efêmera – ler teus poemas, Emily.

O domingo fluindo,
tempo: linha reta de eterna agonia.
Não existe presente, só passado.
Nem futuro.
A namorada de 1968 jaz num cemitério de aldeia.
“Empoeirado se mostra o mundo
Ao nos deitarmos para morrer”.
Sim: “Tão longe da compaixão quanto a queixa
Tão frio às palavras quanto a pedra.
Tão insensível à Revelação
Como se meu ofício fosse nada.”
O empenho diário é inútil?
Para os outros.)
Ah, cidade que me atirou seu presságio
adverso.
Terá termo a espera?
Deve-se matar a morte que sobre nós se abate.
Peço desculpas aos poetas que pilhei:
confluências.)
"Aqui jaz a inocência:
a morte não existe, nós é que morremos.”

Brasília, março de 2008

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Filhos mal-humorados

O velho colega, morador em cidade distante, fazia aniversário. Liguei à noite. Seu telefone sempre ocupado. Como sabia que dormia cedo, pensei que pudesse ter sido retirado do gancho para não ser incomodado. No dia seguinte, nova ligação. Atende o filho: “saiu”. Quando volta? “Não tem horário para chegar em casa”. Bueno, como não se tratava de cidadão com disposição física para ser um notívago, e como nos tempos atuais a imprensa divulga tanta barbaridade, como idosos em cárcere privado, procurações forçadas para transferir administração de bens, etc. e tal, imaginei a possibilidade de coisas terríveis estarem acontecendo. Tracei uma estratégia. Se no terceiro dia não conseguisse encontrá-lo, acionaria um cunhado para fazer uma verificação “in loco”. Caso desconfiasse de alguma anormalidade, poderia encaminhar uma denúncia à polícia. Subtração de incapaz, qualquer coisa do gênero. No terceiro dia o colega atendeu. E explicou. Na noite do seu aniversário estava atendendo a uma ligação atrás da outra. A informação do filho era pura idiossincrasia.

Há poucos anos, uma colega de faculdade programou vir a Brasília para participar de um simpósio. Combinamos que eu iria recebê-la no aeroporto e levá-la para o hotel. Liguei na véspera, para confirmar horário de vôo ou qualquer alteração de última hora. Ainda não existia a ANAC, mas os aeroportos já aprontavam. Atendeu a filha. “Cadê sua mãe?” “Não está.” “Posso ligar mais tarde?” “Não sei nem se minha mãe volta pra casa esta noite”. Minha colega teria então uns bons vinte anos de pacata vida do lar, esposa amantíssima, mãe extremada, estas coisas. Imaginei que tivesse jogado tudo para o alto. Desbunde total. Andando de bar em bar, bebendo todas, cantando músicas do Paulo Vanzolini... O que teria acontecido para uma mudança de comportamento tão radical? Assim que chegou perguntei o que havia se passado. Ficou furiosa com a filha, que quando esperava algum telefonema despachava de pronto qualquer um que não fosse do seu interesse. Sim, mas e a estimativa imprecisa de sua volta para casa? “Ah, naquela noite fui a um velório”.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

“Cerrado Desterro”, as memórias do Emanuel

Emanuel Medeiros Vieira é escritor catarinense com várias premiações por livros de contos e de poesias. Mora em Brasília, planalto central e região de cerrado, que deu nome ao primeiro volume do seu livro de memórias “Cerrado Desterro”, seu 19º título. O livro tem despertado depoimentos tão emocionados quanto o seu conteúdo.

O depoimento de Flávio José Cardozo, escritor catarinense e tradutor de Jorge Luis Borges: "Cerrado Desterro’ comove pela transbordante afirmação de amor à vida e à literatura. Comove pela naturalidade com que reparte teu mundo conosco. É um cântico sobre lutas - lutas tão sérias - e vitórias. Vou guardá-lo na especial prateleira das confissões que me tocam”.

Os comentários são de Carlos Jorge Appel, editor e ensaísta, constituem uma pequena resenha: “Que bom que tens fôlego, disposição, vitalidade e, além disso, uma memória assombrosa para, num ziguezague constante, num vaivém de épocas de eventos e de fatos, nos contares como foi tua infância na Ilha, adolescência em Brusque — onde nasci e vivi até os 16 anos —, a tua formação acadêmica nas décadas de 60/70/80, a vivência nos bons tempos da UFRGS, o cinema, a literatura. Aí chegou a ducha fria do fim das ilusões: primeiro, o golpe de 1964; em seguida, o AI5, a censura, as prisões, as lutas clandestinas, Lamarca, as guerrilhas e, por fim, lá adiante no túnel em que nos colocaram (colocamos?), as diretas já dos senhores Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Pedro Simon, Chico Buarque, Brizola — e nós. Li rapidamente as tuas 382 páginas de Cerrado — Desterro — volume I, memórias. Consegues nos reimergir numa época dura, de muita luta e persistência para sobreviver em meio à choldra. E, o mais importante, conseguiste construir a tua obra e perfizeste uma trajetória sólida de ficcionista e de poeta. Continua: tuas memórias também são nossas. Precisamos do teu testemunho”.

“Cerrado Desterro” foi publicado pela Thesaurus Editora, de Brasília.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A continuação das férias

Um conhecido contava que o cartão de crédito permitia renovar a memória de eventos passados. Quando chegasse a fatura o camarada ia conferir e, de repente, "nossa, esta conta é dos doces que comprei em Caxambu". Bueno, da mesma forma existem lembranças mais relacionadas ao espírito que também prolongam as boas lembranças. Discos e livros podem ser levados para uma ilha deserta. Metafórica, evidentemente. A minha é mais uma "datcha" do que um minifúndio improdutivo, mas serve para os propósitos. Em Lavras, adquiri todos os seis discos de Gujo Teixeira, incluindo o que acompanha seu livro de versos “Parece a vida”, além de um do Luiz Marenco. Tudo da melhor qualidade, milongas de primeira. Com relação aos livros, em Pelotas comprei o mais recente de Luiz Antonio Assis Brasil, “Música Perdida”. Os demais ganhei. Eduardo Aydos, prolífico, presenteou-me com o seu “Corrupção, impunidade e voto”. E em casa do prof. José Antonio Giusti Tavares, não menos prolífico, recebi “Cores e emoções”, livro de poesias de sua esposa Élida, e do próprio seu último artigo sobre reforma política publicado na revista “Plenarium”; ademais, ao me ver pesaroso por não ter visitado o Castelo de Pedras Altas, presenteou-me com uma de suas obras, o livro “Representação Política e Governo - J.F. de Assis Brasil Dialogando com os Pósteros".Raimundo, prof. Tavares e prof. Eduardo Aydos

Vida que segue...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Algumas vicissitudes e os créditos (II)

Além das peculiaridades de cada cidade, existem vários outros atrativos nem sempre bem explorados do ponto de vista do turismo. O principal atrativo é a região de Guaritas, em Caçapava. O seu prolongamento geológico corresponde ao sítio do Rincão do Inferno, em Lavras do Sul, cujo acesso ficou um pouco mais complicado com a administração dos atuais proprietários. Entre Pelotas e Bagé localiza-se o Castelo de Pedras Altas, construído pelo político gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil. Infelizmente, problemas com o horário disponível para visitas e sua localização física fizeram com que tivéssemos que excluí-lo de nosso roteiro de visitas. Enfim, existem possibilidades de organização de um interessante roteiro turístico para a região, até agora desprezada pelas empresas do ramo, que só oferecem pacotes para a região da Serra Gaúcha. Destarte, um mochileiro disposto seguramente poderia usufruir mais destas modalidades rústicas do que entes urbanos, sedentários, que apreciam alguma confortável organização turística. Embora com os recursos de busca pela Internet atualmente seja possível reunir-se antecipadamente as informações, nem sempre as coisas funcionam. O site de Lavras do Sul, mantido pela Prefeitura Municipal, além da já mencionada Fazenda Itaoca, de mostruário turístico improvável, indicava um hotel, o Saint Clement, de boa capacidade, mas que se encontrava fechado, e três hotéis fazenda, cujas atividades igualmente já haviam se encerrado. Não fosse o recurso de parentes e teríamos que buscar pouso no município vizinho.

O crédito às pessoas é indispensável. O passeio foi idéia de minha irmã Ila Maria, pesquisadora da área de engenharia agrícola, que se encarregou das fundamentais reservas de hotel, onde houvessem. Iara Maria tomou conta brilhantemente da infra-estrutura logística: transporte terrestre e seus complementos, como água, sucos, biscoitos e providenciais remédios para as emergências. Regina Berenice foi a relações públicas, cuja memória prodigiosa facilitou os contatos com parentes e conhecidos. Álvaro, marido de Ila, foi o complemento conjugal, e sua filha Paula, estudante de jornalismo, a responsável pelo registro fotográfico e documental, o que permitiria dar um fio condutor aos relatos e causos posteriores. Como diz um personagem de Juan José Morosoli, contista uruguaio, “as viagens começam depois que a gente chega”, descoberta que fez uma vez que foi a Montevidéu e, na volta, quando começou a contar sua viagem aos outros se deu conta de que aquilo que tinha visto era uma coisa bárbara. Em Pelotas, Iara e seu marido Júlio foram anfitriões incansáveis que se desdobraram em atenção; e Eneida, cunhada por parte do irmão que não pôde comparecer, nos recebeu amavelmente na casa de sua filha, Landa Taís. Em Lavras, Tia Geny e a profa. Irma foram de uma gentileza imensa, assegurando-nos acolhida calorosa. Ambas donas de memória privilegiada. A profa. Irma sabe de cor poesias que eram ensinadas aos alunos na década de 50, como “Independência ou Morte”, de Dom Aquino Correia. O texto completo da poesia pode ser encontrado em http://www.antoniomiranda.com.br. Aí, clicar em Portal de Poesia Íbero Americana – Poetas de A a Z. Dom Aquino está indexado pela letra “d”. Tia Geny, entrevistada pela equipe da RBS sobre Mister Bosch, por saber tudo o que aconteceu na cidade em todas as épocas, agrega à simpatia e ao bom-humor a qualidade de ser uma torcedora fanática do Grêmio Porto Alegrense, possuindo discos comemorativos sobre suas conquistas e até um raríssimo microondas de cor azul. Dr. Nézio Munhoz, advogado já mencionado, nos atualizou com informações sobre o contexto das últimas décadas e deu as interpretações de que necessitávamos para compreender o momento atual.

Em pé: Regina e Iara; sentados: Álvaro, Ila e Raimundo

Para completar o relato, um obrigatório registro sobre os amigos. Em Pelotas, Lucas, professor da universidade federal e intelectual local, ofereceu um jantar magnífico, produção artística de Maria Helena, sua mulher. Outra manifestação gastronômica de peso foi a propiciada por Eduardo Aydos, ensaísta, escritor prolífico e professor universitário aposentado, e sua esposa Regina, na fazenda do casal, no município de Gravataí. O queijo de búfalo servido era de fabricação doméstica, produto de uma fazenda especializada na criação de gado bubalino. A refeição de despedida, igualmente primorosa, foi oferecida pelo prof. Tavares e sua esposa Élida, em Porto Alegre. Compartilho com eles a não menos importante circunstância de ter encontrado na vida uma grande mulher.
Assim foi... O roteiro termina aqui. De tudo dou fé

Algumas vicissitudes e os créditos (I)

Dos quatro municípios da nossa base preferencial, apenas Lavras do Sul não possui denominação de origem indígena. Pelotas deve seu nome ao tipo de embarcação feita pelos índios, com estrutura de corticeira e revestida de couro, com formato circular. Eram impulsionadas por uma corda que o índio prendia nos dentes e seguia nadando na frente. A cena está registrada no brasão da cidade. O nome Bagé tem origem não muito consensual, a hipótese mais aceita é que possua alguma relação com “cerros” na linguagem dos índios minuanos. E Caçapava, em tupi guarani, significa “clareira na mata”.

Estas plagas correspondem à antiga “Vacaria del Mar”, região que abrangia a parte mais ao sul do Rio Grande e grande parte do território do Uruguai. Tornou-se assim conhecida depois que os jesuítas, em 1640, retiraram-se para a Argentina, deixando uma imensa reserva de gado. A caça a este gado xucro foi a base econômica da ocupação inicial da terra. Uma boa descrição de como a figura do gaúcho foi forjada nestas condições pode ser encontrada na dissertação de mestrado de Claudio Marques Ribeiro, “Estudo de quatro municípios da Serra do Sudeste do Rio Grande do Sul e possíveis alternativas para o seu desenvolvimento” (apresentada à Universidade Federal de Lavras, MG, em 1996). Ribeiro acredita que o passado guerreiro forjou um tipo hospitaleiro mas profundamente desconfiado com seu vizinho, que tanto podia ser um amigo como um potencial inimigo. Assim, iniciativas de promover atividades como associativismo encontram grandes barreiras pelas dificuldades de garantir o envolvimento em um trabalho conjunto. Segundo um depoimento colhido pelo autor, um dos seus entrevistados diz, sobre a ajuda mútua existente no passado: “o pessoal se ajudava e muito... quando se davam bem, e normalmente se davam bem... [mas] quando brigavam se matavam”. Nada muito diferente de 1872, quando Martin Fierro, figura arquetípica de um dos poemas fundadores da figura do gaúcho argentino, e por extensão também o do Rio Grande, depois de tantos problemas enfrentados descobre que “ser gaucho es un delito”. Esta região é onde está mais presente o sentimento de que o Rio Grande possui fronteira com a Argentina, o Uruguai e o Brasil.

Caçapava, a capital farroupilha

O ponto final da viagem dista apenas 63 km de Lavras. Em meus tempos de criança, quando a ligação ainda era por estrada de terra, os times de futebol de Lavras, o Vasco da Gama e o time do Ginásio Estadual, quando iam disputar partidas em Caçapava costumavam seguir na boléia de um caminhão. Junto com meia dúzia de apaixonados torcedores. Caçapava do Sul foi a segunda Capital Farroupilha. Durante a Revolução Farroupilha (1835-45) algumas cidades foram capitais da separatista República Rio-grandense. A primeira capital foi Piratini e Caçapava a segunda, quando acolheu os rebeldes farroupilhas durante 14 meses a partir de fevereiro de 1839. A última capital foi Alegrete.

A economia de Caçapava do Sul está baseada na mineração. A cidade é responsável pela produção de mais de 85% do calcário produzido no Rio Grande. Antes mesmo de chegarmos ao perímetro urbano visitamos a Pedra do Segredo, uma das muitas atrações geológicas da região. O local ainda não dispõe de infra-estrutura, embora alguma coisa já esteja em construção. O acesso à Pedra é íngreme e muito difícil. Requer, além de uma alma de aventureiro, muita disposição física.

A Pedra do Segredo

Na cidade, o principal atrativo turístico são as ruínas do Forte Dom Pedro II, único forte militar da região Sul, construído para garantir a permanência portuguesa. O município ainda possui vários locais próprios para o chamado turismo de aventura. Entre as diversas formações geológicas a mais famosa é Guaritas, considerada uma das sete maravilhas do RGS. Guaritas foi cenário do filme “Anahy de las Misiones”. Pela sua distância da cidade e por conta do nosso tempo disponível foi um roteiro que não pôde ser realizado.

As ruínas do Forte Dom Pedro II

Caçapava foi o ponto final de nosso roteiro conjunto. De lá minhas irmãs retornaram a Pelotas enquanto eu seguia para Porto Alegre, de passagem para Gravataí.

Lavras, onde o passado entreabre um olho (IV)

O melhor local para recreação é a Praia do Paredão, um represamento do rio Camaquã onde a prefeitura instalou uma completa infra-estrutura de balneário, com área de camping e cabanas para hospedagem. É uma área aprazível que, esta sim, melhorou significativamente.

A Praia do Paredão

A nota surreal aconteceu por conta de nosso interesse em visitar a Fazenda Itaoca, que pelas informações oficiais abrigaria um engenho de exploração de ouro remanescente da época áurea da cidade, ainda com o maquinário original encravado na rocha. Dr. Nézio Munhoz, a mais expressiva figura de um coronel urbano, no bom sentido, isto é, alguém com toda a percepção do que é realmente importante para assegurar o bem comum, preparou-nos uma brincadeira. Disse que este seria o ponto alto de nosso passeio e que o proprietário, seu Bidinho, teria o maior prazer em nos receber. A dificuldade de acesso ao local já prenunciava alguma suspeita de algo não estava bem explicado. Na fazenda, a proprietária informou que era a viúva do dono, filho falecido do também já falecido seu Bidinho, fato com algumas décadas. O aparato de visitas inexistia. Nos restou a esperança de que o chiste possuísse outra referência. Talvez seu Bidinho esteja à espera para nos receber de braços abertos quando for a hora de ir para a estância do Patrão Velho lá de Cima.

O herói nativista da cidade é Gujo Teixeira, um dos mais premiados compositores da música gaúcha. Nascido em Porto Alegre, formou-se em veterinária e mora em Lavras, em sua fazenda São Jorge das Cordilheiras. Até recentemente possuía 25 premiações, por melhor música e primeiro lugar em festivais, e mais de 100 composições gravadas em cinco discos. Além disto, é autor de dois livros de poemas: “Na madrugada dos galos” e “Parece a vida”.

Lavras não tem mais cinema. Mas tem TV por assinatura e conexão com a Internet. Isto é suficiente para alguém estar antenado com tudo o que acontece no país e no mundo. A existência de poucas oportunidades de convivência comunitária, a exemplo de shoppings e eventos culturais, reforça os laços de relacionamento. Este tem sido o grande atrativo das pequenas cidades. Um depoimento interessante pode ser encontrado em http://caroneiro.blogspot.com. Em “Os destinos” veja-se “Lavras do Sul (onde vivi)”: “Lavras me conquistou. Uma terra de pessoas incríveis. De muita simplicidade e hospitalidade. De valorização às tradições campeiras. De festas. De arquitetura que reflete o passado. De muito carinho”. Nas palavras de Gujo Teixeira: “com ‘permiso’ das palavras / cá neste rincão de Lavras / se sente o gosto da vida”.

Lavras, onde o passado entreabre um olho (III)

Logo nos primeiros passeios pela cidade uma decepção pessoal. Durante anos acalentei o sonho delirante de ter as cinzas espalhadas entre as oliveiras do adro da Igreja local., a matriz de Santo Antônio. Foi uma surpresa constatar que há mais de 20 anos não existem mais oliveiras, extirpadas sabe-se lá porque por um pároco que promoveu um novo ajardinamento absolutamente comum e sem charme. É duro saber que um sonho delirante persistiu por tanto tempo sem perspectivas.

A Igreja Matriz de Santo Antonio

Ademais, o roteiro de sempre em cidades pequenas: visita aos colégios freqüentados e às antigas residências, além de o reconhecimento das antigas localizações, “aqui era isto, ali aquilo”, essas coisas. A Padaria São José continua há 60 anos no mesmo lugar, mantendo entre o seu leque de produtos alguns dos que conheci quando criança: biscoitinhos “vovó sentada”, pão sovado, pão d’água.. A Churrascaria Freitas também, um pouco mais nova, mas com cardápio imutável ao longo do tempo. Curiosamente, embora o padroeiro da cidade seja Santo Antônio, o principal atrativo religioso é a Gruta de Nossa Senhora de Lourdes.

A gruta de Nossa senhora de Lourdes

Nos tempos antigos um de seus acessos era bastante difícil, construído entre pedras, razão pela qual servia para o pagamento de muitas promessas. As graças atendidas pela santa estão registradas em placas de agradecimento ao redor da gruta. De lá, o ponto mais alto da cidade, tem-se uma vista panorâmica muito bonita. Ou tinha-se. A gruta era o ponto de referência. De qualquer local podia ser avistada. Mas, a situação mudou com a construção, em sua frente, de uma residência assobradada que lhe obstrui a vista. Não bastasse, ao seu lado encontram-se lupanares. Em um dos quais fomos tomar refrigerantes, sob o olhar desconfiadíssimo de uma das irmãs diante de tanta cortina e sofás de cor vermelha. Que as pessoas abastardem um símbolo da cidade é compreensível, afinal “vanitas vanitatem omnia vanitas” (latim, minha gente). Difícil é aceitar que a prefeitura não tenha tomado as precauções necessárias por meio de um plano de ordenamento territorial.

Lavras, onde o passado entreabre um olho (II)


Lavras não progrediu muito. De 1950 aos dias de hoje experimentou discreta regressão demográfica, que afetou mais a população rural. A população urbana cresceu bastante, pelos últimos dados divulgados pela prefeitura são 4.828 almas. A densidade demográfica do município é de apenas 2,78 hab/km². Embora tenha havido alguma recuperação, o que pode ser comprovado por novos setores habitacionais e casas de luxo, a cidade foi grandemente prejudicada quando deixou de ser parte da ligação rodoviária entre Bagé e Porto Alegre. A ligação asfáltica com a capital passou por fora de Lavras. Bagé, que era a meca cultural e educacional, foi substituída nesta função por Caçapava e São Gabriel, beneficiadas pela ligação por asfalto.

A cidade ganha alguma notoriedade na época do Carnaval, quando atrai um bom fluxo de visitantes. Sua principal característica é a disputa entre dois blocos carnavalescos: o dos Relaxados e o Vai de Qualquer Jeito, que apresentam quadros satíricos em seus desfiles, normalmente referentes ao comportamento dos próprios moradores, além de versos divulgados em duas “rádios”, a Rádio Galocha e a Rádio Mogango. O Bloco dos Relaxados é considerado o mais antigo do Brasil. Seus versos abre-alas: “Sant’Ana do Faxinal / Madrinha dos Relaxados / Auxiliai-nos a cantar / Esses sucessos rimados”. Na década de 60 os desfiles serviam também como um componente de confraternização entre segmentos sociais. A cidade possuía dois clubes, o Comercial, da elite, e o Clube Operário, com associados que hoje seriam considerados afrodescendentes. Trocavam-se visitas: um cortejo de cada clube visitava o outro, fazendo evoluções no meio do salão, sempre acompanhados das respectivas rainhas. Atualmente não existe mais o Clube Operário e seu prédio virou Salão Paroquial. O ator Paulo José, natural do município, tem sido o principal cartão de visitas do carnaval de Lavras, que costuma prestigiar, quando pode, desde os tempos em que era casado com a atriz Dina Sfat.

Lavras, onde o passado entreabre um olho (I)

De Bagé a Lavras do Sul uma epopéia rodoviária. A estrada é de terra e inacreditavelmente tosca. São apenas 72 quilômetros. Que os nativos cruzam em pouco mais de uma hora. Nossa van, de extração escolar e acostumada a trajetos urbanos, trepidou tanto que se aproximou da escala Richter. Percorreu o trecho em duas horas e meia.


Ao chegar, um problema não previsto: a hospedagem. Uma equipe da Rede Brasil Sul de Televisão – RBS TV estava na cidade colhendo depoimentos para a série “Histórias Extraordinárias”. Na década de 50 apareceu em Lavras um certo Mister Bosch, holandês que se arranchou na cidade. Muito simpático, foi inclusive professor particular de inglês. Do mesmo modo repentino como chegou, algum tempo depois arrumou todos os seus pertences e desapareceu de forma misteriosa, deixando tudo na casa aonde residia. Como nunca mais retornou, em 1990, quando supostamente já teria falecido, seus baús foram abertos. Tinha de um tudo, digamos. No meio do estranho legado diversos aparelhos de geodésia, atualmente expostos na Casa de Cultura do município. O episódio incendiou a imaginação de todos, supondo-se que pudesse ter sido alguma espécie de espião. Lavras recebeu seu nome por conta da atividade de exploração de ouro, que no início do século passado trouxe para a cidade ingleses e belgas.

Com as vagas de hotéis e pousadas ocupadas pela equipe da RBS, tivemos que nos socorrer com alguns arranjos de última hora. Uma tia, dona Geny, e uma antiga professora da época de primário, profa. Irma, deram abrigo aos nossos que não conseguiram acomodação.

Bagé, a terra do Analista (II)

No início dos anos 60 o Colégio Estadual, onde fiz o curso científico, era o centro do meu mundo. Alguns dos nossos extraordinários professores: o solene prof. Petrucci, a simpática profa. Silvinha, a figuraça do prof. Contreiras, o afável prof. Avancini. Nosso professor de educação física, Vaguinho, sempre com um cronômetro na mão costumava usar um bordão para movimentar nosso bando de indolentes: “correndo curtinho, para sair mais cedo”. Chegou a técnico do Guarani de Bagé, motivo para nós de imenso orgulho. Acompanhávamos atentamente suas explicações sobre estratégia e os critérios para escalar a equipe. Na época, o principal jogador do Guarani era Max, o centro-avante. Mas foi no estádio do Grêmio Bagé, de camisa jalde-negra, que disputei um torneio início estudantil. Os colegas de colégio: Carlito, nosso decano, dono de um coração imenso, ajudava todo mundo; Déa, extravagante, exagerada, regredia nervosamente quando seus fantasmas apareciam; Jesus, que pretendia ser médico; Terciopelo, goleiro do nosso time, apelidado assim por alusão a Veludo, da Seleção Brasileira, queria ser militar, como o pai. Cadê Sebastião Barbosa, vindo diretamente do interior e de singeleza e bondade incomparáveis? As meninas: Tânia Karam, exuberante; Francisquinha, criada por família rica e de cabelos cor de ouro; e as duas Veras, uma era nossa inteligente líder estudantil (tempos da Juventude Estudantil Católica), a outra vivia permanentemente atormentada. Aonde estarão, seus sonhos foram alcançados, constituíram família, têm filhos?

Mas a van já estava pronta para uma nova partida.