quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

OS OUVIDORES NA HISTÓRIA DO BRASIL

Durante o período do Brasil Colônia, que vai desde o descobrimento até a Independência, em 1822, a administração portuguesa contou com a figura do ouvidor. Em um primeiro momento, no regime das capitanias. Logo a seguir, durante a fase do Governo real para o Brasil, depois denominados Governos-Gerais.

Duas narrativas sobre o nascimento do país

(1) História da Capitania de São Vicente, Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777) – Edições do Senado Federal, v.25

Depois que se recolheu da Índia o primeiro descobridor dela Vasco da Gama, que chegou a Lisboa em 10 de julho do ano de1499, saiu para a Índia com segunda armada em 9 de março de 1500, Pedro Álvares Cabral, filho de Fernão Álvares Cabral, senhor de Azurara,alcaide-mor de Belmonte, e adiantado da Beira, que avistou as Canárias a 14 do dito mês de março: a 22 passou a ilha de S. Tiago, e obrigado de um temporal avistou a 24 de abril, última oitava da páscoa, terra que era oposta a costa da África e demandava a oeste, e reconhecida pelo mestre da capitania, que lá foi, mandou Cabral surgir a um porto, que por ser bom lhe ficou o nome de – Porto Seguro –, e se meteu por padrão uma cruz, e se chamou – Terra de Santa Cruz.1
1 João de Barros, Dec. 1ª, Livr. 5. Gaspar Fructuoso, Liv.1, Cap.1, D. Ant. Caetano de Sousa, Genealog. da Casa Real Port. Vid. d’El-Rey D. João II e D. Manoel.

(2) História do Brasil, Frei Vicente Salvador (1627)

A terra do Brasil, que está na América, uma das quatro partes do mundo, não se descobriu de propósito, e de principal intento; mas acaso indo Pedro Álvares Cabral, por mandado de el-rei d. Manuel, no ano de 1500 para as Índias, por capitão-mor de 12 naus, afastando-se da costa de Guiné, que já era descoberta ao Oriente, achou estoutra ao Ocidente, da qual não havia notícia alguma, foi costeando alguns dias com tormenta até chegar a um porto seguro, do qual a terra vizinha ficou com o mesmo nome.


Os ouvidores no Brasil Colônia

Para viabilizar a posse e colonização do Brasil, El-Rei D. João III instituiu o regime das capitanias. As cartas de doação, além da atribuição da propriedade territorial, investiam os beneficiários de poderes administrativos, entre os quais o monopólio de atribuir a investidura do cargo de “ouvidor, supremo funcionário judicial nas capitanias e por cujo intermédio atuavam os donatários nos âmbitos civil e penal” (LACERDA: 2008). O exercício do ouvidor era trienal e renovável, sujeito a exoneração por justo motivo ou sem ele. O primeiro ouvidor de que se tem notícia foi Antônio de Oliveira, “cavaleiro fidalgo da casa real” (LEME: 2004), nomeado em 1537 para a capitania de São Vicente, de Martim Afonso de Sousa.

Como o sistema de capitanias apresentou muitos problemas, para corrigi-los El-Rei decide instituir um Governo real para o Brasil, e nomeia, em 1549, Tomé de Sousa para o cargo de Governador Geral, tendo como principais auxiliares, um Capitão-mor, um Provedor-mor e um Ouvidor-Geral, Pêro Borges, cujas atribuições eram estabelecidas por regimentos.


A história não conservou o regimento do primeiro Ouvidor-Geral, sendo conhecido, porém, o que, em 1628, foi dado ao Ouvidor-Geral Paulo Leitão de Abreu. Algumas das atribuições constantes deste regimento:
• criminalmente julgava por ação nova escravos, gentios, peões cristãos e homens livres, efetuando o julgamento em parceria com o governador;
• com a assistência do governador-geral, processava os governadores das capitanias encontrados em culpa grave;
• informava-se da conduta geral dos capitães-governadores das capitanias, bem assim sobre a das câmaras e seus oficiais como do quanto mais conviesse à boa governança da terra; e
• exarava sentenças em nome do monarca, assinando-as e apondo-lhes o selo das armas reais.

Os ouvidores percebiam 600 réis de ordenados e 300 de propinas. As propinas eram quantias pagas ao Estado, uma espécie de complemento financeiro aos ordenados pagos aos oficiais da administração colonial.

O termo “ouvidor”, nesta acepção de magistrado, causa alguma estranheza se comparado com a atual concepção. Porém, Raphael Bluteau, em seu Vocabulario portuguez e latino (1712-1728), esclarece: “Ouvidor é o oficial de justiça, que ouve e despacha, conforme o Regime de sua Ouvidoria”. Porque em Portugal havia Ouvidor do crime, Ouvidor da alfândega, Ouvidor posto por El-Rei em algum lugar, etc. E conclui: “O nome e ofício de Ouvidor é muito próprio e particular dos Ministros de Justiça, porque tem a obrigação de ouvir”, acrescentando que para os antigos jurisconsultos latinos o nome de Ouvidor se confunde com o de Juiz.

O cargo de ouvidor foi um dos integrantes de nossa estrutura judiciária - que teve, entre outros, corregedores, provedores, juízes de fora, etc. -, persistindo até 1825, portanto, até o início do Império. O atual significado do termo ouvidor, tanto em órgãos públicos como em instituições privadas, segue o modelo conceitual do ombudsman sueco. O que já é outra história...


Bibliografia consultada:


AVELLAR, Hélio de Alcântara. História Administrativa e Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: FENAME/MEC, 1970.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino (1712-1728). Disponível em http://www.ieb.usp.br/online/index.asp.
LACERDA, Arthur Virmond de. As Ouvidorias do Brasil Colônia. Curitiba: Juruá Editora, 2008.
LEME, Pedro Taques de Almeida Pais, 1714-1777. História da Capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.
MELLO, Isabele de Matos Pereira de Mello. Administração, justiça e poder: os Ouvidores Gerais e suas correições na cidade do Rio de Janeiro (1624-1696). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2009.
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-1627). Curitiba: Juruá Editoria, 2007.

REGISTROS HISTÓRICOS SOBRE OS OUVIDORES

Presentes durante tanto tempo na história do Brasil, os ouvidores coloniais teriam necessariamente que receber menção na literatura da época. A seguir, dois exemplos.

Quando um Ouvidor é reivindicado


Em “A Escrita no Brasil Colônia”, de Vera Lúcia Costa Acioli (Recife: FUNDAJ, Editora Massangana; UFPE, Editora Universitária, 1994), encontra-se a transcrição da carta que Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, encaminhou a El-Rei Dom João III em 20 de dezembro de 1546. Em um trecho é solicitada a presença de um Ouvidor (grafia original):

E nestas terras de Pero Lopez de Souza, que Deus aja, que estão aqui jumto comiguo, mande Vossa Alteza que ponhão ahi ouvidor que saiba e emtenda ho que há de fazer, porque tem ahi quatro pesoas que milhor seria não estarem ahi, porque outra fazenda nem fruito não fazem senão fazer brasill d’armadores, e como quero castigar degradados vão se para llaa e fazem cousas por omde mereciam já todos ser enforcados.

Quando um Ouvidor tem sua reivindicação atendida


Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista, nasceu em 1756, na Bahia. Foi enviado para a região amazônica em 1783. Durante quatro anos exploraria a bacia amazônica, em especial os rios Negro e Branco. A grande quantidade de informações que produziu – levantamentos completos da natureza, do povoamento e dos aspectos econômicos - foi registrada em “Viagem Filosófica ao Rio Negro” (Belém: Museu Goeldi. Edição fac-similar da primeira edição, publicada em volumes pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, entre 1885 e 1888).

No diário de sua expedição, Alexandre Rodrigues Ferreira transcreve aviso de 22 de Janeiro de 1764, despachado por Sua Majestade para o Intendente do Rio Negro, Fernando da Costa d’Athaide Teive:

O ouvidor do Rio-Negro fez presente a sua Magestade, que não podia servir os seus logares de ouvidor, e intendente geral das povoações do seu distrito, sem que tivesse uma embarcação prompta para fazer as correições, e visita das mesmas povoções. E o mesmo senhor foi servido ordenar, que V.S. lhe mandasse fazer prompto um bote de cinco remos por banda, para o dito ministério o ter na capitania d’aquelle governo, e sahir promptamente e sem demora a todas as occasiões que se offerecerem do serviço de Sua Magestade; o que V.S. fará executar com a maior promptidão.

UMA CAMA PARA O OUVIDOR

A historinha a seguir é transcrita de “Seleções da História do Brasil e do Mundo”, fascículo nº 2, de autoria de Sergio Macedo e Renato Silva, série didática editada em 1956 pela Editora Conquista, do Rio de Janeiro. Na transcrição foi mantida a acentuação original.


1 – A vila de São Paulo agita-se extraordinariamente naquela enevoada manhã de agosto de 1620. É que o Ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho está a caminho para a regular visitação de aplicação das leis e verificação do exato cumprimento das Ordenações de El-Rei Nosso Senhor. Os homens importantes reúnem-se em conferência. A questão de acomodação está resolvida. O grande homem ficará na casa da Câmara, naturalmente. Mas onde dormirá a alta-personagem? E os homens bons da vila agitam-se e discutem. E o assunto passa a ser objeto das preocupações gerais.


2 – Sim, o problema é muito sério, porque São Paulo está a braços, então, com terrível falta de móveis. Não existem camas dignas dessa designação, mas humildes catres, onde, diz-se, não é possível deitar-se a imponente figura de um senhor Ouvidor. Alguém lembra, porém, que há uma cama, na pequena cidade. Seu proprietário é Gonçalo Pires. Respiram os influentes. Está solucionada a questão, pensam. Ninguém imagina que Gonçalo possa sequer pensar em opor dificuldades à solução do caso, tanto mais que seria uma honra concorrer para o conforto do senhor Ouvidor...


3 – Mas Gonçalo Pires é teimoso, caprichoso ao extremo. Procurado pelos vereadores recusa-se a qualquer negócio, mostra-se surdo a todos os argumentos, indiferente a todas as súplicas. Não quer emprestar o leito que possui. Não quer nada. Quer continuar dormindo no seu rico leito, única e exclusivamente. Que lhe importa o Ouvidor? Êle que recoste as banhas onde bem entender, é a resposta que dá aos homens da vereança. E que não lhe amolem a paciência, pois está disposto a defender com unhas e dentes o móvel onde repousa o corpo todas as noites.


4 – A questão torna-se muito séria. Os vereadores confabulam, discutem, sem encontrar uma solução para o caso. Desesperados, dirigem-se ao Juiz, que decide ser a atitude de Gonçalo Pires um ato de rebeldia contra El-Rei, na pessoa do senhor Ouvidor. Que se dirijam a Gonçalo Pires, portanto, os oficiais de justiça e apanhem a cama, de qualquer modo, nem que seja à fôrça. As ordens são prontamente cumpridas. Gonçalo tenta resistir e a cama lhe é arrancada pràticamente a muque, de nada valendo os protestos e as más palavras que profere no auge da indignação.


5 – Gonçalo Pires recorre à Justiça. O Ouvidor já partiu e querem devolver-lhe a cama e pagar-lhe um aluguel pelo móvel. Mas ele declara que o leito não está no estado em que lho tomaram. “Tem manchas”, afirma, diante do riso de uns e da indignação de outros. E recusa-se a receber de volta a cama, a “não ser no estado em que lha tiraram”. Durante sete anos discute-se a questão. A Câmara instando para que Gonçalo receba o leito; este se recusando a recebê-lo, acusando os vereadores. Afinal, Gonçalo Pires falece, dizem que de mágoa “diante do vexame que sofrera”...

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

FÓRUM INTERNACIONAL DE OUVIDORIAS

Realizou-se em Brasíia, no período de 10 a 12 de novembro de 2009, o I Fórum Internacional Ouvidorias/Ombudsman/Defensores Del Pueblo/Provedores de Justiça/Médiateur de La Republique. O evento, promovido pela Ouvidoria-Geral da União, teve lugar na Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio (CNTC) e seu tema central foi “O Fortalecimento da Democracia Paarticipativa”. Estiveram presentes representantes de 19 países. Grosso modo, a expressão Ombudsman é utilizada na Suécia e no Canadá, Defensores Del Pueblo nos países hispânicos, Provedores de Justiça em Portugal e países africanos de língua portuguesa, e Médiateur de La Republique na França. A programação completa do Fórum pode ser acessada em http://www.cgu.gov.br/Eventos/Ouvidoria_ForumInternacional2009/Index.asp e um apanhado do desenvolvimento dos trabalhos encontra-se no blog “A Ouvidoria vai falar” http://blig.ig.com.br/aouvidoriavaifalar/.

Nancir Sathler (Ouvidora da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro), Eliana Pinto (Ouvidora-Geral da União), Raimundo Tadeu Corrêa (Ouvidor-Geral do Ministério da Ciência e Tecnologia) e Carmen Calado (Ouvidora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Carmen Calado, Nancir Sathler, Juan José Dutto (Defensor Del Pueblo da província de Néuquen, Argentina) e Raimundo Tadeu Corrêa

Alfredo José de Sousa (Provedor de Justiça de Portugal), Nancir Sathler, Carmen Calado e Raimundo Tadeu Corrêa

Nancir Sathler, Carmelita Pires (ex-Ministra da Justiça de Guiné Bissau) e Raimundo Tadeu Corrêa

Nancir Sathler, Kjell Swanström (Chefe do Escritório do Ombudsman Parlamentar da Suécia) e Raimundo Tadeu Corrêa

Ian Darling (Presidente do Fórum Canadense de Ombudsman), Nancir Sathler, Michael Mills (Ombudsman de Portland, Oregon, Estados Unidos), Raimundo Tadeu Corrêa e Piedade (Ouvidora da Secretaria de Saúde de Campo Grande, MS)

Lançamento de livro

No Fórum Internacional de Ouvidorias foi lançado o livro “Modalidades de Ouvidoria Pública no Brasil”, organizado por Eliana Pinto, Ouvidora-Geral da União, e Rubens Pinto Lyra, professor doutor pela Universidade de Nancy, França. A obra foi publicada pela Editora da Universidade Federal da Paraíba.

O Ouvidor do MCT e Eliana Pinto, Ouvidora-Geral da União

Rubens Pinto Lyra e o Ouvidor do MCT

Momento de refrigério

Batalhadores incansáveis, os ouvidores desfrutam dos prazeres do convívio social.

À mesa do restaurante Mangai, da esquerda para a direita: Carmen Calado, Raimundo Tadeu Corrêa, Nancir Sathler, Magda (Ouvidora da Universidade Federal de Mossoró, RN) e Marcos César Ponce Garcia (Ouvidor Geral do município de Guarujá, SP)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

GESTÃO DA EDUCAÇÃO NO MUNICÍPIO


Em "Gestão da Educação no Município: sistema, conselho e plano", Genuíno Bordignon registra sua experiência e reflexão sobre a gestão da educação no município. Trata-se de uma obra inédita, que nos apresenta a história e os princípios do sistema, do conselho e do plano municipal de educação, bem como orientações práticas de como implementá-los.

Logo na Apresentação Genuino Bordignon desvenda sua origem: "Nascido no dia dos namorados de 1940, os povos no desamor da guerra, nono filho de Ângelo e Alba, humildes agricultores, à beira da pobreza e do analfabetismo, seres humanos inefáveis e radicalmente éticos, cresci num ninho de afeto, carinho e valores que constituíram o fundamento primeiro de minha trajetória humana. Aos dez anos, na escolinha primária rural, fui alfabetizado no português, porque a língua materna fora o dialeto italiano do Veneto”. Após iniciar sua trajetória profissional em Lages (SC), radicou-se em Brasília, onde exerceu diversos cargos: foi secretário executivo do Conselho Federal de Educação (atual CNE), assessor da Capes, diretor da Fundação de Assistência ao Estudante (atual FNDE) e Diretor da Faculdade de Educação da UnB. Atualmente é professor aposentado da UnB.

Em seu livro, Genuíno destaca a importância do “regime de colaboração” entre os entes federados, defende a gestão democrática como condição da qualidade sociocultural da educação e afirma que é preciso garantir a participação de todas as pessoas. Em algumas localidades, a escola é o único equipamento público ao qual a população empobrecida tem acesso. Construí-la com qualidade para todos significa buscar a garantia dos direitos humanos e da consolidação da democracia em nosso país. O livro traz referenciais teórico-práticos que, certamente, facilitarão e fortalecerão o trabalho de gestores públicos educacionais, bem como os estudos e pesquisas de estudantes, graduados e pós-graduados de áreas vinculadas direta ou indiretamente às políticas públicas em geral.

"Gestão da Educação no Município: sistema, conselho e plano" foi publicado em 2009 pela Editora e Livraria Instituto Paulo Freire como volume 3 da coleção Educação Cidadã, e pode ser solicitado pelo e-mail livraria@paulofreire.org ou pelo telefone (11) 3021-1168 - ramal 262.

LANÇAMENTO DO ROMANCE "OLHOS AZUIS - AO SUL DO EFÊMERO"


O romance "Olhos Azuis - Ao Sul do Efêmero", de Emanuel Medeiros Vieira, Thesaurus Editora/FAC 2009, será lançado na Feira do Livro de Brasília, no dia 23 de novembro de 2009, segunda-feira, das 19:30 às 20:30 hs, no Espaço Mangueira Diniz, no Pátio Brasil, como programação integrante da Feira do Livro de Brasília.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

DesterroCerradoResenha: Emanuel Medeiros Vieira, o sempre vivo!

Silvério da Costa*

Depois de algum tempo no limbo (mais de um ano), mas sem que por detrás disso haja qualquer má intenção ou o propósito de protelar a leitura, li “Cerrado Desterro” (Thesaurus Editora, Brasília, 2008), o primeiro de uma trilogia de Emanuel Medeiros Vieira catarinense da cepa, mas vivendo em Brasília há muitos anos.

Emanuel, grande amigo, apesar de não nos conhecermos pessoalmente, é, para mim, sem demagogia, um dos maiores escritores deste país, principalmente na área do conto e da poesia. Mas esse livro nada tem a ver com tais gêneros. O que tenho em mãos é um livro de memórias (autobiográfico), um painel dramático de parte de sua atribulada vida. São quase 400 páginas para ler e refletir, até porque na página 215, ele faz um PEDIDO, que me parece desnecessário, mas que é justíssimo: pede àqueles que dispuserem a lê-lo, para que o façam por inteiro.

Eu penso, sinceramente, que seria uma falta de respeito não ler o livro de cabo a rabo. Posso assegurar que só tem a perder quem não ler Emanuel Medeiros Vieira.

“Cerrado Desterro” é um livro visceral, que fala das dores físicas e psicológicas carregadas por Emanuel, ao longo dos seus, hoje, 64 anos. É uma viagem que ele faz no tempo, registrando as passagens mais significativas de sua existência.

No fundo, o livro não deixa de ser uma grande ode à vida, ou, se preferirem, uma grande epopéia, porque canta, epicamente, os bons e os maus bocados que lhe couberam como herança do destino.

Esse advogado de formação, mas escritor por opção, mergulha no seu próprio íntimo, para falar da morte, dos que se foram; da traição e do embuste de certos falsos amigos; do terror da perseguição e da prisão, durante a ditadura militar; e do pavor que a “indesejada das gentes” lhe impôs, no leito de um hospital, mostrando-lhe as garras assassinas, que quase o levaram, em decorrência de uma operação na coluna, seguida de uma infecção (e tudo teria ido por água abaixo, se ele não tivesse sabido responder à morte com a vontade de viver). Enfim são depoimentos e reflexões que mexem com a emoção do leitor.

O seu relato tocou-me profundamente, escrito com o silício da mortificação que dignifica os homens de fibra! Os destemidos!
Emanuel Medeiros Vieira, o emparedado entre a vida e a morte, resolveu passar a sua vida a limpo, fazendo uma espécie de acerto de contas com o seu público leitor, e o fez como poucos , em tais circunstâncias o fariam/farão.

Eu sei que o desalento nunca foi a sua praia. Por isso, segue, altivamente, dando o seu recado. Além do mais, continua sendo o grande humanista que sempre foi, e que a posteridade ainda lhe reserve, ainda, muitos anos de vida, para que ela seja testemunha das muitas e inolvidáveis alegrias e exemplos de sabedoria que, certamente, nos proporcionará!

Embora rodeada de abismos, a alma de Emanuel é imensurável, porque portadora da vida vivificada. Parabéns!

*Silvério da Costa é escritor.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

ESPECIALISTA EM SEGUNDO ESCALÃO

Raimundo Tadeu Corrêa

Como nas fábulas, tudo começou quando presenteei um colega com a fita do Elomar, “Das barrancas do Rio Gavião”. Isto foi lá pelo final dos anos 70. O camarada, que conhecia bem nosso panorama musical, tendo mantido no exterior um programa de rádio a respeito, fez um estardalhaço: “que coisa fantástica, como tinha descoberto aquele disco?” Mais do que lisonjeado, fiquei surpreso. Tinha lido alguma coisa a respeito em algum lugar. A receita era simples: para encontrar boas coisas é preciso consultar boas fontes. Aparentemente muitos não seguem a regrinha. À época existia uma cobertura ampla dos lançamentos de discos, como a da revista Somtrês. Atualmente a melhor aposta tem sido por meio dos jornais. O Estadão, por exemplo, é excelente na cobertura de lançamentos.

Até algum momento da década de 80 era relativamente fácil encontrar discos de jovens artistas. Foi quando comprei discos de Cláudio Popó, “Vendedor de vidas”, e Rogério do Maranhão, “Patíbulo” e “Santo de Casa”. Alguém já ouviu falar? A indústria fonográfica apostava em novos talentos de uma forma inimaginável hoje em dia.

Assim, comprando um aqui outro acolá, desenvolvi o gosto pelas novidades e acalentei um sonho que não se concretizou: ter lançamentos de todos os cantos do país, o que foi realizado de forma admirável pelas coletâneas de Marcus Pereira: Música Popular do Sul, Música Popular do Nordeste e Música Popular do Centro-Oeste/Sudeste. Meu projeto, que incluía discos e livros do mesmo Estado, ficou só na intenção.

Apesar de a Internet ter facilitado muita coisa, existe um mercado que está fora da rede, principalmente as manifestações culturais regionais. No processo de busca pelas novidades tive a sorte de contar com várias colaborações. O que me permitiu conseguir, por exemplo, Grupo Acaba - Os Canta-dores do Pantanal, de Mato Grosso do Sul, João Bá, da Bahia, Socorro Lira, de Campina Grande, Elino Julião, do Rio Grande do Norte, e Giovanna Farias, filha de Vital Farias, atualmente em João Pessoa da Paraíba. Ganha-se, afinal, algum conhecimento no ramo.

Quando Roberto Amaral foi Ministro da Ciência e Tecnologia, tive a oportunidade de conviver com José Belizário Nunes, um dos seus assessores. Belizário era o principal redator dos discursos do ministro. Nesta tarefa era de uma tão grande concentração que ignoraria até alguma hecatombe nuclear porventura ocorrida no prédio vizinho. No entanto, nas horas de distensão, de relaxamento, era um sujeito de uma cordialidade extraordinária. Conhecia quase todo o território brasileiro, além de possuir uma boa discoteca e uma invejável coleção de livros de poesia, cronista e poeta bissexto que era. Graças aos seus hobbies consegui, entre inúmeros outros títulos, um grande disco de Chet Baker, “Let’s Get Lost” . Tive também a oportunidade de ler e até mesmo conhecer vários livros dos nossos poetas, como José Chagas, do Maranhão, e Mauro Mota, de Pernambuco: “Ó prematuras mulheres, / fostes, na velocidade / dos jeeps, às garçonnières / da Praia da Piedade” (“Boletim Sentimental da Guerra no Recife”, in “Elegias”, de 1975). Belizário enriquecia o empréstimo com comentários literários, além de relatos da convivência que teve com um e outro. Costumava dizer que a cultura inútil era muito útil para animar reuniões sociais.

De sua parte, gostava de meus “causos” e da movimentação que fazia para conseguir discos daqueles artistas desconhecidos. Um belo dia resumiu tudo em uma exclamação: “mas você é um especialista em segundo escalão”!
A amizade perdurou, mesmo após sua saída do MCT. Grande contador de histórias, Belizário foi finalmente chamado pelo Altíssimo. Certamente para ajudar a entreter aqueles espíritos pios que, em meio a constantes louvores ao Senhor, ainda têm uma eternidade pela frente.

Por ocasião da missa de 7º dia em sua memória, a família distribuiu um folhetinho que reproduzia , de um dos seus textos, um legado comportamental:

Ao amigo camarada: que tenha muitos natais, viva cinco ou seis mil anos – se puder, um pouco mais; vote em muitas eleições, brinque muitos carnavais, acampe em claras planícies e vales imperiais; tenha roçado e fazenda, muitas frutas tropicais, armada, cavalaria, castelos medievais, dezenas de anéis nos dedos, de variados metais, muito dinheiro no bolso e objetos pessoais, seu retrato nas revistas, entrevistas nos jornais; que tenha uma sogra só, pois uma já é demais; brigue em briga de boteco, porém, na guerra, jamais; que tenha sortes constantes e azares eventuais, pois é próprio deste tempo ter os dias desiguais; que implante mil plataformas em mares fundamentais; curta bem sua poesia, sua paz, sua alegria, seus recursos naturais.

Belizário falou e disse.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Saint Exupéry - Aviador por profissão, escritor por vocação (e devoção)

Emanuel Medeiros Vieira

Saint Éxupery

Antoine de Saint Exupéry (1900-1944) deve estar no vasto Mediterrâneo. Nunca acharam o corpo deste aviador por profissão e escritor por vocação (e devoção).
Não importa. Ele é do mar e de todos nós.
O grande Antoine um dia desceu na nossa ilha, no Campeche (felizmente, antes de sua favelização).
Não, não é, como muitos pensam, um escritor das misses que, com suas curtas massas encefálicas, nunca o entenderam. É maior. Leiam só o final de “Terra dos Homens”, na tradução de Braga.

Traduzi trechos do livro de Saint Éxupery.
Mas a versão do maior cronista brasileiro de todos os tempos é perfeita.
Leiam: “O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.
Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o homem.”

ARTHUR RIMBAUD

Tive a ousadia de fazer uma tradução de “O Barco Bêbado”, de Arthur Rimbaud (1854-1891), um dos mais belos poemas de todos os tempos.
Algumas fontes informam que ele escreveu essa obra-prima aos 17 anos.
Ele nasceu na cidade francesa de Charleville.
Foi um aluno brilhante, e aos 15 anos já havia ganho vários prêmios por composições em latim.
Em 1871, escreve vários poemas, que envia ao já célebre poeta Paulo Verlaine (1844-1896).
No mesmo ano, vai para Paris, onde Verlaine o introduz à comunidade literária.
Resumindo: Verlaine abandona a mulher e o filho por sua causa.
Em 1872, os dois vão até Londres e Bruxelas.

Jean-Nicola Arthur Rimbaud

No ano seguinte, em meio a uma briga, Verlaine atira duas vezes no amante, e é condenado a dois anos de prisão.
Rimbaud volta a Charleville e termina o livro “Une saison en enfer” (“Uma temporada no inferno”).
Esta obra inspirou o cineasta Jean Luc Godard (1930) na construção de um de seus mais importantes e belos filmes: “O Demônio das Onze Horas” (“Pierrot le Fou”), de 1965.
Em 1874, Rimbaud retorna a Londres e conclui “Illuminations” (“Iluminações”).
Aos 21 anos pára de escrever.
Sim, desiste da poesia na casa dos 20 anos.
Decide trabalhar, viaja muito, vive “relacionamentos amorosos com exóticas nativas e ganhando a vida como traficante e comerciante de armas.” (Paulo Hecker Filho).
Volta à França em 1871 e tem a perna amputada.
Morre em Marselha, em novembro de 1891, aos 37 anos.

Vinícius de Moraes (que leu tudo) confessou a Paulo Hecker Filho: “O maior de todos é Rimbaud.”
Henry Miller afirmou: “A última palavra do desespero, da audácia, da maldição. A poesia tudo deve a Rimbaud. Até agora ninguém o superou em audácia e imaginação.”

POESIA

Os poetas, como os cegos, enxergam na escuridão.
Hoelderlin já nos ensinava: “O que permanece, fundam-no os poetas.”
Alphonsus de Guimaraens Filho escreveu: “Se não for pela poesia/como crer
na eternidade?”
Numa mensagem, meu amigo Ronaldo Cagiano, confessa: “Um minuto no túmulo de Balzac, uma tarde à beira do Sena ou um café n’A Brasileira, onde sentou Pessoa, me ensinam mais que todas as religiões e filosofias.”
Kafka já dizia: tudo o que não é literatura me aborrece.
Complementa Cagiano, o colega escritor: Não tenho medo de andar contra a corrente. A vida não é feita de adesões ao política, estética e culturalmente correto, mas ao que tem dimensão onírica, humana e solitária. E isso não dá votos, nem resenhas na Folha.”

Me perguntaram numa escola aqui em Brasília: “Como se faz um bom livro?”
Eu sorri, sala cheia, jovens de 20 anos.
Sabia de cor a resposta de Somerset Maugham: “Há três regras para se escrever um bom livro. Infelizmente, ninguém sabe quais são.”
Dia de citações, não é? Meus perdões.
Porque escrever não tem receita. Tem inspiração sim. Mas tem muito trabalho. “Transpiração”, disciplina. Há que começar a faina diária mal rompe a aurora.
Todos os dias, todos.
E ler, muito. Reler. Ler mais. Sempre. Até o último suspiro.
Se paramos de ler, vamos morrer.
O aprendizado da escrita é misterioso.
“O processo de aprender a escrever é desanimador porque é inexplicável”, afirma Alberto Manguel.
Ele complementa: “A leitura é uma atividade pela qual os governos sempre manifestaram um limitado entusiasmo”
É claro. A leitura abre os espíritos.
A literatura “revela”.
A verdade liberta. Com ela no seu coração, você não votaria mais por ter recebido uma esmola, um saco de cimento, umas telhas ou uma bolsa-família.
Ler sempre incomoda os ditadores, os napoleões tupiniquins, desagrada os poderosos, os idiotas e medíocres de plantão.
E, no geral, eles estão nos órgãos ditos culturais, com o seu vasto número de funcionários entediados, seus burocratas mesquinhos e seus lanches vespertinos, suas panelinhas burlescas, que querem camuflar o seu enorme vazio com roupas chics ou retóricas e preciosismos. Não enganam. Não adianta. São figuras que merecem a piedade. Serão varridos por qualquer vento sul. Podem receber prebendas, se acham “sérios”, às vezes assinam colunas diárias.

Mas serão sempre figuras menores: aquelas que morrerão sem a solidariedade de si mesmas.
Manguel lembra que Pinochet proibiu “Dom Quixote”, de Cervantes.
Lógico, o leitor lendo Quixote descobriria a alma nazista do facínora sanguinário que foi o ditador chileno, uma besta do Apocalipse sul-americano.
Penso no que disse um republicano espanhol (pai de um escritor) que passou muitos anos numa prisão política:
“Até na cadeia vocês serão mais felizes de gostarem de ler.”
É verdade!
O que me salvou nos meses de prisão política no DOPS foi a leitura (na OBAN não permitiam: lá era só porrada).

LEMBRANDO PRESTES

Agildo Barata estava numa cela com Luiz Carlos Prestes, em 1945. Notou um opúsculo de capa verde. Na capa: “Pensamentos de Augusto Comte”. No interior: aforismas estóicos, que Prestes traduzia do grego para passar o tempo. E dizia que como a capa era de Comte, os milicos não iriam tomá-la.
Conclusão de Barata: quando penso em Prestes, penso sempre num livro de máximas estóicas e de capa positivista.
“Que sacada, hein”, interpreta o meu velho amigo Flávio Aguiar (desde 1962, no Colégio Anchieta, em Porto Alegre), editor do “Carta Maior”, e que agora vive em Berlim.
Essa cidade sempre me emociona, pois lá varei noites conversando com Luiz Travassos, tomando todo o vinho alemão existente, a gente caminhando até perto do Muro.
Ele lá exilado. Eu fugido da “ditabranda”, segundo a Folha.
Voltando ao líder comunista: quando penso em Prestes penso mais num pensamento granítico e positivista de um homem íntegro, profundamente digno (às vezes equivocado, mas nunca desonroso).

Luis Carlos Prestes

Por exemplo: sua aliança (“Constituinte com Getúlio”) com Vargas (que o deixaria muitos anos preso nas mãos do perverso Filinto Miller) foi um erro ou uma necessidade naquele momento, em função de um projeto político maior?
Em termos éticos não se justifica. Foi Filinto quem entregou Olga, a mulher de Prestes, para a Gestapo.
Prestes era mais positivista que comunista. Estou equivocado?
David Nasser escreveu um livro chamado “Falta Alguém em Nuremberg”.
Esse alguém era Filinto “carrasco” Miller, que foi presidente da ARENA, o “maior partido do Ocidente”, segundo o inesquecível Francelino Pereira.
Francelino foi quem fez a nunca respondida indagação: “Que país é esse?”
Lembrando: a polícia política do Estado Novo (1937-1945), chefiada por Filinto Miller, arrancou com torquês um dente de Carlos Marighella.
Marighella, segundo o juízo insuspeito de Jarbas Passarinho (que fez a célebre proclamação no dia da promulgação do AI-5, 13 de dezembro de 1968: “às favas com os escrúpulos, senhor presidente”), teria sido o homem mais corajoso que existiu no Brasil no enfrentamento da tortura.


TRANSPOSIÇÃO


Grais, o momento mais emblemático e dramático do meu romance “Olhos Azuis – Ao Sul do Efêmero” (sua gestação durou 12 anos).
A personagem Júlia amava demais aquele rio e queria morrer perto dele.
Amo tanto e conheço um pouco a sua “vida” (para não parecer imodesto). Conheço o velho Francisco em Minas, em Sergipe, na Bahia...
O rio está morrendo. E a transposição não o salvará.
A quem serve a transposição? Às empreiteiras, às oligarquias nordestinas, às empresas do agro e do hidronegócio, aos políticos fisiológicos dos partidos hegemônicos, aos prefeitos e vereadores corruptos, à vocação megalomaníaca de Lula, que na avaliação de muitos é uma espécie de Médici do populismo.
A transposição serve ainda a outros interesses menores.
Não ajuda às populações ribeirinhas. E só deveria servir a elas.
Quem diz isso não é o DEM ou PSDB, não é gente de “direita”: é a Comissão Pastoral da Terra.
Rubem Siqueira, sociólogo desta comissão, diz que a “vistosa” obra da transposição é um “achado”do ponto de vista do marketing da costura política e econômica.
Para ele e para nós, a obra “não só cabala votos, mas encanta as oligarquias nordestinas e atrai abastados doadores de campanha como as empresas envolvidas na construção e no usufruto do projeto público, poderosas empreiteiras e aquelas não menos poderosas do agro e do hidronegócio.”
Ruben Siqueira lembra que os “Pais da Pátria”, os que buscam unanimidade servil sempre acabam virando ditadores.
Pena que a Ilha natal esteja tão longe do Rio São Francisco.
Pois quem conhece um pouco a situação, como algumas pessoas de bem do Nordeste e de outras regiões, estão cientes de como é equivocada (meu coração gostaria de chamá-la de criminosa) a chamada transposição do Rio São Francisco.
É de uma crueldade inqualificável o que estão fazendo com as populações ribeirinhas.
E com o rio.
Pobre Francisco, que já foi o rio de nossa unidade.
Belo Francisco!
Quem assistiu a um por-do-sol em Três Marias, MG, sabe do que estou falando. Falo de sua beleza.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

UM BLOG DO SÉCULO XIX

Raimundo Tadeu Corrêa

Como todo mundo sabe, ou já esqueceu de tanto saber, os blogs surgiram como diários postados na Internet: os web logs, i.é, o lugar de alguém na rede. Em sua fase inicial nossos blogs foram o grande meio de expressão dos adolescentes, de idade ou de espírito. Eram descrições literais do que o sujeito estava fazendo, tipo “um passarinho pousou na minha janela”, ‘hoje acordei de mau humor”, etc. Visto de uma perspectiva etária algumas décadas acima, pareceriam trivialidades que só poderiam atrair leitores por alguma razão inexplicável. Nem tanto, porém. Por estas mesmas razões de curiosidade atávica é que os programas de televisão tipo Big Brother são um sucesso estrondoso . Uma amiga de minha mulher, entusiasta ardorosa desta, digamos, modalidade de entretenimento, usa como argumento a seguinte pergunta: “vocês não gostariam de saber o que se passa no apartamento do vizinho?” Bueno, pode ser que sim, desde que se fosse vizinho da Família Adams, do Ozzy Osbourne, ou de qualquer outro núcleo familiar que pudesse, pelo exotismo, despertar curiosidade.

Com a diversificação temática, hoje os blogs abordam de tudo: notícias, opiniões políticas, crítica de arte, poesias, crônicas, até expressões libertárias, como o blog da cubana Yaoni Sánchez, que acaba de receber o prêmio Maria Moors Cabot de Excelência Jornalística para a América Latina e Caribe, concedido pela Escola de Jornalismo da Columbia University, Estados Unidos.

Até bem pouco tempo, os antecessores dos blogs eram os famosos diários. Toda adolescente tinha um. O que poderia até levar à imortalidade literária, como “O Diário de Anne Frank”. Outro exemplo clássico é a belíssima edição “Joaquim Nabuco Diários”, Volume 1 (1873-1888) e Volume 2 (1889-1910), publicação da Bem Te Vi Produções Literárias e da Editora Massangana. A coordenação da obra, elaboração de prefácios e notas, foi de Evaldo Cabral de Mello. Abaixo encontram-se transcritas algumas anotações de Joaquim Nabuco, diplomata e abolicionista:

Como o cérebro tem afinidade para certos venenos, o coração tem-na para certas tristezas. As afinidades eletivas são tão químicas como morais. (03/01/1877)

O inferno, o pandemonium, a região dos fantasmas e dos pesadelos, o círculo eterno do desejo e do sofrimento, o demônio e a tentação, o veneno que torna louco, tudo isso chama-se o eu, quando ele quer sair fora de si mesmo. O eu, o sentimento continuado de si mesmo, o eu formando o centro de tudo, o fim de tudo, é de todas as doenças a pior e infelizmente a mais incurável. O suicídio, a loucura, ou a devassidão é o termo a que ela leva o homem. Os possessos desse demônio são os mais infelizes de todos. O único meio de aliviar o sofrimento dessa melancolia, agitada em suas aspirações, impotente em sua saciedade, sombria como as trevas visíveis do espírito, é esquecer-se, e nenhum narcótico pode ser condenado como imoral porque nesse caso o sono ou a morte é melhor do que a consciência. (15/01/1877)

Um estudo sobre as galerias de New York, e se possível dos Estados Unidos, não deixaria de ser curioso. O que distingue essas galerias é o mau gosto e a confusão. Os bons quadros parecem esconder-se com vergonha do maior número. As exposições de pintura aqui são mais freqüentadas à noite. Os americanos apreciam melhor os quadros à luz do gás. (03/03/1877)

Teoria do casamento com estrangeiras
Eu tenho desenvolvido a teoria de que o amor, sendo em grande parte a sede do desconhecido, a mulher que mais longe está de nós, pela raça, pela língua, pelo nascimento (em certas classes envolvendo sempre a aspiração da ambição) é a que mais nos convém. É preciso porém que esse homem e essa mulher tenham de comum entre si esse amor absoluto um do outro, sem o qual todas essas diferenças tornam-se inconciliáveis e perdem todo o interesse, e são antes obstáculos do que estímulos.
A inocência é a poesia da força. Nada devia ser mais agradável aos heróis do que serem levados ao banho pelas virgens e perfumados e vestidos por elas. (27/05/1877)

- Ela sabe esconder muito bem os seus sentimentos, e não é uma pessoa de quem se possa saber o que sente, me dizia Miss O. falando de Miss Work. “Realmente, ela os esconde tão bem que ela mesma não os acha”, respondi-lhe. (22/06/1877)

O homem sociável pode ser muito diverso do homem solitário? Posso eu no fundo ser inteiramente outro do que pareço quando na sociedade? A minha natureza pode ser melancólica sem que os que vivem comigo o saibam pelo simples fato que a presença deles afugenta o homem solitário. Meses e meses eu não penso em religião nem em poesia, mas quando volto a elas, o prazer que sinto revela-me que a tristeza do pensamento solitário é a pedra-de-toque de minha natureza. (07/09/1877)

Em Petrópolis, Taunay nos conta a história do coronel gaúcho que disse ao conde d’Eu que a mulher dele era como a princesa, machorra.
- O que quer dizer machorra?
- É como se chama em minha terra a égua que não pare.

Há muito que eu sofro cada dia, e receio. De ora em diante, tomo a vida como ração. Deus não me dá a vida mais aos anos, mas aos dias, dia a dia, e assim talvez venha ser melhor mais tarde... Em todo o caso, sinto-me viver no dia-a-dia e não mais ilimitadamente, a prazos longos, sine die. (29/11/1901)

Os dois maiores amores são o de Deus e o de si mesmo (amar ao próximo como a si mesmo, Jesus sabia o que dizia), pois são os únicos cujo objeto não pode morrer para o homem. A todos os outros amores, ele pode sobreviver. (08/12/1902)

Começo hoje a minha nova devoção da Boa Morte. Entro mentalmente no período preparatório. Quando Deus soprar a minha vida, como se sopra uma vela, que o faça com um sopro brando e sem desprezo da sua pobre criatura. (05/10/1903)

Exemplo de um dia meu agora: acordo às 9h30, rezo, tomo o meu café (dois ovos, duas xícaras de café com leite, quatro toasts grandes com manteiga) seguido de bismuto, da trinitina e da estricnina às 10 h. Sem descanso leio logo os cinco jornais da manhã; escrevo duas cartas, uma a Mrs. Fish (esta antes do almoço), outra ao Silvio Romero, agradecendo-lhe o último livro. Escrevo longa carta a Mr. Rowe, agradecendo a que me escreveu, recebida hoje. Deito-me uma meia hora para descansar. Depois ao “gabinete”. Faço a barba sentado, depois venho ler a Vida de Gladstone, por Morley. Escrevo ao Bassett Moore. Almoço canja à 1h45. Descanso uns vinte minutos deitado. Depois arrumo papéis e às 5 h, massagem. Depois da massagem, brincando com os meninos no quarto de Evelina até a hora do banho. Em seguida, às 8h, o jantar. Depois conversando e arrumando papéis no gabinete até às 11h. Às 11h30 deito-me. (17/12/1906)

Deus seja louvado por não poder eu ver uma bela cena, um belo dia, sem que a primeira tecla ferida em meu espírito seja a do reconhecimento da criatura pela bondade do seu Criador, que lhe oferece mais esse espetáculo. E, assim, toda impressão de beleza, física ou moral e, por assim dizer, cada respiração dos que me são caros, cada alegria deles. (27/09/1909)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

FILOSOFANDO COM SÊNECA E NIETZSCHE

Emanuel Medeiros Vieira

Em “O Nascimento da Tragédia (1872), Friedrich Nietzsche (1844-1900), define os conceitos de apolíneo e dionisíaco.
Da maneira mais sumária, apolíneo seria a representação das regras e dos limites individuais.
Dionisíaco: a liberação do impulso, a libertação, dos instintos.
A classificação é mais usada para artistas e filósofos.
Mas por que não usar para seres humanos?
Desde que sejam pessoas de bem, sensíveis, nutridoras e não vampirizadoras (essa classificação é minha).
É um desafio.
Exemplo: da minha “Santíssima Trindade Literária”, Dostoievski é um dionisíaco. Camus, apolíneo . E Kafka?
O estilo cartorário, até “clássico”, seria apolíneo. Mas a alma, o espírito premonitório, aquele tipo de “mediunidade” que perpassa seus textos? Seria, nesse caso, dionisíaco.
Quero dizer, às vezes os dois se embutem.
No Brasil, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Glauber Rocha, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Raul Seixas, são dionisíacos.
Em Portugal, Fernando Pessoa, entre outros.

Apolíneos? Olavo Bilac, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral.
Em terras lusas, Eça de Queiroz.
No caso de Guimarães Rosa, creio, os dois conceitos se embutem.
Nos trópicos (falo dos artistas) parece que os dionisíacos preponderam. Já na vida...
Para sobreviver num mundo tão áspero e como mecanismo de defesa, externamente, os seres humanos procuram ser mais apolíneos.
Muitas vezes, só na casca, não na essência.
E Machado de Assis?
Nele, os dois se embutem, apesar de à primeira vista ser claramente um apolíneo.
A busca de um estatuto de respeito por ser mulato numa sociedade preconceituosa e racista , forjada na escravidão, faz de Machado um crítico sutil da moral de seu tempo.
Cria a Academia Brasileira de Letras que, no fundo, significa um busca de legitimação estatuária e oficial, em termos de sociedade.
Meu amigo e colega de ofício Lourenço Cazarré, com humor, diz que ele era portador da “síndrome de Michael Jackson”, pela obsessão de ser branco...
Nele, os dois conceitos se embutem.
E Euclides da Cunha? O barroquismo do texto faz pendê-lo para o dionisíaco.
João Guimarães Rosa?
Nele os dois conceitos, creio, se embutem.
No futebol, Garrincha e Maradona são dionisíacos, e Zidane, um apolíneo.
O próprio Nietzsche seria um dionisíaco.
Cada leitor poderia fazer a experiência interna de se classificar.
Eu sei, somos muitas vezes os dois.

Insisto: filosofar é fundamental.
Na reforma de ensino, retiraram a filosofia da grade curricular. Tiraram no fundo, uma oportunidade rara para o brasileiro pensar.
Sinceramente, quem não conhece um pouco de filosofia perde uma grande oportunidade de crescer no tempo de sua existência.
A filosofia pode nos ensina a viver.
Nos últimos 200 anos, a despeito de todos os sofrimentos, o mundo ocidental viveu sob o domínio de uma crença no progresso, baseada em realizações científicas e empresariais extraordinárias.
Tivemos guerras sem fim, o holocausto, sofrimentos, golpes, exploração: esse otimismo “público” seria uma grande anomalia.
Porque na verdade, os seres humanos passaram os séculos esperando o pior.
No Ocidente, as lições sobre o pessimismo derivam de duas fontes: os filósofos estóicos romanos e o cristianismo.
“Talvez seja a hora de revisitar esses ensinamentos para aliviar nossos pesares”, ensina Alain de Botton.
Sêneca (I a.C. – 65 d.C.) seria um filósofo perfeito para o nosso momento histórico.
Vivendo numa época de tremenda inquietação política (Nero ocupava o trono imperial), Sêneca interpretava a filosofia como uma disciplina que servia para nos manter calmos diante de um panorama de constante perigo.
Sêneca lembrava no ano 62 que desastres naturais ou de causa humana serão sempre parte de nossas vidas, por mais sofisticados e seguros que acreditemos nos termos tornado.
O filósofo escreve que “não existe nada que a fortuna não ouse”, mas lembra que devemos ter em mente o tempo toda a possibilidade dos mais devastadores eventos.
Recordemos: tivemos duas guerras mundiais.
Basta lembrar o sofrimento que elas causaram.
Sêneca diz mais: “Nada nos deveria ser inesperado. O que é o homem? Um vaso que ao menor tremor, ao menor impacto, pode quebrar.”
Reli há pouco o belíssimo “Sobre a Brevidade da Vida”, deste filósofo
Em 62 d.C., Sêneca pede permissão para retirar-se da vida pública. Nero recusa. O filósofo vive então numa semi-reclusão e escreve suas melhores obras.
Em 65 d.C., é acusado de estar implicado numa conspiração contra o imperador. Nero ordena que se suicide.
“Assim termina a carreira daquele que, por quase dez anos, governou de fato o Império Romano”.
Com ele, como observa William Li, pela primeira vez a filosofia estóica teve a experiência do poder.
Não há espaço (agora) para meditar sobre a posição do cristianismo nesse assunto.

Correndo o risco de me tornar superficial para não ficar cansativo, queria lembrar a importância dos aforismos na obra de Nietzsche.
“Além do Bem e do Mal” (1886) é das suas obras mais importantes, retomando os temas mais decisivos de “Humano, demasiadamente humano” (1878-80).
Resumindo: para o filósofo alemão, o homem aspira à imortalidade, mas isso não significa – nem importa – nada, já que a realidade se repete a si mesma num devir renitente, que constitui o eterno retorno.
Para ele, como observou Marcelo Bakes, o homem só se salva pela aceitação da finitude, pois assim se converte em dono do seu destino, se liberta do desespero para afirmar-se soberanamente no gozo e na dor de existir, ultrapassando os limites da sua condição.
Seu pensamento foi tremendamente deturpado e manipulado por muitos, como por sua irmã Elisabeth e pelos nazistas.
Por exemplo: o conceito de conceito de “super-homem”.
Foi tremendamente desfigurado. Nada tem a ver com os carrascos nazistas, nem com os heróis que veríamos depois nos quadrinhos ou no cinema, ou com gente que malha em academia.
Pelo contrário, o filósofo consideraria esses tipos os mais obtusos.
No fundo, ele fala dos seres maiores que ultrapassariam a mediocridade, a indolência, a autopiedade, o sentimentalismo reles (como as telenovelas de hoje em dia), que conseguem sair do rebanho pela sua força interior, pela sua determinação, pela sua audácia, pela sua bravura, pela sua grandeza.

E o aforismo?
Ele viveu sempre entre a fronteira entre a poesia e a filosofia.
“É um estilhaço de pensamento, uma máxima espirituosa de fôlego curto e sabedoria imensa”.
A tradição do aforismo é antiga. Hipócrates foi o primeiro escritor de aforismos, já por volta de 400 a.C.
O procedimento aforístico também marcou a obra de Heráclito, a especulação moral de Sêneca, a observação histórica de Plutarco, as cartas de Marco Aurélio, a ética de Confúcio e as sentenças de Salomão.
A importância do aforismo na obra de Nietzsche é imensa, como já era em parte no caso e Schopenhauer e, mais ainda no de Blaise Pascal e Nicolas Chamfort.

Dois exemplo de aforismos no filósofo alemão: “Muito pavão esconde aos olhos de todos a sua cauda de pavão – e chama isso de seu orgulho.”
O segundo: “A mulher aprende a odiar na medida em que desaprende a – enfeitiçar”.
Filosofemos, amigos. Filosofemos!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Catarse e testemunho existencial

Ronaldo Cagiano (*)

Das muitas leituras que podemos fazer de uma trajetória de vida ou de uma obra literária, a que melhor pode refletir o homem ou definir o escritor é o sentimento de indignação. Refiro-me àquele que nasce do espírito e da consciência de quem, ao olhar o mundo, é capaz de extrair dessa mirada a sua permanente visão crítica, como farol para seu posicionamento diante das questões que afetam o homem, o mundo e as instituições.

A vida e a literatura de Emanuel Medeiros Vieira, autor de cerca de duas dezenas de livros, é ressonância de sua imensa preocupação com o homem e sua transitoriedade. No conto, na poesia, no romance, na crônica ou nas intervenções jornalísticas, percebe-se um escritor mergulhado profundamente nas questões cruciais que dizem respeito ao ser e seu lugar no mundo.

Herdeiro de uma tradição literária humanista, Emanuel vem construindo sua bibliografia dentro de uma perspectiva crítico-filsófica em que a problemática existencial é tema recorrente em sua obra. A passagem do tempo, a morte, o sucateamento dos valores éticos e morais, o enterro das utopias, a incomunicabilidade do homem contemporâneo na sociedade globalizada (seduzido pelos fetiches do deus-mercado) e seu consequente isolamento num tempo de coisificação e etiqueta vêm sendo mapeadas pelo autor desde seus primeiros trabalhos poéticos e ficcionais.

Ainda há pouco, Emanuel experimentou uma prova de fogo em sua caminhada. Vitimado por uma infecção que afetou todo seu metabolismo, viveu seu apartheid psicológico num leito de hospital por algumas semanas. Nesse período, considerado um divisor de águas em sua vida, escreveu um obra tão pungente quanto arrebatadora, em que passou em revis(i)ta à sua trajetória pessoal e intelectual, legando um testemunho literário emocionante, inventário e balanço dessa terrível travessia. Cerrado desterro (Ed. Thesaurus, DF, 20008), primeiro volume de uma obra de cunho memorialístico e intimista, mas sem o vezo da autocomiseração ou sentimentalismo, abriga densa e (in)tensa indagação existencial. Vieira nos dá a conhecer a sua terrível experiência da enfermidade, ao mesmo tempo em que faz um meticuloso e introspectivo encontro de contas com o passado (tanto o pessoal como o político). Nesse texto candente, rememora suas lutas, discute temas hoje tão negligenciados na literatura e na arte, percorre os tempos difíceis da ditadura (quando colocou sua palavra a serviço da luta e da esperança), relembra os amigos, os livros de cabeceira, os autores que influenciaram sua formação moral, espiritual e filosófica e as relações afetivas e culturais. Nesse trânsito entre o passado e o presente, flertando com a realidade, a invenção e a memória, expõe a coerência dos propósitos que não morrem, sem envergonhar-se das ilusões que ainda alimentam sua alma, porque, apesar das contradições e dicotomias da era moderna, ainda crê na vida e faz da literatura sua catarse, seu salto dialético, sua ponte sobre os escombros da própria civilização.

Todo o trabalho de Emanuel, desde seus primórdios como estudante em Florianópolis ou Porto Alegre até radicar-se em Brasília, onde desde 1979 exerce a assessoria de imprensa na Câmara dos Deputados, é um testemunho de seu inesgotável “sentimento do mundo”. Em seus livros, o poema ou a narrativa não se esgotam num simples projeto editorial ou mercadológico, é uma confissão íntima, uma declaração e uma confiança no trabalho criativo como êmulo de sua razão de ser e viver. Como Alfredo Bosi, que entende que “só a arte é capaz de tirar o homem de sua total imbecilidade”, ou Fernando Pessoa, para quem “toda literatura é sempre uma expedição à verdade”, Emanuel concebe seus livros como instrumento para se entender o mundo, para vencer a solidão, para compreender nossas fraquezas e limitações e, acima de tudo, para ir fundo, cada vez mais fundo, doa o que doer – e a quem doer – naquilo que incomoda, avilta, humilha e nos apequena, seja na vida, na literatura, na política ou na história das instituições. Seus livros, como um rio, como um mosaico, são vertentes e repositório de seu fluxo onírico, são expansões de seu aguçado senso de observação, são contundentes e vulcânicas extrapolações de um inconsciente que vasculha os escuros da alma, os infernos da vida e as mazelas da morte.

Com sua prosa visceralmente inquieta (e inquietante), Medeiros Vieira deixa uma valiosa contribuição, como autor e como homem, à inteligência e à bibliografia nacional, embora injustamente negligenciado pela lógica editorial do hegemônico e monopolista eixo Rio-SP. Seus livros são um repositório de idéias, sonhos, posições e preocupações com o nosso destino, o que mais uma vez se confirma no recém-lançado romance Olhos azuis, ao sul do efêmero (Ed. Thesaurus, DF, 2009), quando retoma a sua inesgotável capacidade ficcional e fabulatória, sem deixar de lado nas suas histórias o viés que sempre deve marcar a passagem do homem pela Terra, que é jamais perder sua disposição para se indignar diante das injustiças, do caos, do fracasso das ideologias e da derrocada dos valores. Como Borges, o autor catarinense também entende que “A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo.”

(*) Autor de Canção dentro da noite (poesia) e Dezembro indigesto (contos), dentre outros. Vive em São Paulo.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Memória e Linguagem

Emanuel Medeiros Vieira

Quero falar da memória não como algo mecânico, mas como base de toda a identidade.
Memória como instrumento de justiça e de misericórdia.
Não por acaso, na mitologia grega, Mnemosina, a memória, é a mãe das Musas, ou seja, de todas as artes, do que dá forma e sentido à vida.
Sim, ela protege a vida do nada e do esquecimento.
A literatura não deixa de ser (também) um instrumento de transfiguração de um momento (eternizar a memória).
Uma busca de perenizar o instante para convertê-lo em sempre.
O ato da lembrança é ao mesmo tempo caridade e justiça para as vítimas do mal e do esquecimento.
Muitas vezes, indivíduos e povos desapareceram no silêncio e na escuridão.
Muitos devem se lembrar das ditaduras que, apagando as fotografias dos banidos querem, em verdade, apagar a sua memória.
A memória é resistência a um tipo de violência: àquela infligida às vítimas do esquecimento.
A memória é o fundamento de toda identidade, individual e coletiva.
Guardiã e testemunha, a memória é também garantia da liberdade.

A linguagem é edificada para a construção dos textos que querem eternizar nossa brevidade, a nossa finitude.
Como observa a filósofa e historiadora, Regina Schöpke, “quanto mais inconsciente ou subliminar é a linguagem, mais fortemente ela age sobre nós, mais ela nos domina e nos dirige.”
Os filósofos e filólogos sabem disso.
Estes últimos, veem nela não apenas uma ferramenta da razão para dar conta do mundo, mas, sobretudo, uma segunda natureza.
“Algo que, de certa forma, produz o mundo, e não apenas o representa”, como observa a autora citada.
Os gregos já enfrentavam a questão.
Nietzsche – que além de filósofo era também filólogo – chamava esse universo da linguagem de “duplo afastamento do real”, de “segunda metáfora”.
Porque aí os homens lidavam com conceitos e não apenas com o mundo em si.
A linguagem pode ser instrumento de dominação, estimulando um preconceito racial, como fizeram os nazistas, alimentando o fanatismo e o preconceito, gerando um horror como raramente (ou nunca) se viu na História.
Todo sistema com ambições totalitárias, como detectou a pensadora, tem necessidade de produzir um discurso, uma mitologia e palavras de ordem.
O que é a publicidade que só pensa em vender, sem nenhum compromisso ético?
É um exercício mental doloroso, mas assim a gente pode entender como uma cultura que produziu tanta beleza com Goethe, Beethoven, Nietzsche, Hegel, Wagner e outros, tenha mergulhado, com o nazismo, na mais profunda irracionalidade, onde o Mal apareceu com toda a sua força, ou melhor, em toda a sua plenitude.

Tento meditar sobre esses assuntos, entre outras razões, porque a falta do estudo da filosofia para quem tem menos de 60 anos, criou um tremendo vácuo cultural.
Fundou-se o universo utilitário, da posse imediata. Só vale o que tem valor contábil.
Faço minha a proclamação de Michel Foucault: “Não se apaixone pelo poder.”

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Homenageando Paulo Leminski, nos 20 Anos de sua morte:
“me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão”
(Poema “para a liberdade e luta”, do livro “Polonaises”)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Viagem às Nascentes da Língua Portuguesa

Emanuel Medeiros Vieira

Para Victor Alegria e a todos os companheiros da jornada às nascentes (de 21 de junho a 1° de julho de 2009)

“Da minha língua vê-se o mar”

(Vergílio Ferreira)

Nossa Pátria é a Língua Portuguesa.
Ou melhor, as “línguas portuguesas”.
Falar de uma viagem preciosa? Um encantamento ou deslumbramento meditado em breve reflexão.
Um personagem de Godard disse que as viagens formam a juventude.
Creio que elas formam a nossa vida toda: enriquecem, e dão uma dimensão maior do mundo, muito maior, inundam o nosso olhar de coisas belas.
Não, não falarei em tudo, e serei fragmentário.
Resumindo? A gente buscou “olhar”, olhar muito, indo ao Portugal profundo, durante 10 intensos e inesquecíveis dias.
Ah, Porto – que belíssima cidade! –, Rio D’Ouro (bate uma imensa vontade de voltar), Alcobaça, Sintra, Coimbra, Fátima,, Braga, Almerim, Mafra, Vila do Conde, Viana do Castelo, Guimarães (berço da nacionalidade lusa). Eu sei, não citei todos os lugares, nem segui a ordem geográfica.
Meu mapa é afetivo, do coração.
Naquele maravilhoso dia passado em Coimbra – universidade fundada em 1° de março de 1290 –, pensava em todos os pés que ali pisaram antes de nós, os poetas românticos, os seres todos.

Pedras, mosteiros, rios, vidas. E seres humanos inesquecíveis, como o guia Carlos (sempre atento e disciplinado), sua terna esposa Inês, os também humanistas, cultos e amorosos professores Carlos e Fernando, o generoso Felipe e a “brasileira” de Alagoas, a querida Manaíra.
Não posso me esquecer do eficiente Rui e dos outros colegas escritores do Porto. E do jantar na UNICEPE, com declamação de poemas.
Não cito nominalmente os companheiros de viagem (mas todos estão no meu coração).
Garçons, motoristas, gente dos hotéis, transeuntes a quem pedíamos informações, passeios variados, amigos queridos feitos na viagem – e não individualizarei para não cometer injustiças. Mas lembro de um emocionado Ligório declamando poemas de autores pernambucanos num inesquecível almoço em Alcobaça.
Poderia falar sobre Sintra, pastéis de Belém, vinhos, bacalhau, café longo, paés deliciosos, a “sopa de pedra”, em Almerim...
Toda narrativa é um ato de escolha. Precisaria de um diário de viagem.

Queria dizer que voltamos “melhores”: mais enraizados em nossas nascentes – ah, nosso destino comum-, nessa Língua tão bela e plural.
Voltamos (somos cidadãos do mundo, nossa pátria é o “exílio”...).
Ah, Tejo.
Visita à Biblioteca Nacional, em Lisboa, à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), tão bem recebidos pelo embaixador Lauro Moreira.
(Quem ler, dirá com razão: o cronista esqueceu de tanta coisa! Mas o propósito não foi esgotar o assunto.)
É verdade: sou apenas o redator de um telegrama
Recordar vem do latim “recordis” e significa “tornar a passar pelo coração”.
E é por tantas razões que escrevemos. Para despistar a morte, deixar algo além da poeira do tempo, para amar e ser amado. Escrevemos porque não sabemos por quê...
Porque somos o único animal eu sabe que vai morrer. Somos ontologicamente finitos. Mas nosso obra pode ser infinita. Eterna.
Como esquecer do “Livro na Rua” – ecumênico, plural e democrático – distribuído para o estudantes de Coimbra (e dialogamos com os moços), e em tantos outros lugares?
Não ficará no oblívio, a festa de São João, no Porto. O Café Majestic. As pontes. E chegamos à Galícia, na Espanha.
Somos todos nós que construímos essa Língua, dia a dia.
Foi uma viagem fantástica, No fundo, o mero turista só “registra”. Nós não só registramos. Olhamos, vivemos. E, principalmente, amamos.
Que saudade eu sinto agora olhando o mapa de Portugal!
Esta Língua...
Como diz Eduardo Lourenço, “é ela que vive em nós e não nos que vivemos nela.”

Agradeço a todos os companheiros de viagem (um agradecimento especial ao Victor e à sua dedicada esposa Ises), à Célia, sempre companheira, ao Maurício, terno, humano, o filho que todo pai gostaria de ter.
Encerro: “Isso é coisa normal,/mas anormal, se me entendes,/se tu bem
me compreendes,/agora és de Portugal!
Vê se então outrora/soou-te o sinal da sina/pondo-te na vida uma quina/Portugal, chegou a hora!”

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Mediocridade e degradação da atividade política

Emanuel Medeiros Vieira

O filósofo vienense Ludwig Wittgenstein (1889-1951 ) afirmava: “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”
Onde quero chegar?
É de percepção solar a degradação das instâncias de poder no Brasil. E também a mediocrização e a degradação da atividade política.
Quem está , como eu, há muito tempo em casas políticas (37 anos!), percebe que, além da desagregação dos valores, ocorre também a degradação da linguagem.
Quero dizer: o nível dos parlamentares e o padrão dos discursos (sem qualquer ranço de nostalgia), piorou muito.
Octávio Paz dizia que uma degradação de uma nação começava pela degradação de sua linguagem.
Independente de se concordar com suas posições ou não, percebia-se o nível de pronunciamentos de, um Aliomar Balleiro, de um Adauto Lúcio Cardoso e, posteriormente, de um Tancredo Neves, de um Ulysses Guimarães e de um Darcy Ribeiro. Não citei muitos.
Muitas das colunas políticas da mídia impressa refletem isso. Várias são de uma mediocridade e de uma futilidade enormes.
Deputado tal que jantou com outro líder, um parlamentar que foi visto conversando com o seu líder. A linguagem “neutra’ é uma falácia. Ela serve a diversos interesses, e nunca é neutra.
Quero dizer: a mediocrização contaminou as próprias colunas, que deixam de contemplar análises consistentes (é claro, não estou pedindo teses acadêmicas), para se tornaram espaços para intrigas, fofocas, ou irradiarem nas entrelinhas outros interesses. Lembrem-se de algumas colunas.
Teria sido claro?

Informa-se que professores da Espanha e de outros países estão desistindo da profissão. Sentem-se mais ofendidos pelo desinteresse dos alunos do que pela sua ignorância.
O conhecimento é um caminho longo e complexo. Não tem milagre.
Ele perde em nossa sociedade da fragmentação, da pressa, do utilitarismo, do “quero já e agora”, para a busca do prazer absoluto e instantâneo.
Haveria uma razão cultural pela queda do prazer gerado pela leitura. Lógico, o reino soberano é o da imagem, muitas mídias são oferecidas, tudo ficou mais rápido, complexo e esfacelado. E predomina a cultura do narcisismo, além de uma enorme preguiça mental.
E o que me parece mais grave: há uma crescente indiferença pelo sofrimento humano. Dos outros.
Nossos contemporâneos estariam imersos em bobagens sem valores, em futilidades, na obsessão pela beleza, pela magreza, pela juventude eterna, dominados pela infantilização mental? A vida estaria virando um deserto de valores E como se exerce a cidadania? Um espaço seriam os partidos
políticos. Mas no Brasil eles viraram clubes fisiológicos.
Está havendo uma peemedebização total do sistema político (no PT, DEM, PSDB e satélites).

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Se um viajante numa noite de inverno...

Bueno, se ele entrar em uma livraria poderá comprar o livro homônimo de Ítalo Calvino e estará servido de boa literatura. Mas, se em uma noite de inverno o viajante for recebido na Chácara Esperança, região da Fercal, em Sobradinho, DF, poderá participar de um ato de fé, rezando um terço comunitário.



O ancestral fascínio pelo fogo



Os apetrechos da fé



The Holy Bible (A Bíblia Sagrada) is on the table

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

CONSELHO DE ÉTICA. ÉTICA?

Emanuel Medeiros Vieira
(Para Clarice, minha filha, para que não deixe de acreditar)

Ética (do grego "ethos") não é só caráter. Mas assento, fundamento. Cumprimento à palavra dada.
O senador Flávio Arns (PT-PR) lembrou que os senadores do PT, membros do Conselho de Ética, terão que prestar contas aos seus eleitores e dizerem porque mudaram de opinião, já que concordaram com a primeira posição da bancada , de que Sarney devia se licenciar do cargo e que as denúncias deviam ser investigadas.
O senador advertiu: "O PT jogou a ética no lixo."
O chicote do Lula falou mais alto.

O pior é a hipocrisia.
Nem todos se lembram, mas o PT foi criado para ser "diferente", para ter um padrão ético superior ao dos outros partidos, para honrar os seus compromissos.

Para mim, o pior é o efeito dessa desonra sobre àqueles que acreditaram nele, na nobreza de seus princípios.
O mais triste é perceber o efeito devastador sobre as novas gerações: que perdem toda a dimensão da utopia e da esperança.
(Não foi para isso que muitos de nós foram para a militância estudantil, para a clandestinidade, enfrentando longa prisão política, a tortura e um longo processo.)
Juventude sem rebeldia é servidão precoce, já disse alguém.
Mas é preciso manter, gramscianamente, o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade.
Pátria é o pacto afetivo e solidário entre as pessoas que nascem em um mesmo território e falam a mesma língua.
Quando a solidariedade e o respeito deixam de existir, a pátria desaparece.

Catarinense "desterrado", tenho um pedido: que os meus conterrâneos, nas próximas eleições, não se esqueçam dos que traíram a sua confiança, e negaram tudo o que prometeram em sua campanhas anteriores.
Parabéns, Marina Silva! Parabéns, Flávio Arns!

(Emanuel Medeiros Vieira)
Brasília, 20 de agosto de 2009

terça-feira, 11 de agosto de 2009

LIÇÕES DE MEMÓRIA

Estimado Cacau,

Pediria tua atenção - apesar do escasso tempo e da agenda cheia -, e a inserção de (parte) de minha meditação no teu precioso espaço.
Muitos repudiam as minhas críticas ao PT, sob a alegação de que "outros fizeram o mesmo". É um álibi facilitário: como malfetorias antigas justificassem as novas

Lembrando: na CPI de caso PC Farias (que levou à queda do oligarca de Alagoas), Renan comparou Collor a Nero e a Calígula.
Sarney acreditava que o "sereno" ex-presidente era um discípulo aplicado de Goebbels (o "assessor de imprensa" de Hitler...).
Lula, na campanha de 89, disse que Maluf era um trombadinha perto do "grande ladrão" que era Sarney.
Collor chamava Sarney de político de segunda classe e apadrinhador de corruptos.
Na TV, o "Caçador de Maracujás" (segundo o presidente) chamou Lula de "cambalacheiro".
(Nem preciso lembrar que Collor colocou na TV a ex-mulher do defensor de Sarney, Miriam Cordeiro, para chamar Lula de racista e de ter oferecido dinheiro para ela fazer um aborto.)
São "bons companheiros" (no sentido dado por Scorsese no filme homônimo).

A "academia" tem medo de criticar o Lula porque ele veio do povo. Pobreza não é álibi ético para ninguém.
Lula internalizou o espírito oligárquico da Casa Grande, como fosse donatário de capitania hereditária. Incorporou todos os vícios do patriciado brasileiro.
Sua visão de mundo antecede a Revolução Francesa, pois acredita que alguns homens têm mais direitos que os outros ("Sarney tem história suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum", disse em 17 de junho deste ano).
A lei é para nós, não para eles.
(Eu sei, um dia será preciso contar toda a história da privataria dos governos passados e de todas as trapaças.)

Sinceramente, da minha parte, não aguento mais as metáforas imbecilizantes do Lula, sua onipotência autoritária, seu desprezo pela inteligência e pela cultura, seu cesarismo tupiniquim, e a manipulações das populações mais carentes e desinformadas.
Tem muita popularidade? E daí? Médici também tinha.
Não esqueçamos que, há muito tempo, na hora dramática, a plebe optou pelo ladrão em vez de ficar com Jesus.

Grato pela atenção,

Emanuel Medeiros Vieira

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

ÉTICA

Emanuel Medeiros Vieira
(Em memória do meu querido amigo e "irmão" Ivan Pereira da Silva, falecido em 8 de julho deste ano.)


Nosso maior patrimônio é a ética que, do grego "ethos", quer dizer não apenas caráter, mas também assento, fundamento.
Uma de nossas missões é gritar, manter acesa a chama da indignação, mesmo quando o cansaço pela permanência de estruturas tão corrompidas e injustas, leve-nos à resignação e ao mero desencanto.

A atividade política no Brasil parece um atividade imprópria para homens de bem.

O MDB foi fundamental na reconstrução da democracia no Brasil, nas lutas mais dignas dos últimos anos, como a que foi movida em prol da anistia.

O que foi feito dele?
(Não preciso responder).

A executiva do PMDB "pediu" que seus dissidentes (os "dignos") se afastem, saiam por conta própria.

Como detectou alguém, a cúpula dirigente do partido passou o recibo de que as exceções à regra do fisiologismo "mancham a agremiação por lembrá-la de seu compromisos originários e éticos".
"Um partido indigno de suas antigas tradições precisa ocultar a própria indignidade poupando os dignos do convívio com ela."

As pessoas esquecem: quando Lula defende Sarney, Collor e Renan, está legitimando o quê?
(O Maranhão, dominando pelo "faraó" Sarney há tanto tempo, tem o segundo pior IDH do país. Só perde em miséria para Alagoas, de Collor e de Renan.)

Talvez minha fala lembre a de um "moralista indignado.
Pode ser.

Se o golpe de 64 foi, socialmente, o momento mais nefasto e doloroso para a minha geração, a idéia de um pensamento de "esquerda" foi quase destruída por alguns setores do PT e do governo Lula - com orgânica vocação para o maquiavelismo e não para o marxismo (como imaginam).
Para muitos brasileiros, hoje, "esquerda" é isso: corrupção, aparelhamento total do Estado, prevalências de mensaleiros e trapaceiros, odiosos privilégios para uma casta partidária e sindicalistas oportunistas e incultos (parecem mais milicianos fascistas).

Todos os nobres sonhos de um Guevara foram jogados na lata de lixo.

Para reconstruir, vamos precisar de gerações.
E como dizia Keynes, a longo prazo estaremos todos mortos...

(Emanuel Medeiros Vieira)
Brasília, agosto de 2009

terça-feira, 4 de agosto de 2009

CARTINHA ABERTA AO CELSO MARTINS

CARTINHA ABERTA AO CELSO MARTINS

Brasília, 05 de agosto de 2009


Dileto Celso Martins

Não, não demorarei.
Queria falar sobre literatura e flores.
Mas "contemplando" a união das mais vis oligarquias regionais, dos grupos mais sórdidos da nação, do que há de pior na política brasileira, para salvar o Sarney, não dá para calar a boca.

Vivo em Brasília há 31 anos.
Cobri a CPI do Collor e a do Orçamento e testemunhei o que os (outrora combativos) parlamentares do PT denunciavam.

Nivelar pela podridão em busca do poder pelo poder?
Posso desagradar amigos a quem estimo.
Mas a conivência (e a convivência) deste novo coronel nordestino, o Lula, com esse tipo de gente só pode ser (no mínimo) falta de caráter.

Não, não vim do PFL - sabes bem.
Sofremos muito para a construção da democracia.
Prisão, tortura, exílio, mortes de companheiros.
(Luiz Travassos mexe-se no túmulo.)

Dirigente do IEPES em Santa Catarina, semente da Fundação Pedroso Horta, junto com o saudoso André Forster e outros companheiros, em tempos ásperos, acompanhei a trajetória de Pedro Simon, ajudando companheiros perseguidos, colaborando para que conseguissem escapar pela fronteira, e não fossem mortos na tortura.

Ver o PT jogando toda a sua história na lata do lixo - na lama mesmo -, constrange mesmo as consciências mais resignadas ou desencantadas.
Fiz a campanha do Lula, em 1989, aqui em Brasília.
Enfrentamos (não é figura de retórica) a tropa de choque fascista do Collor e curiola, na rodoviária, nas avenidas da capital, nas cidades-satélites.
Lembro de amigos sendo espancados pelas milícias pagas pelo coronel de Alagoas.
Estão juntos agora?
MERECEM-SE!!!

O QUE SOMOS SEM MEMÓRIA?

O que sinto, amigo, é o mais profundo nojo.
E indignação visceral!
O que mais dizer? nada.
Abraço fraterno.
Sou um ex-combatente? Creio que não.
Ainda (e sempre) um combatente.

Emanuel Medeiros Vieira