quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

UMA CAMA PARA O OUVIDOR

A historinha a seguir é transcrita de “Seleções da História do Brasil e do Mundo”, fascículo nº 2, de autoria de Sergio Macedo e Renato Silva, série didática editada em 1956 pela Editora Conquista, do Rio de Janeiro. Na transcrição foi mantida a acentuação original.


1 – A vila de São Paulo agita-se extraordinariamente naquela enevoada manhã de agosto de 1620. É que o Ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho está a caminho para a regular visitação de aplicação das leis e verificação do exato cumprimento das Ordenações de El-Rei Nosso Senhor. Os homens importantes reúnem-se em conferência. A questão de acomodação está resolvida. O grande homem ficará na casa da Câmara, naturalmente. Mas onde dormirá a alta-personagem? E os homens bons da vila agitam-se e discutem. E o assunto passa a ser objeto das preocupações gerais.


2 – Sim, o problema é muito sério, porque São Paulo está a braços, então, com terrível falta de móveis. Não existem camas dignas dessa designação, mas humildes catres, onde, diz-se, não é possível deitar-se a imponente figura de um senhor Ouvidor. Alguém lembra, porém, que há uma cama, na pequena cidade. Seu proprietário é Gonçalo Pires. Respiram os influentes. Está solucionada a questão, pensam. Ninguém imagina que Gonçalo possa sequer pensar em opor dificuldades à solução do caso, tanto mais que seria uma honra concorrer para o conforto do senhor Ouvidor...


3 – Mas Gonçalo Pires é teimoso, caprichoso ao extremo. Procurado pelos vereadores recusa-se a qualquer negócio, mostra-se surdo a todos os argumentos, indiferente a todas as súplicas. Não quer emprestar o leito que possui. Não quer nada. Quer continuar dormindo no seu rico leito, única e exclusivamente. Que lhe importa o Ouvidor? Êle que recoste as banhas onde bem entender, é a resposta que dá aos homens da vereança. E que não lhe amolem a paciência, pois está disposto a defender com unhas e dentes o móvel onde repousa o corpo todas as noites.


4 – A questão torna-se muito séria. Os vereadores confabulam, discutem, sem encontrar uma solução para o caso. Desesperados, dirigem-se ao Juiz, que decide ser a atitude de Gonçalo Pires um ato de rebeldia contra El-Rei, na pessoa do senhor Ouvidor. Que se dirijam a Gonçalo Pires, portanto, os oficiais de justiça e apanhem a cama, de qualquer modo, nem que seja à fôrça. As ordens são prontamente cumpridas. Gonçalo tenta resistir e a cama lhe é arrancada pràticamente a muque, de nada valendo os protestos e as más palavras que profere no auge da indignação.


5 – Gonçalo Pires recorre à Justiça. O Ouvidor já partiu e querem devolver-lhe a cama e pagar-lhe um aluguel pelo móvel. Mas ele declara que o leito não está no estado em que lho tomaram. “Tem manchas”, afirma, diante do riso de uns e da indignação de outros. E recusa-se a receber de volta a cama, a “não ser no estado em que lha tiraram”. Durante sete anos discute-se a questão. A Câmara instando para que Gonçalo receba o leito; este se recusando a recebê-lo, acusando os vereadores. Afinal, Gonçalo Pires falece, dizem que de mágoa “diante do vexame que sofrera”...

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