sábado, 31 de março de 2012

DIGRESSÕES E A DIVULGAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE UMA CARTA



Em agosto de 2001 o jornal Correio Braziliense publicou uma matéria com o conhecido título “Recordar é Viver”. Tratava do hábito crescente de as pessoas contarem sua vida. Nos Estados Unidos, onde estas atitudes comportamentais costumam surgir primeiro e onde logo são potencializadas, já foram publicados dois livros a respeito: A Guide for Recalling and Telling Your Life Story (Um Guia para Recuperar e Contar a História de sua Vida), da Hospice Foundation of America, e Writing Family Histories and Memories (Escrevendo Histórias de Famílias e Memórias), de Kirk Polking. O uso de exercícios de escrita é incentivado por psicólogos e psiquiatras como um modo eficaz para ajudar as pessoas a encontrarem uma saída para seus problemas. “Isso ajuda o paciente a encontrar um sentido para sua vida e a desenvolver uma narrativa consistente”, segundo Kenneth Doka, professor da Universidade de New Rochelle, em Nova York. E Kirk Polling, já mencionado, diz que escrever as memórias é melhor do que contá-las verbalmente, pois o registro escrito tende a ser mais honesto e verdadeiro.
Mais recentemente o Correio Braziliense voltou a tratar do tema, desta vez em sua Revista de Domingo, de 16/10/2011, em uma matéria com o título “Escrever para se (re)conhecer”. A reportagem apresentava o livro Fios da memória – um guia para escrever de si, organizado pelas terapeutas Helena Silveira e Adriana Kortlandt, publicado pela Thesaurus, uma editora de Brasília. No livro, a escrita de si seria, mais do que um processo terapêutico, um processo de autoconhecimento. A elaboração de um blog é um dos processos indicados para quem quer contar a sua história pessoal. Reconhecendo o valor histórico desses relatos pessoais, o Museu da Pessoa, de São Paulo, montou um acervo de histórias de vida que podem contribuir para a compreensão de períodos da história do país.  O site é: www.museudapessoa.net.
 A Internet é, obviamente, um facilitador para quem deseja contar suas histórias de vida. Bem ou mal, de forma talvez canhestra, é o que ultimamente tento fazer por meio das mal digitadas linhas deste blog. A narrativa vinha seguindo em ordem cronológica até que foi necessária interrompê-la temporariamente por conta de problemas inesperados. Na impossibilidade de poder manusear caixas com meus recortes de jornais e registros pessoais, que permitiriam melhor ilustrar a narrativa, comecei a tratar de alguns autores piauienses como uma forma mais fácil de manter o blog em atividade. No entanto, faltando poucas postagens para encerrar esta nova abordagem e, assim, retomar o fio das histórias de vida, quando as condições o permitirem, o acaso trouxe a oportunidade de também interromper o atual tratamento mais literário e colocar um enclave para o presente registro.
Pois encontrei entre meus guardados na gaveta uma carta de 1983 que aqui será transcrita sem autorização. O que em si já dá um tchan a mais e provoca aquele frisson que surge quando se tangenciam situações mais ou menos delicadas. Afinal, nunca se sabe que reação as pessoas vão ter, principalmente hoje em dia, onde por qualquer coisinha costumam ser levantadas bandeiras que alegam defesa do último refúgio da individualidade. Nada obstante, em tempos de Big Brother, de cotidiano apelo à necessidade de se estar permanentemente interagindo e conectado às redes sociais, o que se fará aqui corresponderá a uma divulgação de caráter, digamos, angelical. Antes, porém, uma pequena digressão sobre a amizade.
A importância da amizade, como se alguém tivesse qualquer dúvida a respeito

Pelos e-mails que cotidianamente todos nós recebemos, é fácil encontrar, além das várias mensagens que coletam frases sobre o assunto, pelo menos dois textos poéticos que tratam da amizade: “Procura-se um amigo”, de Vinicius de Moraes, e “Amigo Aprendiz”, de Fernando Pessoa. Destarte, vou abordar o tema com base na minha própria vivência.
Amigos são importantes, bem como os grupos de referência que nos envolvem. Minha vida profissional certamente ficou marcada por ter me desgarrado do grupo de referência, os colegas do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Mas, o que passou, passou. Ao longo da vida não parece fácil manter amizades, embora as da chamada primeira hora são as que têm mais chance de permanecer. Em meu exemplo pessoal cito os colegas da CAPES, principalmente os das décadas de 1970 e 1980, com os quais até hoje mantenho relacionamento.
 Como a trajetória de vida da pessoa pode envolver um longo período de tempo, algumas amizades se esvaem por razões “naturais”, como, por exemplo, a saída de uma cidade para estudar em outra, quando então os caminhos se diferenciam, assim como outras, que são intensíssimas durante um certo período, desaparecem ou se diluem de forma tranquila, mas tão definitiva que as pessoas acabam se tornando estranhas umas às outras. Algumas, no entanto, se rompem de forma traumática e são estas as que doem. No outono da vida é mais raro formar novas amizades, mas não impossível, e estas, talvez pela experiência de vida acumulada, são saborosas. Perdem-se também aquelas amizades interrompidas quando um dos parceiros recebe o chamamento do Altíssimo. Foi assim que, dos convívios em Lavras do Sul, perdi primeiro José Francisco Mazzini, que cedo partiu, e que, um pouco mais velho, foi importante em minha formação pessoal, com sua paciência para me ensinar as coisas do mundo, a exemplo das importantíssimas características da rivalidade entre Grêmio e internacional. Mais tarde perdi Luiz Carlos Barcelos, com quem, na infância, brincava quase que diariamente e que mais tarde, em Porto Alegre, tornei a encontrar por breve período. Ele também atendeu ao chamado do Altíssimo. Mas, não foram os únicos, lamentavelmente.
O relato mencionado no título

Durante todo o meu tempo de permanência em Porto Alegre convivi com Carlos Romeu Argemi Pinto, um grande talento principalmente em termos de conhecimento literário. Carlos Pinto, como era conhecido, chegou a ter, por pouco mais de um ano, uma livraria chamada Sagarana. Dizia, então, já ter até o título para publicar um livro meu: “Inéditos de Raimundo Corrêa”, blague evidente com o poeta parnasiano homônimo Raimundo Correia.
Assim que fui para Teresina ele me mandou uma carta dizendo que quando fosse à cidade iríamos ao bar tal, depois passearíamos pela avenida tal e iríamos para outro estabelecimento, etc. e tal. Fiquei surpreso com a correta descrição dos principais points da capital. Alguns anos depois, quando em Porto Alegre, perguntei-lhe como tinha elaborado aquela carta, já que tinha certeza de que ele nunca havia estado por lá nem conhecia ninguém da terra. Contou-me, singelamente, que havia se guiado pelas informações de um Guia Quatro Rodas.
 
Porto Alegre, Parque da Redenção, em um domingo qualquer de 1971:
Carlos Pinto (o mais fortinho) comigo e com sua família
Pois eis que, mexendo em minha papelada, descubro uma carta datilografada que Carlos Pinto havia me enviado em dezembro de 1983, quando eu já estava radicado em Brasília. A carta se destinava a “retomar uma amizade que desafia os anos e as agruras da vida” (o que, infelizmente, veio a termo), e contava que nos seus velhos papéis havia encontrado uma carta escrita em 1974, por ocasião do meu casamento, e que nunca remeteu. Reproduziu o texto que, embora tendo nove anos de atraso, lhe parecia ainda válido. Mesmo não tendo sua autorização para divulgar a carta, o texto é de tal forma inventivo que merece ser aqui transcrito:
Parabéns, velho Maurício [meu codinome completo era Bacharel Maurício Machado Penumbra]. Parabéns mesmo. Foi uma luta convencer as menininhas aqui do sul a se conformarem com a nova e dura realidade: o Bacharel casado. Foi fogo. Elas tentaram de tudo. Manifestos foram escritos. Concentrações foram realizadas. Havia até um plano de anexação do Piauí. Lavras aderiu integralmente e já preparava uma marcha. O clima nos bares era insuportável. Na Filosofia, centro das operações, circulavam boatos alarmistas. Reinava o terror. Finalmente depois de muito trago e discussão, chegaram a um acordo – um tanto conciliador para as tradições do Rio Grande -, mas, enfim, todos concordaram com a tese do velho Aurélio [um de nossos amigos comuns] de que tu aí no Piauí, agora, poderias resolver o problema populacional desse despovoado Estado. São muito estranhas essas mulheres, muito estranhas. Clandestinamente, enquanto se realizavam as conversações de paz, escrevi um poeminha, que lido em toda a cidade, vale dizer, nas mesas de todos os bares, fez amplo sucesso:
CANTIGA DE AMIGO
CANTIGA DE AMOR
Lavras te deu Maria,
Bagé, Matilde
Teu amor secreto e humilde.
Porto Alegre te entregou a Rainha,
Bela e delirante.
Mas o Rio Grande emocionado
Muitas mais te daria
Se o Piauí, já afetado
Não te ordenasse MÁRCIA!
MÁRCIA – a grande amada”.
E encerrava a missiva com a frase: “Que beleza o teu GRÊMIO, campeão do mundo!” Estávamos, vale lembrar, em 1983.
Como entre os leitores pode haver quem tenha uma imaginação delirante ou mesmo uma crença ilimitada em informações epistolares, convém esclarecer que, exceto pelas linhas finais da poesia, o texto é pura ficção, sem qualquer relação com fatos da realidade.
É isto aí.
-oO)(Oo-

3 comentários:

Rosamaria disse...

Que bacana este teu post, Raimundo!

Teve uma época difícil na minha vida em que eu escrevia e muito me ajudou. Casualmente hoje almoçamos na casa de uma amiga que está passando por grandes dificuldades de saúde e eu falei pra ela que fizesse o mesmo. Ela vai criar um blog.

Fica bom logo pra continuares a nos alegrar com a tua história.

Descreveste, muito bem como sempre, a importância da amizade. A perda do Quico foi um baque pra todos nós, ele era muito querido por todos.

Eu tive mesmo uma imaginação delirante, hahaha. Com certeza a Márcia venceu todas...como eu.

Um abraço.

Rosamaria disse...

Que bacana este teu post, Raimundo!

Teve uma época difícil na minha vida em que eu escrevia e muito me ajudou. Casualmente hoje almoçamos na casa de uma amiga que está passando por grandes dificuldades de saúde e eu falei pra ela que fizesse isso. Ela vai criar um blog.

Fica bom logo pra continuares a nos alegrar com a tua história.

Descreveste, muito bem como sempre, a importância da amizade. A perda do Quico foi um baque pra todos nós, ele era muito querido por todos.

Eu tive mesmo uma imaginação delirante, hahaha. Com certeza a Márcia venceu todas...como eu.

Um abraço.

Marina disse...

Beleza, Raimundo!
Por estas e outras é que, cada vez mais me convenço da importância de resgatarmos nossa história. Para mim, como já te disse, tem sido muito importante.
Quanto a última observação, sobre a poesia, desconheço se é verdadeira ou
ou se foi para te "aliviar" perante a Márcia.
Desconheço muitos pormenores.