domingo, 27 de maio de 2012

A FÚRIA DOS ELEMENTOS E UM POUCO DE POLÍTICA (Porto Alegre – Parte IX)


Peitando as intempéries... e perdendo feio

Enfrentar o inverno gaúcho é coisa para profissionais. Enfrentá-lo, sem ter todos os equipamentos desejáveis, como costuma ser o mais constante entre estudantes sem recursos, era tarefa literalmente hercúlea. Situação parecida com a do sentimento de pequenez do homem diante do universo, é a de sentir-se o ser mais ínfimo da terra quando o sujeito fica sem roupa em pleno inverno. Na minha época de estudante, as roupas de baixo masculinas, além da cueca, incluíam camiseta de manga comprida e cuecão, este mais conhecido como ceroula. O cuecão mais quente era o feito de flanela e, como o nome sugere, parecia uma cueca grande, isto é, com pernas longas, justas no corpo. Junto com a camiseta ambos serviam para manter a temperatura da pele em condições próximas à normalidade. Quando se tirava tudo isto logo em seguida o calor do corpo ia embora e o sujeito tiritava.

Uma autêntica ceroula

Para quem não associa o nome à pessoa, a ceroula era muito usada no Velho Oeste. Em qualquer filme do gênero quando o mocinho tinha que fugir às pressas por um telhado, com as roupas na mão e deixando a mocinha aflita, estava vestindo ceroula.

Uma vez queimou a resistência do nosso banheiro na pensão. Como o conserto demoraria além dos meus horários, resolvi enfrentar o banho frio. Um colega, que havia prestado serviço militar na fronteira, contava que os soldados eram submetidos às mais duras tarefas físicas em pleno inverno sob a alegação do sargento de que “o soldado é superior ao tempo”. Pensei lá com meus botões (antes de tirar a roupa, obviamente) que se o soldado era superior ao tempo, estudante também podia ser. Assim, depois de passar pela absoluta humilhação de ficar peladão em pleno ar gelado resolvi entrar de peito aberto embaixo do chuveiro com água fria. No auge do inverno gaúcho, ressalte-se novamente. Minha intenção era vencer a resistência à frieza da água e tomar um banho bem rápido. Mas, foi só cair a primeira lufada de pingos dágua que senti uma reação corporal tão forte que quase me provoca falta de ar. Saí dali imediatamente. Enquanto me recuperava da experiência, que durou apenas dramáticos segundos, cheguei à conclusão de que soldado até podia ser, mas estudante definitivamente não era superior ao tempo.


De outra feita, choveu em Porto Alegre durante trinta dias seguidos. Mês de junho ou julho, não lembro bem. Ou uma mescla dos dois, já que era época de aula. Para a gente, morador de pensão, foi um problema seriíssimo. A lavadeira vinha uma vez por semana pegar roupa para trazer na semana seguinte. Com a chuvarada não tinha como secar a roupa ao ar livre, que era, portanto, secada no ferro de passar. Naturalmente, o resultado não podia ser brilhante. O problema ficava mais complicado porque não tínhamos tanta roupa assim. Um dos colegas aproveitou para dramatizar ainda mais a situação nos seus informes à família, com a natural insinuação de que um reforço extra da mesada seria bem vindo. Este expediente só dava certo com famílias que tinham alguma elasticidade de renda, isto é, que podiam comportar gastos extras. Aos demais mortais só restava consolar-se.  

Galochas de borracha muito usadas nos anos 60 – modelo masculino (tive uma destas)

Outro problema provocado pela chuva continuada era ficar com o sapato constantemente encharcado. Aliás, naquelas condições de dilúvio à vista, não chegamos a morrer de pneumonia galopante certamente pela misericórdia do Altíssimo. Nesta época usava-se galocha. Um recurso muito útil, mas que ficou sepultado no tempo. A galocha era uma proteção do sapato, feita de um composto de borracha. Para andar na rua era ótima. O problema era ficar em um ambiente fechado, como na sala de aula. Não era de bom tom ficar de galochas, até porque não eram elegantes. A expressão “chato de galochas” aponta exatamente para o aspecto superlativo de quem não é bem recebido e ainda usa o referido artefato.

Traduzindo Mao

Um colega, envolvido em atividades clandestinas, me convidou a participar da tradução de um livrinho do Presidente Mao, Mao Tsé-Tung, da China. Não lembro o título, mas era um livrinho pequeno, de capa obviamente vermelha, talvez alguma coisa tipo “Pensamentos do Presidente Mao”. A edição que tínhamos era em espanhol. O texto em espanhol, por sua vez, era tradução da tradução da tradução. Nossa tarefa consistia em adaptar o texto para língua portuguesa. O que tentávamos fazer da melhor forma possível, porque o contexto das reflexões do Presidente Mao, a China rural, era uma realidade muito diferente da nossa. Muitas passagens eram confusas ou então absolutamente incompreensíveis. Nestes casos, inventávamos qualquer coisa que nos parecesse fazer sentido dentro dos propósitos da obra. Depois morríamos de rir. Enfim, meu pagamento era em jantares patrocinados em um restaurante chamado “Red Pig” (Porco Vermelho), no bairro de Santana, quero crer. Nunca soube se o nome do restaurante tinha alguma coisa a ver com atividades clandestinas, apesar de ser especializado em massas, as italianas felizmente. Como também nunca fiquei sabendo se aquele nosso texto foi aproveitado ou não. Se foi, com certeza não melhorou a compreensão política de ninguém.

Circulando pela Assembleia Legislativa

Logo no começo dos cursos acadêmicos as atividades escolares não eram tão pesadas e sobrava algum tempinho para a gente gastar. Assim, eu e outro colega passamos a frequentar as sessões da Assembleia Legislativa do RGS. Nesta época a chamada política estudantil, a dos grêmios estudantis, dos diretórios centrais de estudantes e da própria União Nacional dos Estudantes já empolgavam a participação dentro das universidades. Mas eu não estava disposto a me candidatar a mártir. O ambiente era muito pesado. Preferíamos algo mais ameno no sentido tradicional de participação política. Tínhamos alguma simpatia teórica pela Democracia Cristiana chilena, do Presidente Eduardo Frei, cuja organização partidária era muito interessante e incluía a organização de diversas atividades direcionadas para as populações mais carentes, no sentido de efetivamente lhes oferecer serviços e canais de cidadania sem a obrigatoriedade de que aquilo implicasse em assinar ficha no partido. De certa forma, alguma coisa um pouco parecida com o que a Rede Globo faz em suas Ações Globais. No Brasil havia o Partido Democrata Cristão, mas muito diferente do chileno e de atuação mais modesta no contexto brasileiro.

Tivemos uma experiência efêmera junto à Ala Jovem do PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro, que depois foi o cerne do MDB, mais tarde transformado em PMDB. O PTB era o partido de Leonel Brizola. Quando ele voltou para o Brasil, após seu exílio político, perdeu o comando do partido para Ivete Vargas. Organizou, então, o atual PDT. A experiência foi efêmera porque descobrimos que Ala Jovem não significava o que imaginávamos. No PTB e também nos outros partidos a Ala Jovem era um expediente utilizado para dar oportunidades a políticos que não conseguiam se estabelecer nos Diretórios Regionais. Tampouco a programação da Ala Jovem era direcionada especificamente para problemas próprios da juventude.

Assembleia Legislativa do RGS no início dos anos 60

Em consequência, partimos para uma participação política do tipo “free lance”, basicamente como espectadores. Acompanhar as sessões da Assembleia Legislativa do RGS não era necessariamente enfadonho. O Rio Grande do Sul sempre se notabilizou por ter como políticos grandes tribunos. Era isto que nos atraía, em especial os inflamados discursos de Cândido Norberto, do PSB, Partido Socialista Brasileiro, que acabou cassado em 1966. Fora do horário das sessões ficávamos perambulando pela Casa, vendo uma coisa aqui, outra ali, inclusive conhecendo situações internas e até mesmo dramas humanos que não eram explorados pela imprensa.  Acabamos fazendo pouso na diminuta bancada do MTR, Movimento Trabalhista Renovador, na época composta por três parlamentares, um deles de sobrenome Fensterseifer, parente de um centro-médio do Grêmio, Elton Fensterseifer, o que parecia ser uma credencial suficiente. Sempre nos receberam bem e conversavam muito conosco, inclusive porque tinham interesse em saber das razões porque a participação política convencional não conseguia atrair os universitários, justo a parcela mais promissora da juventude. O MTR foi criação do Deputado Fernando Ferrari, que ficou conhecido nacionalmente com a sua “Campanha das mãos limpas”, contra a corrupção dos dirigentes partidários. Veja-se, portanto, que esses problemas da classe política já vêm de longa data.

Conseguimos alguns exemplares do Diário da Assembleia de grande interesse histórico, os que traziam os discursos da oposição logo nos primeiros dias após a queda do governo civil. Infelizmente não conservei esse material. Acho que os meus exemplares devem ter ficado com meu colega. É muito provável que atualmente seja muito difícil conseguir este material, principalmente porque naqueles tempos os arquivos de documentos eram físicos e estes que mencionei devem ter sido posteriormente censurados.

Enfim, foi uma curta experiência mas muito interessante.

-oO)(Oo-


2 comentários:

Marina disse...

Eu também usava galochas, mas o modelo feminino, que não era tão feio. Assemelhava-se a uma bota de cano curto. Como eram úteis aqueles calçados! de vez em quando alguém tenta ressuscitá-los,mas sem muito êxito.
Linda a foto da antiga Assembléia. Nesta época não a frequentava. Comecei a fazê-lo, como professora, nas memoráveis reivindicações de minha categoria.

Anônimo disse...

Acho comtentarios de estudante pobre parecidos com os do JUREMIR COLUNISTA DO CORREIO DO POVO! SO QUE ELE TEM 50 ANOS DE GERACAO APOS A NOSSA! SOMOS OS ARRIVISTAS DO INTERIOR DO RS TENTANDO MELHORAR DE VIDA PELOS ESTUDOS NA CAPITAL! E VENCEMOS COM OU SEM GALOCH AS!