Peitando as
intempéries... e perdendo feio
Enfrentar o inverno gaúcho é coisa para profissionais.
Enfrentá-lo, sem ter todos os equipamentos desejáveis, como costuma ser o mais
constante entre estudantes sem recursos, era tarefa literalmente hercúlea. Situação
parecida com a do sentimento de pequenez do homem diante do universo, é a de sentir-se
o ser mais ínfimo da terra quando o sujeito fica sem roupa em pleno inverno. Na
minha época de estudante, as roupas de baixo masculinas, além da cueca,
incluíam camiseta de manga comprida e cuecão, este mais conhecido como ceroula.
O cuecão mais quente era o feito de flanela e, como o nome sugere, parecia uma
cueca grande, isto é, com pernas longas, justas no corpo. Junto com a camiseta
ambos serviam para manter a temperatura da pele em condições próximas à
normalidade. Quando se tirava tudo isto logo em seguida o calor do corpo ia
embora e o sujeito tiritava.
Uma autêntica ceroula
Para quem não associa o nome à pessoa, a ceroula era muito
usada no Velho Oeste. Em qualquer filme do gênero quando o mocinho tinha que
fugir às pressas por um telhado, com as roupas na mão e deixando a mocinha
aflita, estava vestindo ceroula.
Uma vez queimou a resistência do nosso banheiro na pensão.
Como o conserto demoraria além dos meus horários, resolvi enfrentar o banho
frio. Um colega, que havia prestado serviço militar na fronteira, contava que
os soldados eram submetidos às mais duras tarefas físicas em pleno inverno sob
a alegação do sargento de que “o soldado é superior ao tempo”. Pensei lá com
meus botões (antes de tirar a roupa, obviamente) que se o soldado era superior
ao tempo, estudante também podia ser. Assim, depois de passar pela absoluta
humilhação de ficar peladão em pleno ar gelado resolvi entrar de peito aberto
embaixo do chuveiro com água fria. No auge do inverno gaúcho, ressalte-se
novamente. Minha intenção era vencer a resistência à frieza da água e tomar um
banho bem rápido. Mas, foi só cair a primeira lufada de pingos dágua que senti
uma reação corporal tão forte que quase me provoca falta de ar. Saí dali imediatamente.
Enquanto me recuperava da experiência, que durou apenas dramáticos segundos, cheguei
à conclusão de que soldado até podia ser, mas estudante definitivamente não era
superior ao tempo.
De outra feita, choveu em Porto Alegre durante trinta dias
seguidos. Mês de junho ou julho, não lembro bem. Ou uma mescla dos dois, já que
era época de aula. Para a gente, morador de pensão, foi um problema seriíssimo.
A lavadeira vinha uma vez por semana pegar roupa para trazer na semana
seguinte. Com a chuvarada não tinha como secar a roupa ao ar livre, que era,
portanto, secada no ferro de passar. Naturalmente, o resultado não podia ser brilhante.
O problema ficava mais complicado porque não tínhamos tanta roupa assim. Um dos
colegas aproveitou para dramatizar ainda mais a situação nos seus informes à
família, com a natural insinuação de que um reforço extra da mesada seria bem
vindo. Este expediente só dava certo com famílias que tinham alguma
elasticidade de renda, isto é, que podiam comportar gastos extras. Aos demais
mortais só restava consolar-se.
Galochas de borracha muito usadas nos anos 60 – modelo
masculino (tive uma destas)
Outro problema provocado pela chuva continuada era ficar
com o sapato constantemente encharcado. Aliás, naquelas condições de dilúvio à
vista, não chegamos a morrer de pneumonia galopante certamente pela
misericórdia do Altíssimo. Nesta época usava-se galocha. Um recurso muito útil,
mas que ficou sepultado no tempo. A galocha era uma proteção do sapato, feita
de um composto de borracha. Para andar na rua era ótima. O problema era ficar
em um ambiente fechado, como na sala de aula. Não era de bom tom ficar de galochas,
até porque não eram elegantes. A expressão “chato de galochas” aponta
exatamente para o aspecto superlativo de quem não é bem recebido e ainda usa o referido
artefato.
Traduzindo Mao
Um
colega, envolvido em atividades clandestinas, me convidou a participar da
tradução de um livrinho do Presidente Mao, Mao Tsé-Tung, da China. Não lembro o
título, mas era um livrinho pequeno, de capa obviamente vermelha, talvez alguma
coisa tipo “Pensamentos do Presidente Mao”. A edição que tínhamos era em espanhol.
O texto em espanhol, por sua vez, era
tradução da tradução da tradução.
Nossa tarefa consistia em adaptar
o texto para língua portuguesa. O que
tentávamos fazer da melhor forma possível, porque o contexto das reflexões do
Presidente Mao, a China rural, era uma realidade muito diferente da nossa.
Muitas passagens eram confusas ou então absolutamente incompreensíveis. Nestes
casos, inventávamos qualquer coisa que nos parecesse fazer sentido dentro dos propósitos da obra. Depois
morríamos de rir. Enfim, meu pagamento era em jantares patrocinados em um
restaurante chamado “Red Pig” (Porco Vermelho), no bairro de Santana, quero
crer. Nunca soube se o nome do restaurante tinha alguma coisa a ver com
atividades clandestinas, apesar de ser especializado em massas, as italianas
felizmente. Como também nunca fiquei sabendo se aquele nosso texto foi
aproveitado ou não. Se foi, com certeza não melhorou a compreensão política de
ninguém.
Circulando pela Assembleia Legislativa
Logo no
começo dos cursos acadêmicos as atividades escolares não eram tão pesadas e
sobrava algum tempinho para a gente gastar. Assim, eu e outro colega passamos a
frequentar as sessões da Assembleia Legislativa do RGS. Nesta época a chamada
política estudantil, a dos grêmios estudantis, dos diretórios centrais de
estudantes e da própria União Nacional dos Estudantes já empolgavam a
participação dentro das universidades. Mas eu não estava disposto a me
candidatar a mártir. O ambiente era muito pesado. Preferíamos algo mais ameno
no sentido tradicional de participação política. Tínhamos alguma simpatia
teórica pela Democracia Cristiana chilena, do Presidente Eduardo Frei, cuja
organização partidária era muito interessante e incluía a organização de
diversas atividades direcionadas para as populações mais carentes, no sentido
de efetivamente lhes oferecer serviços e canais de cidadania sem a
obrigatoriedade de que aquilo implicasse em assinar ficha no partido. De certa
forma, alguma coisa um pouco parecida com o que a Rede Globo faz em suas Ações
Globais. No Brasil havia o Partido Democrata Cristão, mas muito diferente do
chileno e de atuação mais modesta no contexto brasileiro.
Tivemos
uma experiência efêmera junto à Ala Jovem do PTB, o Partido Trabalhista
Brasileiro, que depois foi o cerne do MDB, mais tarde transformado em PMDB. O
PTB era o partido de Leonel Brizola. Quando ele voltou para o Brasil, após seu
exílio político, perdeu o comando do partido para Ivete Vargas. Organizou,
então, o atual PDT. A experiência foi efêmera porque descobrimos que Ala Jovem
não significava o que imaginávamos. No PTB e também nos outros partidos a Ala
Jovem era um expediente utilizado para dar oportunidades a políticos que não
conseguiam se estabelecer nos Diretórios Regionais. Tampouco a programação da
Ala Jovem era direcionada especificamente para problemas próprios da juventude.
Assembleia
Legislativa do RGS no início dos anos 60
Em
consequência, partimos para uma participação política do tipo “free lance”,
basicamente como espectadores. Acompanhar as sessões da Assembleia Legislativa
do RGS não era necessariamente enfadonho. O Rio Grande do Sul sempre se
notabilizou por ter como políticos grandes tribunos. Era isto que nos atraía,
em especial os inflamados discursos de Cândido Norberto, do PSB, Partido
Socialista Brasileiro, que acabou cassado em 1966. Fora do horário das sessões
ficávamos perambulando pela Casa, vendo uma coisa aqui, outra ali, inclusive
conhecendo situações internas e até mesmo dramas humanos que não eram
explorados pela imprensa. Acabamos fazendo
pouso na diminuta bancada do MTR, Movimento Trabalhista Renovador, na época
composta por três parlamentares, um deles de sobrenome Fensterseifer, parente
de um centro-médio do Grêmio, Elton Fensterseifer, o que parecia ser uma
credencial suficiente. Sempre nos receberam bem e conversavam muito conosco,
inclusive porque tinham interesse em saber das razões porque a participação
política convencional não conseguia atrair os universitários, justo a parcela
mais promissora da juventude. O MTR foi criação do Deputado Fernando Ferrari,
que ficou conhecido nacionalmente com a sua “Campanha das mãos limpas”, contra
a corrupção dos dirigentes partidários. Veja-se, portanto, que esses problemas
da classe política já vêm de longa data.
Conseguimos
alguns exemplares do Diário da Assembleia de grande interesse histórico, os que
traziam os discursos da oposição logo nos primeiros dias após a queda do
governo civil. Infelizmente não conservei esse material. Acho que os meus exemplares
devem ter ficado com meu colega. É muito provável que atualmente seja muito
difícil conseguir este material, principalmente porque naqueles tempos os
arquivos de documentos eram físicos e estes que mencionei devem ter sido
posteriormente censurados.
Enfim, foi
uma curta experiência mas muito interessante.
-oO)(Oo-
2 comentários:
Eu também usava galochas, mas o modelo feminino, que não era tão feio. Assemelhava-se a uma bota de cano curto. Como eram úteis aqueles calçados! de vez em quando alguém tenta ressuscitá-los,mas sem muito êxito.
Linda a foto da antiga Assembléia. Nesta época não a frequentava. Comecei a fazê-lo, como professora, nas memoráveis reivindicações de minha categoria.
Acho comtentarios de estudante pobre parecidos com os do JUREMIR COLUNISTA DO CORREIO DO POVO! SO QUE ELE TEM 50 ANOS DE GERACAO APOS A NOSSA! SOMOS OS ARRIVISTAS DO INTERIOR DO RS TENTANDO MELHORAR DE VIDA PELOS ESTUDOS NA CAPITAL! E VENCEMOS COM OU SEM GALOCH AS!
Postar um comentário