Como até agora resisti a participar das redes sociais, tenho a impressão de que a atividade de blogueiro é cada vez mais o exercício de um lobo solitário. Suponho que uma das vantagens desta atitude seja a liberdade de não necessitar estar conectado permanentemente. Isto na contramão da história, até mesmo de Paulo Coelho, que em entrevista recente conta que é fã do Twitter e que posta diariamente no Facebook: “São plataformas muito importantes para mim, para exercer a arte de escrever. Acho que isso tudo é literatura. As pessoas acham que literatura é só o que está em livros, mas não. Literatura é a arte de transformar em palavras um sentimento e uma emoção. Então, faço isso não somente no livro, eu exerço a arte de escrever através de blogs, Twitter e Facebook”. Este depoimento foi publicado no “Almanaque” da Livraria Saraiva, edição de abril de 2012.
Na mesma linha de raciocínio, pode-se dizer que o blog é um formato atual que serve também para divulgar mensagens que já foram publicadas de outra forma. Aqui mesmo mostrei um exemplo: em 20/10/2009 postei “Um blog do século XIX”, onde apresentava algumas passagens que havia selecionado dos diários de Joaquim Nabuco, as quais poderiam perfeitamente fazer parte de um blog contemporâneo.
Michel de Montaigne
O caderno Eu & Fim de Semana, de 30/03/2012, do jornal Valor Econômico, publicou “Faça como Montaigne”, matéria onde Marcelo Rezende analisa o livro “Como Viver – Uma Biografia de Montaigne em Uma Pergunta e Vinte Tentativas de Resposta”, da escritora inglesa Sarah Bakewell. Segundo a autora, Montaigne, filósofo, moderno antes dos modernos, é um autor de autoajuda que pode auxiliar qualquer pessoa a viver melhor com a própria natureza e a natureza dos acontecimentos do mundo. Ela concorda com Andrew Sullivan, colunista do jornal inglês “The Sunday Times”, que disse ter sido Montaigne o primeiro blogueiro.
Na opinião de Sarah “há realmente algo especial em Montaigne, porque ele tende a fazer perguntas mais do quer dar respostas ou colocar sua opinião em primeiro plano. Algo muito raro em qualquer era”. E esclarece sua opinião sobre a caracterização de Montaigne como escritor de autoajuda, ou seja, faz a distinção entre o modo pelo qual ele via a filosofia e um livro de aconselhamento: “Eu não penso que deveria existir uma divisão rigorosa. Não se trata de alta cultura contra baixa cultura. Mas há uma diferença. Hoje a autoajuda procura por respostas fáceis e imediatas, com instruções sobre como fazer isso ou aquilo para ser feliz. Por isso Montaigne é um filósofo e não um guru. Não há respostas fáceis e imediatas. Talvez pudéssemos vê-lo como um romancista. Nós aprendemos em seu livro do mesmo modo que aprendemos ao ler um romance: vemos uma pessoa nas diferentes fases da vida, errando e tentando tomar boas decisões. Nos reconhecemos em outro ser humano”.
Michel de Montaigne
Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) nasceu no castelo de Montaigne, na França. Preocupado com a preservação dos símbolos exteriores da aristocracia, seu pai dedicou especial empenho a propiciar uma educação esmerada a Michel. Para que seus ouvidos se tornassem refinados, todas as manhãs o menino era acordado ao som da espineta, uma espécie de cravo, e até os seus seis anos de idade familiares e serviçais só podiam falar em latim, para facilitar seu aprendizado da língua culta. Aprendeu as primeiras letras em latim ensinadas por um preceptor alemão. Estudou Direito, foi magistrado, membro do parlamento e prefeito de Bordeaux por duas vezes. Seus Ensaios, obra que lhe valeu ser considerado o inventor do ensaio pessoal, foram redigidos durante períodos em que passou isolado, na torre do castelo da família, após a morte de seu pai.
Os Ensaios de Montaigne são compostos por três livros. Os dois primeiros volumes foram publicados em 1580. O terceiro foi edição póstuma, em 1593. Alguns títulos dos capítulos: “Da tristeza”, “Dos nossos ódios e afeições”, “Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes em vida”, “Da incoerência de nossas ações”, “Como o nosso espírito cria suas próprias dificuldades”, “Da companhia dos homens, das mulheres e dos livros” e “Da arte de conversar”.
Como é possível que a maioria dos leitores deste blog nunca tenha lido Montaigne, reproduzo abaixo trechos dos seus Ensaios. Pela sua extensão, não caberia aqui a reprodução na íntegra de qualquer dos capítulos. Além disto, é fácil encontrar na Internet uma coletânea de suas frases mais famosas e aforismos. Os poucos trechos escolhidos o foram pela curiosidade do seu enfoque, quer quando possui um viés, digamos, antropológico, quer quando comportamental. Os trechos são transcritos de “Michel de Montaigne - Ensaios”, coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, 2ª ed., 1980, tradução de Sergio Milliet.
Trecho do Capítulo XLIX “Dos costumes antigos” (Livro Primeiro): Os antigos tomavam banhos cotidianos, antes das refeições e os tomavam tão seguidamente quanto nós lavamos as mãos. A princípio lavavam apenas os braços e as pernas. Mais tarde porém (e isso durou séculos e se propagou por toda parte) mergulhavam completamente nus em banhos acrescidos de sustâncias perfumadas. Empregar água natural era prova de grande simplicidade. As pessoas particularmente delicadas e requintadas perfumavam o corpo todo ao menos três ou quatro vezes por dia. Arrancavam todos os pelos como nossas mulheres se acostumaram a fazer com os da fronte, de algum tempo para cá: “tens o peito, as pernas e os braços depilados” (Marcial) e os arrancavam, embora possuíssem ungüentos para o mesmo fim: “Unta a pele de ungüento depilatório ou a embebe de giz derretido no vinagre” (Id.).
Trecho do Capítulo XV “Nosso desejo cresce com a dificuldade” (Livro Segundo): Pensamos em tornar mais sólidos os laços do casamento, evitando a possibilidade de rompê-los; mas ocorreu que se relaxaram e desfizeram na mesma proporção em que se apertava o nó do constrangimento. Ao contrário, o que manteve os casamentos em honra durante tanto tempo em Roma foi a facilidade de dissolvê-los à vontade. Tanto mais se preocupavam com guardar sua mulher, quanto mais fácil era perdê-la. E embora o divórcio estivesse ao alcance de todos, decorreram mais de quinhentos anos sem que ninguém o requeresse: “o permitido não tem encantos; o proibido excita o desejo” (Ovídio).
Trecho do Capítulo XII “Da fisionomia” (Livro Terceiro): Parece-me que as formas e as linhas do rosto, pelas quais se inferem algumas características internas, bem como algo de nosso destino, não têm relação direta com a beleza e a feiúra, assim como um ar sereno e perfumado não garante a salubridade, nem uma atmosfera pesada e mal cheirosa é indício certo de infecção em tempo de epidemia. Os que acusam as mulheres de desmentirem sua beleza com seus costumes, nem sempre acertam, pois em um rosto que deixe a desejar pode alojar-se a probidade, ao passo que muitas vezes deparamos em lindos olhos ameaças reveladoras de um caráter mau e perigoso. Há fisionomias que nos parecem favoráveis, e, entre inimigos desconhecidos que nos cercam de todos os lados, escolhemos de imediato um de preferência a outro, rendendo-nos a ele com mais confiança e sem quem a beleza pese em nossa resolução.
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Mais Montaigne? Aos sebos, às livrarias.
-oO)(Oo-
2 comentários:
Desconhecia o fato de Michel de Montaigne, ter sido considerado por alguns, como o primeiro blogueiro.
Diferentemente de ti, já me rendi ao Facebook porém, não coloco ali, coisas muito pessoais.Ás vezes me surpreendo com fotos onde apareço e que eu não publicaria, por alguma razão, colocadas por amigos.
"Literatura é a arte de transformar em palavras um sentimento e uma emoção".
Isto tu fazes muito bem, Raimundo e, além do blog, que conduzes perfeitamente, poderias dar alegrias aos que participam das redes socias.
Um abraço
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