Ronaldo Cagiano (*)
Das muitas leituras que podemos fazer de uma trajetória de vida ou de uma obra literária, a que melhor pode refletir o homem ou definir o escritor é o sentimento de indignação. Refiro-me àquele que nasce do espírito e da consciência de quem, ao olhar o mundo, é capaz de extrair dessa mirada a sua permanente visão crítica, como farol para seu posicionamento diante das questões que afetam o homem, o mundo e as instituições.
A vida e a literatura de Emanuel Medeiros Vieira, autor de cerca de duas dezenas de livros, é ressonância de sua imensa preocupação com o homem e sua transitoriedade. No conto, na poesia, no romance, na crônica ou nas intervenções jornalísticas, percebe-se um escritor mergulhado profundamente nas questões cruciais que dizem respeito ao ser e seu lugar no mundo.
Herdeiro de uma tradição literária humanista, Emanuel vem construindo sua bibliografia dentro de uma perspectiva crítico-filsófica em que a problemática existencial é tema recorrente em sua obra. A passagem do tempo, a morte, o sucateamento dos valores éticos e morais, o enterro das utopias, a incomunicabilidade do homem contemporâneo na sociedade globalizada (seduzido pelos fetiches do deus-mercado) e seu consequente isolamento num tempo de coisificação e etiqueta vêm sendo mapeadas pelo autor desde seus primeiros trabalhos poéticos e ficcionais.
Ainda há pouco, Emanuel experimentou uma prova de fogo em sua caminhada. Vitimado por uma infecção que afetou todo seu metabolismo, viveu seu apartheid psicológico num leito de hospital por algumas semanas. Nesse período, considerado um divisor de águas em sua vida, escreveu um obra tão pungente quanto arrebatadora, em que passou em revis(i)ta à sua trajetória pessoal e intelectual, legando um testemunho literário emocionante, inventário e balanço dessa terrível travessia. Cerrado desterro (Ed. Thesaurus, DF, 20008), primeiro volume de uma obra de cunho memorialístico e intimista, mas sem o vezo da autocomiseração ou sentimentalismo, abriga densa e (in)tensa indagação existencial. Vieira nos dá a conhecer a sua terrível experiência da enfermidade, ao mesmo tempo em que faz um meticuloso e introspectivo encontro de contas com o passado (tanto o pessoal como o político). Nesse texto candente, rememora suas lutas, discute temas hoje tão negligenciados na literatura e na arte, percorre os tempos difíceis da ditadura (quando colocou sua palavra a serviço da luta e da esperança), relembra os amigos, os livros de cabeceira, os autores que influenciaram sua formação moral, espiritual e filosófica e as relações afetivas e culturais. Nesse trânsito entre o passado e o presente, flertando com a realidade, a invenção e a memória, expõe a coerência dos propósitos que não morrem, sem envergonhar-se das ilusões que ainda alimentam sua alma, porque, apesar das contradições e dicotomias da era moderna, ainda crê na vida e faz da literatura sua catarse, seu salto dialético, sua ponte sobre os escombros da própria civilização.
Todo o trabalho de Emanuel, desde seus primórdios como estudante em Florianópolis ou Porto Alegre até radicar-se em Brasília, onde desde 1979 exerce a assessoria de imprensa na Câmara dos Deputados, é um testemunho de seu inesgotável “sentimento do mundo”. Em seus livros, o poema ou a narrativa não se esgotam num simples projeto editorial ou mercadológico, é uma confissão íntima, uma declaração e uma confiança no trabalho criativo como êmulo de sua razão de ser e viver. Como Alfredo Bosi, que entende que “só a arte é capaz de tirar o homem de sua total imbecilidade”, ou Fernando Pessoa, para quem “toda literatura é sempre uma expedição à verdade”, Emanuel concebe seus livros como instrumento para se entender o mundo, para vencer a solidão, para compreender nossas fraquezas e limitações e, acima de tudo, para ir fundo, cada vez mais fundo, doa o que doer – e a quem doer – naquilo que incomoda, avilta, humilha e nos apequena, seja na vida, na literatura, na política ou na história das instituições. Seus livros, como um rio, como um mosaico, são vertentes e repositório de seu fluxo onírico, são expansões de seu aguçado senso de observação, são contundentes e vulcânicas extrapolações de um inconsciente que vasculha os escuros da alma, os infernos da vida e as mazelas da morte.
Com sua prosa visceralmente inquieta (e inquietante), Medeiros Vieira deixa uma valiosa contribuição, como autor e como homem, à inteligência e à bibliografia nacional, embora injustamente negligenciado pela lógica editorial do hegemônico e monopolista eixo Rio-SP. Seus livros são um repositório de idéias, sonhos, posições e preocupações com o nosso destino, o que mais uma vez se confirma no recém-lançado romance Olhos azuis, ao sul do efêmero (Ed. Thesaurus, DF, 2009), quando retoma a sua inesgotável capacidade ficcional e fabulatória, sem deixar de lado nas suas histórias o viés que sempre deve marcar a passagem do homem pela Terra, que é jamais perder sua disposição para se indignar diante das injustiças, do caos, do fracasso das ideologias e da derrocada dos valores. Como Borges, o autor catarinense também entende que “A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo.”
(*) Autor de Canção dentro da noite (poesia) e Dezembro indigesto (contos), dentre outros. Vive em São Paulo.
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