domingo, 25 de março de 2012

O RUDE SERTANEJO QUE SÓ FALA A LÍNGUA DAS SELVAS: HERMÍNIO CASTELO BRANCO


Lá pelos idos de mil oitocentos e antigamente, quando algum vaqueiro do Piauí necessitava promover uma vaquejada, para resgatar o gado solto pelo mato, chamava seus companheiros para ajudar. Era uma forma de mutirão, muito praticada no sertão. Chegando os vaqueiros no final do dia, para começar as lides já cedo da madrugada, são recebidos com um cardápio substancioso, preparado pelo anfitrião:

Fui buscar, logo nas buchas,
A panela de coalhada;
A farinha numa cuia,
No espeto, a carne assada.
Venham vindo se arrastando!
- Gritei à rapaziada.

Cada qual com sua faca,
De coc’ras junto à panela,
Foi tirando com a cuia
Que servia de tigela,
E despejando a farinha
Na coalhada, dentro dela.

Misturando a carne assada,
Gorda, frescal e cheirosa,
Todos ficaram contentes
Com a ceia apetitosa.
Nem no céu nunca se viu
Comida tão saborosa!

Os versos acima são de “O Vaqueiro do Piauí”, de Hermínio Castelo Branco, poesia constante do volume “Lira Sertaneja”. Hermínio de Paula Castelo Branco (1851-1889) nasceu no município de Barras, Piauí, hoje pertencente a Esperantina. Fascinado pelas lides do sertão, não prosseguiu os estudos, permaneceu ao lado do povo simples, de quem se tornou o grande cronista, registrando costumes, falas e tradições. Alistou-se como voluntário durante a Guerra do Paraguai, depois entrou para o Exército e seguiu carreira militar até passar para a reserva. A condição de militar lhe permitiu conhecer diversas regiões do país. Ao encerrar sua carreira, retornou a Teresina, onde veio a falecer. 

A seu respeito diz Herculano Moraes (“Visão Histórica da Literatura Piauiense”, tomo I, p. 66):  “Tornou-se inigualável na descrição de uma vaquejada, de uma farinhada, de uma quermesse em que predominavam os costumes regionais em toda a sua inteireza”.


O primeiro título de Lira Sertaneja foi “Ecos do Coração”, publicado em Teresina no ano de 1881. Reeditando o livro no Ceará, em 1887, já em 7ª edição, Hermínio Castelo Branco mudou o título para “Lira sertaneja”, por considerar mais adequado ao conteúdo da obra. Ao apresentá-lo, diz ele, em sua “Satisfação ao Leitor”: “dedico este livrinho aos sertanejos do Norte de minha Pátria, como saudosa recordação dos dias felizes que entre eles passei. Se, na opinião autorizada dos críticos ilustrados, cometo um crime audacioso, tenho certeza de ser absolvido no Egrégio Tribunal dos canoros Cisnes Cearenses, pela humildade do meu pobre trabalho”. Pelo posterior reconhecimento da importância da obra de Hermínio Castelo Branco, parece claro ter recebido aprovação dos referidos “canoros Cisnes Cearenses”, provavelmente uma academia de letras da época.

O verso mais conhecido de “O Vaqueiro do Piauí”:

Era no mês da mutuca:
Fins d’água vinham chegando,
Quando o gado sai da mata
Na carreira, esc’ramuçando,
Se deram estas façanhas
Que,  eu, por aqui, vou contando.

A mutuca é uma mosca de picada dolorosa, e o mês da mutuca, segundo o autor, corresponde ao mês de maio. O que o verso conta é que as moscas importunavam de tal forma o gado que ele saia desesperado de dentro do mato. Minha edição de “Lira Sertaneja” é de 1972, resultado de atos de Alberto Silva, então Governador do Piauí, que criou uma comissão especial para elaborar o Plano Editorial do Estado do Piauí. A publicação é particularmente enriquecida por contar com a colaboração de dois renomados intelectuais piauienses: Celso Pinheiro Filho, que elaborou o prefácio e a biografia do autor, e José de Arimatéia Tito Filho, que com o modesto título de Ligeiras Observações sobre a Vocabulário da Lira Sertaneja apresenta um alentado e esclarecedor estudo lexicológico.

Hermínio preservou com maestria o linguajar do sertão e seus procedimentos. Veja-se a singeleza deste pedido de casamento: “O moço, baixando a vista / Pesando cada expressão, / Gaguejou: “Seu Zé da Mata, / É chegada a ocasião... / Vim lhe pedir sua fia / Para comigo casar; / Isto se for do seu gosto / E vamicê queira dar”.  

E os hábitos de linguagem: “Os vaqueiros, a um tempo / Com a devida atenção, / Disseram-me: “Deus vos guarde! Como vai a obrigação?” A “obrigação” se refere à família, as pessoas da obrigação de alguém são as pessoas da família, os da casa.   

Na poesia “São Gonçalo nos Sertões” diz Hermínio: “Nunca vi couro de alma/ nem rastro de lobisome”. Muitos e muitos anos mais tarde, Ney Matogrosso  gravou a música “Homem com H”, de Antônio Barros, que começa com os versos: “Nunca vi rastro de cobra / Nem couro de lobisomem”.  É uma variação dos versos de Hermínio, estes, por sua vez, provavelmente recolhidos no meio do povo. Na mesma poesia encontra-se esta passagem: 

Depois de findo o serviço
De carne, arroz e farinha,
Vem chegando da cozinha
A panela de chouriço.
É sobremesa excelente,
Doce que, estando quente,
Mais provoca o apetite!

O chouriço mencionado é o chouriço doce, feito de sangue de porco com açúcar e temperado com gergelim e outras especiarias. No Sul o chouriço é igualmente apreciado, mas salgado, na forma de linguiça caseira, de tripa portanto. Minha avó fazia uma variação com o pescoço da galinha, morta por meio de um manotaço que lhe destroncava o pescoço e depois pendurada pelas patas. O sangue, então, se acumulava no pescoço. Coisa especial de buena.

E por aqui ficamos.

-oO)(Oo-

4 comentários:

Andre Max disse...

Tio.

O pato não voa com uma asa só, mas consegue ir longe....
Parabéns pelo regresso e pela recuperação...mesmo que seja parcial.

MAx

Raimundo Tadeu disse...

Manifestações recebidas por e-mail:

(a)Meu caro amigo Pato Velho,
Sua última crônica é muito interessante e com muitas cores locais. Nunca tinha ouvido falar de chouriço doce. Abraço amigo, Maria Lucia

(b)Parabéns! Leitura agradável. Viva o PatoVelho! Abraços, Moura Fé

(c)Como não consegui postar o comentário no blog, mando por email: "gostei muito!” Ivete

Anônimo disse...

Oi Raimundo Tadeu!! Rapaz eu estou muito feliz por descobri que tem pessoas que curte poesias e o melhor,dos poetas antigos,olha o Herminio Castelo Branco é parente longe mas de minha familia lá no Piaui,sou desta familia,sou poeta também,fá da Lira Sertaneja,meu amigo vou te falar algo inacreditável,eu tenho aqui comigo o livro original da Lira Sertaneja,para se ter uma ideia,era o livro de cabeceira de meu avô que também era poeta e que faleceu em junho de 1970,o livro já estava com ele pelo menos uns 60 anos e comigo quando encontrei na mãos de parentes que não consevou direito,afinal ainda dá para se ler ,tem mais de noventa por cento conservado,é uma raridade com mais de 100 anos,pelo jeito do formato do livro creio ser um dos primeiros exemplares,até porque da mão de meu avô até a minha já faz 100 anos,se quizer falar mais a respeito passe-me um e-mail: idversos@hotmail.com,ou entre o google e escreva saudade sertaneja poesia,com Maurício Pereira da Silva o poeta Sonhador.Abraços!!

Unknown disse...

Parabéns, meu amigo pela pastagem...isso mostra que as lesão as ainda admiram a literatura piauiense.