quarta-feira, 18 de junho de 2008

De padre, bispo, contador de histórias a ouvidor

Um de meus cunhados vendeu o carrinho e pagou um curso sobre motivação, auto-ajuda, liderança. Na cerimônia de encerramento iniciou seu depoimento dizendo que havia se matriculado no curso porque queria ser guru.

Nunca pretendi ser guru no sentido estrito, mas alguma coisa assemelhada. Primeiro foi um efêmero interesse em ser padre. Não parecia ser muito difícil pronunciar uma prédica: “Caríssimos irmãos. Naquele tempo, Jesus desceu a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e ali ensinava aos sábados”. A temática era permanente, só mudando a exemplificação de acordo com as circunstâncias de momento. O interesse foi fortemente reforçado quando apareceu em Lavras o Bispo Dom Antonio Zattera. Nos anos 50 Lavras do Sul pertencia à arquidiocese de Pelotas. O bispo chegou à cidade como um potentado. O imenso carro americano de suspensão macia, que balançava suavemente ao frear, antecipava, com os recursos da época, os atuais sensores de estacionamento. Como naqueles tempos de poucos automóveis fazer baliza era um exercício de retórica, mais útil era um dos seus recursos, um pedacinho de arame retorcido que, fixado junto aos paralamas, indicava com um barulhinho quando o carro estivesse próximo a encostar nos meios-fios altos.

A figura do bispo me impressionou, principalmente pelas meias de cor grená. O impacto causado pela cor daquelas meias quase me fez entrar imediatamente no
seminário mais próximo. Depois refleti melhor e vi que chegar a bispo não era tão automático assim quanto escalar degraus em uma carreira hierarquizada com mais oportunidades, como a dos militares. Havia o risco de permanecer eterno cura de aldeia. E com um visual rotundo, conseqüência dos almoços dominicais oferecidos pelas fiéis paroquianas.

Na adolescência quis ser contador de histórias. No Brasil era publicada a versão nacional da Popular Mechanics, revista norte-americana que lá pelas décadas de 50 e 60 tinha uma certa obsessão com a hipótese de uma hecatombe nuclear. Lembro que uma das reportagens tratou de um exercício em que a revista pedia a alguns especialistas em incursões no mato, atividade que nos Estados Unidos sempre foi muito popular, para simular a necessidade de uma evacuação da cidade em pouco tempo, algo como uns 20 minutos. O exercício consistia em ver que itens ele comprariam rapidamente em um supermercado para fugir da cidade e sobreviver nas cercanias por umas duas semanas, tempo em que se estimava que a radiação não oferecesse mais tanto perigo. Não lembro se teriam que passar no caixa e pagar as mercadorias, afinal seria uma situação de pânico e o vendedor não teria onde descontar o cheque, enfim, o pessoal pegava lanternas, pilhas, barbante, facão, estas coisas. Provavelmente também muitos enlatados. O restante do exercício consistia em ver se efetivamente conseguiam sobreviver contando somente com aqueles apetrechos.

Na ficção científica o tema foi recorrente. Imaginava-se, então, que tipos de profissionais seriam importantes no caso da devastação nuclear. Um deles, que hoje os avanços tecnológicos modificam sua atuação, era o arquivista, ou o bibliotecário, porque seria da maior importância imediatamente começar a coletar e classificar o conhecimento remanescente. Basicamente livros. Outro, também considerado da maior importância, era o artista, o cantador, o tocador de violão, enfim alguém que pudesse estimular a agregação dos sobreviventes em torno de um fogueira arquetípica. Nesta acepção, um contador de histórias seria bem vindo. A humanidade, i.e o que restou dela, iria presenciar o retorno da transmissão do conhecimento e do entretenimento por via oral.


Achei atraente a possibilidade. Lia muito, achava que teria muita coisa para contar. E era a chance de ter uma ocupação útil e reconhecida, pois a depender de outras qualificações seria um “homem sem qualidades”, como o título do livro do escritor austríaco Robert Musil. Mas, toda esta visão era idílica. Hoje, filmes como Mad Max e O Exterminador do Futuro projetam a imagem de um futuro sombrio.

O período como professor até que permitiu exercitar o ofício da linguagem. Nas ciências sociais, pela necessidade de referência a processos sociais e comportamentos, era mandatório contar histórias. A Universidade de Brasília experimentou o teatro para discussão de temas de Sociologia. Filmes também foram muito utilizados com este propósito. “Bagdá Café”, por exemplo, é um prato cheio.

Para quem tem algum interesse em conhecer um pouco melhor as circunstâncias da arte
da oratória ou mais especificamente da pregação religiosa, vale ler o Padre Antonio Vieira, que dedicou um sermão inteiro, o Sermão da Sexagésima, ao tema da eficácia do pregador: “no pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala”.

Mas, como dizia o saudoso João Saldanha, vida que segue... Não chegando a “cantador de alvoradas, relentos / rimas ricas, sonora canção / trovador de invejável talento / orador que desperta a nação”, como na “Cantoria do Galo”, de Augusto Jatobá, eis que o parafuso deu uma volta e o Altíssimo, cujos desígnios são insondáveis, transformou o antigo candidato a contador de histórias em uma figura da mais absoluta introspecção. Uma legítima coruja, que, aliás, era o símbolo da Faculdade de Filosofia da UFRGS, onde me formei. Foi então que, por meio de um instrumento legal, uma portaria, ou seja, por um imperativo categórico, fui lotado na Ouvidoria do órgão público onde trabalho. Uma verdadeira inflexão da curva. Justa, contudo. Afinal, não havia conseguido prosélitos, nem seguidores de espécie alguma.

Bueno, agora ando olhando os classificados para ver se é possível encontrar um confessionário usado por bom preço.

2 comentários:

Rosamaria disse...

hahahaha

Raimundo,lembras que lá em Lavras tinha umas freiras, entre elas a irmã Beatriz, uma pretinha, baixinha? Pois eu queria ser freira como ela. Achava o máximo!
Lembro quando o bispo esteve lá e de todo aquele aparato.

Desde a primeira vez que te 'li', fiquei pensando que curso tu terias feito. Deveria ter escrito. De 'cara' vi que era filosofia.

Se eu souber de algum confessionário à venda te aviso.
Um abraço.

Andrea Leal disse...

Amigo, acho uma boa esta profissão de ouvidor. Quem trabalha com esta espécie tão complexa que é o ser humano, bem sabe que as pessoas estão precisando demais serem ouvidas. Acho que irias "enricar".