sábado, 10 de março de 2012

O CRONISTA DA BRASÍLIA DO ISOLAMENTO E DO MISTICISMO


De todos os escritores piauienses aqui abordados, Esdras do Nascimento, nascido em Teresina, em 1934, é o único cosmopolita, o único que não desenvolveu uma abordagem regional. Contribuiu para isto, certamente, o fato de que sua carreira profissional teve lugar fora do estado: foi comerciário, professor, jornalista, tradutor, bancário e gerente de empresa financeira internacional, condição que lhe permitiu morar uns tempos na Europa e nos Estados Unidos. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela PUC-Rio, Mestre em Comunicação e Doutor em Letras pela UFRJ, Esdras notabilizou-se por ter sido o primeiro doutorando brasileiro a defender tese com a apresentação de uma obra de ficção: “Variante Gutemburgo”, nome de uma jogada de abertura do jogo de xadrez, depois publicada como livro em 1978. Apesar das resistências acadêmicas iniciais, conseguiu que a UFRJ aceitasse seu trabalho, o que foi viabilizado pelo peso acadêmico e institucional de seu orientador, Afrânio Coutinho.  Atualmente dedica-se exclusivamente ao ofício de romancista, e dirige, no Rio de Janeiro, uma Oficina de Criação Literária. Até o presente já publicou 14 romances e quatro livros de ficção. Em 1998, seu livro “Lição da Noite” ganhou o prêmio "Melhor romance do ano", da Associação Paulista de Críticos de Arte.

Se a minha oscilante memória não me trai mais uma vez, lembro de uma matéria que contava um episódio pitoresco de Esdras do Nascimento. Trabalhando em jornal carioca, o editor lhe pede uma matéria sobre mais uma recorrente seca ou enchente do Nordeste (qualquer das duas provoca estragos), já que ele era da região; pragmático, Esdras perguntou: “Doutor, miséria para quantas laudas?”
 

Meu exemplar de Esdras é o “O Ventre da Baleia”, romance de 1980, editado pela Nórdica, do Rio de Janeiro, e que trata da vida em Brasília nos anos 60, época marcada por dois grandes fenômenos sociais: o isolamento das pessoas na nova capital e a disseminação de crenças religiosas, como  a seita que no livro ele denomina de Ordem Mística dos Pioneiros Transcendentais.

Uma de suas personagens comenta assim a vida em Brasília: “No começo, os grandes espaços angustiam, mas a pessoa termina se acostumando. Quando vai passear noutros lugares, estranha os edifícios colados uns nos outros, irrita-se com as calçadas cheias de gente, impacienta-se com as filas, sonha com os amplos gramados de Brasília e se apavora com a falta de espaço. É como se a geografia interior da pessoa tivesse se ampliado e não mais encontrasse correspondência na geografia exterior. Talvez uma questão psicológica ou até mesmo um problema de ordem orgânica”.  
E arremata: “Quem vem para Brasília e logo se adapta é porque tem um espaço interior muito rico, que no planalto se expande ainda mais. Quem gira em torno de um centro de gravidade situado nas coisas e objetos exteriores, dificilmente sobrevive. Ou se modifica e se põe de acordo com os grandes espaços físicos e espirituais do cerrado, ou se liquida”.

A última frase do livro não é animadora: “Mas haverá quem realmente não se sinta no exílio, vivendo aqui no planalto?”

Os primeiros anos de Brasília de fato foram difíceis. Apesar de o projeto arquitetônico pretender o estímulo ao convívio de diferentes segmentos sociais (desnecessário lembrar que o projeto de Brasília foi concebido sob tintas socialistas), o isolamento individual foi um efeito inesperado. No caso dos prédios de apartamentos, a idéia era de que ali moraria o motorista do ministério, vizinho do grande dirigente público. Nos setores de habitações individuais geminadas, o projeto pretendia estimular o relacionamento entre vizinhos colocando a frente das casas nas vias internas, umas de frentes para outras, enquanto que a parte dos fundos ficava voltada para as avenidas. 

 
As superquadras de Brasília

Se para os solteiros a vida não resultou fácil, também difícil foi para os casados.  Vindo para Brasília somente a família nuclear (pais e filhos), aqui a “discussão da relação” alcançou paroxismos, na ausência de tias, avós ou outros parentes que pudessem amortizar conflitos entre os casais. A cidade passou a ser conhecida como a capital dos divórcios. Mas, as razões sociológicas não eram as únicas, muitas separações foram de conveniência, ou de fachada, apenas para que cada membro do casal pudesse ter direito a um apartamento funcional. Isto perdurou até recentemente, principalmente em função da venda dos apartamentos.

Setor de Habituações Individuais Geminadas

Nem tudo, porém, se reduziu às dificuldades de comunicação. A questão do espaço moldou a vida na nova capital, criando um tipo específico de convívio, especialmente entre os adolescentes, que tinham tanto espaço como liberdade nos pilotis dos prédios de apartamentos das superquadras do Plano Piloto. As superquadras têm suas peculiaridades. A exemplo das habitações individuais geminadas, as superquadras constituem um espaço próprio. O cidadão que sai de carro da garagem de seu prédio não sai diretamente para a rua, avenida no caso, mas sim para dentro de sua quadra para só então entrar no tráfego da cidade. É um movimento em dois tempos. 

No meu próprio plano familiar vivi exemplos das singularidades de Brasília. Certa feita, andando em uma cidade satélite, que meu filho via pela primeira vez, ele comentou: “mãe, esta cidade é estranha, é diferente”. Minha mulher precisou lhe explicar que aquela era uma cidade normal, as cidades eram assim, Brasília é que era diferente. Minha própria mulher, estando no Rio de Janeiro, contou que estranhara, de manhã cedo, sair do prédio aonde estava hospedada e encontrar uma farmácia ao lado da porta de saída. Coisa inimaginável em Brasília, cidade onde tudo é organizado por setores.

Esdras do Nascimento retratou um período difícil da capital, quando até a crença em discos voadores era seguramente uma válvula de escape, além do êxito então alcançado pela Doutrina do Amanhecer, formulada por Tia Neiva e estabelecida no Vale do Amanhecer. Mas, a vida seguiu seu curso e aqui estamos nós.

Esdras no Programa do Jô

-oO)(Oo-

2 comentários:

Rosamaria disse...

Antes de cnnhecer Brasília eu tinha uma ideia que se confirmou. Espaço, muito espaço. É como a gente morar numa casa com peças enormes, pátio e pomar, como a que fui criada. É bem ao contrário do que a gente sente morando num apartamento, principalmente os de agora, o que corresponde a essas cidades amontoadas de prédios, onde não tem espaço nem para o sol bater.
A vida segue...
Um abraço.

Marina disse...

Já tinha ouvido falar no Esdras Nascimento, mas não sabia que ele tinha esta obra sobre o isolamento e o misticismo em Brasília. Muita gente comunga, até hoje, destas ideias.
Acostumada com cidades muito diferentes, lembro-me que, da primeira vez que fui a Brasília, te perguntei: onde as pessoas se encontram para conversar? Para mim tinha que haver um centro, uma praça.