quinta-feira, 17 de abril de 2008

Na soleira da porta

Manoel Hygino dos Santos

Emanuel Medeiros Vieira acaba de lançar, pela Thesaurus, “Cerrado Desterro”, primeiro volume de suas memórias, com orelhas de Victor Alegria. A primeira consideração é de que me parece muito cedo para ingressar nesse gênero.

Emanuel nasceu em Florianópolis no ano em que Vargas desceu as escadas do Catete, em 1945, sem descer à sepultura, como na segunda vez, em 1954. O período de vida do autor é relativamente curto para cogitar de reunir lembranças.

Mas o escritor de Santa Catarina achou que a hora era chegada, e ele mais do que ninguém sabe de si e de seu cronograma e perspectivas. O primeiro volume soma quase quatrocentas páginas, e há mais três temas nos trilhos.

A primeira idéia é de memórias serem elaboradas ou organizadas quando a marcha etária ultrapassa a casa dos 70 anos. Assim fez Pedro Nava, e acertou plenamente. O seu legado para as letras e a história brasileira é fantástico.

Mas Emanuel Medeiros Vieira encontrou motivos para deslanchar antes o projeto. Com o primeiro volume se constata que ele tem razão. Viveu momentos difíceis, duros, até horripilantes da crônica brasileira no século passado.Esteve junto aos acontecimentos, sofreu-os, teria o que revelar.

Andou por estes Brasis que não são tanto mais de meu Deus, para passar aos numerosos demônios que o habitam. Mudou de acampamento com diploma da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul e sentou praça em Brasília, o centro do poder.
Escreveu muito, vários livros, alguns com títulos cinematográficos. Escreve bem, conhece-se e reconhe-se. O primeiro volume de suas memórias traz uma amostra do que será a obra, como um todo. Reúne lembranças, depoimentos em jornais, pensamentos alheios que o impressionaram, fragmentos, que dão testemunho de uma época.
A “revolução” de 1964, com tantos erros cometidos, com crimes e torturas, o pegou em suas malhas. Esteve preso, por motivos em que incorreriam e incorreram homens de bem, jornalistas, escritores, artistas, intelectuais.

De uma hora para outra, descobriu que álcool não faz bem. Todo mundo sabe que assim é, mas somente a experiência pessoal, traumática às vezes, convence. Parou de vez. Nem por isso deixou de ter padecimentos. No início de seu livro, afirma:
“E a Morte, encostada na soleira da porta, quis dançar comigo um tango argentino. Fingi, disfarcei. Cínica, ela abanou. Fechei os olhos, cama de hospital, botei o cobertor na cabeça. Fui baixando, olhei, ela ainda me contemplava, o sorriso desaparecera, olhar mais grave - alguma compaixão?”

À indesejada proposta do tango, disse: “Sou muito desajeitado, não sei dançar, esbarro em todo mundo. Há parceiros melhores”. Mas ela não abria mão de sua preferência. Uma grave enfermidade cardiológica quase o tirou do meio do salão da vida.

Encontrou médicos excelentes, enfermagem de alto nível, carinho e apoio da família. A cirurgia foi plena de êxito, recuperou-se. Agora, verifico que as memórias de Emanuel Medeiros Vieira eram inadiáveis, devem e precisam ser lidas.

Publicado no jornal HOJE EM DIA, 01/04/2008
Transcrito com autorização

terça-feira, 15 de abril de 2008

Obras da Literatura Gauchesca

Raimundo Tadeu Corrêa

Em julho de 2007, Carlos Alberto Crusius, no blog Nova Klaxon http://novaklaxon1.blogspot.com/ referiu-se à iniciativa de um professor universitário de Porto Alegre, que traduziu Odisséia do grego para o português utilizando expressões regionalistas. Questionando o procedimento, Crusius alegava que já existiam na literatura exemplos do que poderia ser um Ulisses regionalista: Fausto, do argentino Estanislao del Campo, e Fidêncio Quixote, do gaúcho Darcy Azambuja.

Fausto, de Estanislao del Campo, publicado pela primeira vez em 1866, foi concebido
a partir da apresentação, em Buenos Aires, da ópera Fausto, de Gounod, esta, por sua vez, uma versão da obra clássica de Goethe. O texto é facilmente encontrado na internet, a exemplo de: http://www.los-poetas.com/b/faust.htm.
Um trecho de Fausto, de Estanislao del Campo:

El Doctor apareció
Y en público se quejó
De que andaba padeciendo.
Dijo que nada podía
Con la cencia que estudió,
Que él a una rubia quería,
Pero que a él la rubia no


Fidêncio Quixote está em “Coxilhas”, contos de Darcy Azambuja, publicação de 1956, vol. 9 da Coleção Província, da Editora Globo. Meu exemplar foi conseguido graças à pertinácia de Andréa Lima Leal e ao sempre eficiente trabalho de pesquisa da Martins Livreiro.

A figura de Fidêncio Quixote, a exemplo do seu referencial espanhol, é comovente. A imaginação aos poucos toma o lugar da realidade. Capitão Fidêncio na revolução de 23, subdelegado de polícia depois, não se deu bem em tempos de paz: “acampara no passado, com uma tropa de saudades encurraladas no coração”.

Fidêncio Quixote não foi um tipo raro no Rio Grande do Sul. Meu avô materno, Antonio Fagundes, barbeiro, embora não fizesse manifestações explícitas a respeito, era um nostálgico dos tempos de revolução. Qualquer uma. Nos meus imberbes seis, sete anos de idade, me ensinava o modo mais prático de se degolar um paysano. Bueno, foram apenas explicações didáticas sobre procedimentos. Não houve nenhum exercício prático de aplicação dos conhecimentos. É provável, no entanto, que imaginasse coisas, quando afeitasse alguém com navalha. Afiadíssima, Solingen, alemã. Mas, ao contrário de Fidêncio Quixote, acostumou-se com as platitudes da vida civil. Morreu como um devotado Congregado Mariano.

A literatura gauchesca ainda tem um exemplar notável, um dos maiores: El Gaucho Martin Fierro, do argentino José Hernandez. Um gaúcho que tudo enfrentou na vida.


Soy gaucho, y entiendaló
Como mi lengua lo explica:
Para mi la tierra es chica
Y pudiera ser mayor;
Ni la víbora me pica
Ni quema mi frente el sol.
...
Mi gloria es vivir tan libre
Como el pájaro del cielo:
No hago nido en este suelo
Ande hay tanto que sufrir,
Y naides me ha de seguir
Cuando yo remuento el vuelo.



O Rio Grande do Sul produziu também Antônio Chimango, de Amaro Juvenal, pseudônimo de Ramiro Barcelos, publicado em 1935, uma sátira política vigorosa, referência a Borges de Medeiros, nascido em Caçapava do Sul e Governador do Rio Grande do Sul por muitos anos. Transcendendo o intento de sátira, o texto se notabilizou por sua descrição das condições de vida no campo.

Para les contar a vida
Saco de mala o bandônio
A vida de um tal Antonio
Chimango por sobrenome
Magro como lobisome
Mesquinho como o demônio

Nos cerros de Caçapava
Foi que viu a luz do dia,
À hora d’Ave Maria,
De uma tarde meio suja;
Logo cantou a coruja
Em honra de quem nascia.

Veio ao mundo tão flaquito,
Tão esmirrado e chochinho
Que, ao finado seu padrinho,
Disse espantada a comadre:
“Virgem do céu, Santo Padre!
Isto é gente ou passarinho?”


Martin Fierro e Antonio Chimango são auto-referenciados em suas respectivas culturas. Fidêncio Quixote e Fausto, de Estanislao del Campo, possuem referenciais europeus.

Mas há um caso interessante e pouco conhecido de literatura gauchesca: “Los partes de Don Menchaca”, de Simplicio Bobadilla. Don Menchaca era comissário de polícia em Puntas del Arrayán Chico, no Uruguai. Por não saber escrever nem assinar o nome, seus relatórios eram redigidos e firmados por Esmeraldo Zipitrías, o escrevente, que apesar de pouco mais que alfabetizado era uma sumidade para as circunstâncias locais. Condição que volta e meia incluía nos relatórios, como quando recebeu uma licença de dois meses: “licensé por dos meses en su abrumadora tarea plumaria al Escribiente Don Esmeraldo Zipitrías, funsionario de basta coltura y de inempardable fasilidá de palavra hablada y escrita, que asegún nadies lo inora es la persona que posé letra más linda y mejor hortografía en toda la jurisdisión de mi encumbensia”. Don Esmeraldo Zipitrías rebuscava o texto dos relatórios com referências clássicas: ora era o Campo de Agramante, local onde todos brigam com todos e retirado de uma passagem de Dom Quixote, ora era a menção a “la Parca cruel [que] cortó el hilo bitalisio de la esistensia del finado Merejildo”. As Parcas eram três deusas gregas que determinavam o curso da vida humana.

Don Menchaca era o supra-sumo do indivíduo autoritário e atrabiliário. Isentava os poderosos, dos crimes que cometiam. Superfaturava a necessidade de recursos para a sua Comissaria, indicando necessidades financeiras extras para atender ao seu “personal cabalar”, os cavalos pertencentes ao serviço. Reivindicava o cumprimento da promessa de ter incorporado ao seu soldo o de três guardas civis, que só existiriam na folha de pagamento, o que permitiria melhorar sua remuneração. E argumentava: “qué sinifican para las arcas de la Patria, que al fin y al cabo es nuestra madre y tiene el dever de belar por el porbenir de sus hijos, los míseros suelditos de tres guardiasibiles imajinarios, que sóllo figurarán en las planillas, y siempre saldrán más económicos que los guardiasibiles de verdá, en birtú de que estes últimos consumen botas, ponchos, sables y otros engredientes propios de la embestidura policial”. Isto em 1895!!

Don Menchaca relatava casos de “suicidio personal, cometido por el causante en perjuisio direto de su proprio corpo”. Encerrava inquéritos por razões óbvias, como no caso de uma execução, quando considerou como “natural” a morte de um cidadão que levou cinco tiros, pois isto levava ao seu “rápido fenecimiento”. Às vezes invadia residências com um bom propósito, quando uma ocasião em que escutou os gritos de “Degollación! Degollación!”, para só então descobrir que se tratava de um pai chamando sua filha, que teve a infelicidade de ser batizada com o nome que constava no almanaque no dia do seu nascimento: “Degollación de los Santos Inocentes”. Para ele não havia nada mais lindo do que “ir a disfrutar de la guerra, que es la mallor de las fiestas tradisionales para los bástagos de nuestro suelo natibo, ya que en ella se pueden carnear bacas gordas y montar cualisquier caballo ajeno sin que le bengan a uno com reclamasiones los dãnificados, como acontece por desgrasia en épocas de paz”. Meu exemplar de “Los partes de Don Menchaca”, de Simplicio Bobadilla, é de 1965, 3ª ed., Libreria Blundi, Montevidéu.

Literatura gauchesca é isto aí.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Aquém do Oiapoque: em direção ao Brasil pouco conhecido

Marcos Formiga*

O Piauí é o terceiro maior Estado da Região Nordeste, mas sua costa de apenas 66 km é a menor dentre todos os Estados litorâneos brasileiros. O Rio Parnaíba em seus 1485Km, ao desaguar no Atlântico forma um grandioso Delta com cerca de 90 ilhas em um cenário surpreendente. Delta do Parnaíba

Neste verão, fomos buscar o estuário do Parnaíba com suas praias extensas, dunas de areia branca e lagoas de água doce. Um santuário ecológico onde o cerrado e a caatinga cedem lugar aos cocais com a predominância da carnaúba – “a arvore da vida”. Delta do Parnaíba

Para se chegar do Centro-Sul aquele paraíso nordestino, a melhor opção é por via aérea até Teresina, e de lá por rodovia são 340 Km até Parnaíba e mais 60 Km até Coqueiro da Praia, na divisa com o Ceará; antes fica Luiz Correia com seu Porto inconcluso e a famosa Praia dos Coqueiros.Praia dos Coqueiros

O litoral piauiense dispõe de uma razoável infra-estrutura turística com hotéis de qualidade e estradas bem conservadas. Estranho é o isolamento com é tratada aquela Região. Ela clama por uma melhor utilização do seu potencial turístico. Parnaíba, a segunda maior cidade do Estado com mais de 200 mil habitantes, têm belos casarões do apogeu das exportações da cera de carnaúba, onde desponta o seu belíssimo conjunto arquitetônico do Porto das Barcas. No entanto não dispõe de nenhuma ligação área, nem mesmo aviação regional. Seu aeroporto devidamente equipado continua ocioso.

Injustiça total com aquela bela Região que precisa de maior divulgação, e até mesmo ser (re) descoberta pelos brasileiros, e em especial, pelo Ministério do Turismo, cuja a presença não se faz sentir.

Antes de chegar à Região do Delta, uma visita obrigatória ao Parque Nacional de Sete Cidades. Sentia-me em débito com o Piauí, pois já escalara a Muralha da China e desconhecia as maravilhas de Sete Cidades!Parque de Sete Cidades

O Piauí é pleno em tesouros arqueológicos. No Sul do Estado localiza-se o esplendor da Serra da Capivara, que sob a liderança da arqueóloga Niede Guidon, teve suas pinturas rupestres declaradas Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Lá se encontra a Fundação Museu do Homem Americano, considerado o melhor museu de todo o Nordeste, justa homenagem ao mais antigo povoamento do Continente Americano.Serra da Capivara

Sete Cidades, deveria replicar o trabalho ímpar da Serra da Capivara, e o Estado do Piauí poderia organizar um roteiro arqueológico que se iniciaria no extremo Sul do Estado e chegaria até o extremo Norte, em um percurso de quase 1000 Km, de um Brasil pouco conhecido, mas rico em paisagens, povo hospitaleiro e culinária exótica. Ao planejar sua próxima viagem, inclua o Piauí em seu roteiro!


Brasília, abril de 2008
(*)Marcos Formiga – um turista bissexto