(Nota explicativa: matungona é termo depreciativo para morte. Matungo significa cavalo ruim, imprestável.)
“Infierno por infierno, prefiero el de la frontera”.
Martin Fierro
Em postagens anteriores abordei, primeiro, o tema do gaúcho que mata os outros, em “O lado negro da força”; depois, o gaúcho que se mata, em “Às vezes nem maçanilha tira esse amargo da vida”. Agora, vamos tratar, da forma mais lúdica e musical possível, do gaúcho que enfrenta a morte de forma desabrida, quando o sujeito se atira de peito aberto contra a morte em uma situação qualquer, até mesmo sem um propósito claro. Exemplo emblemático deste comportamento está em uma charge de autoria do cartunista Laerte, que reproduz uma cena parecida com a do Grito da independência. Um caudilho, empunhando a espada, clama por uma posição política dos seus cavalarianos:
- “Chega de Federação!”
- “Chega”.
- “Aqui tem macho!!”
- “Pois tem!!”
Então:
- “INDEPENDÊNCIA OU MORTE!”
- “MORTE!!” Respondem todos, em coro.
- “Por que não independência?”
- “Porque aqui tem macho! ... Que foi? ... Te borraste? / ... Te fresqueia!!”.
Analisando o episódio, Marcos Silva, no artigo “Laerte encontra Henfil (Ascensão e Queda das Ditaduras)”, publicado em Projeto História, São Paulo, (29) tomo 1, p. 125-138, dez. 2004, revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, diz: “O machismo [gaúcho] é brilhantemente sintetizado, sob o signo da crítica, na pulsão de morte revelada pelo coro de cavaleiros. Ao invés da coerência com o lema do combate à federação, escolhe-se a morte para melhor exibir força, capacidade de luta, virilidade. Laerte constrói um paradoxo fascinante: esses valores podem existir fora da vida? A resposta do riso é: eles existem contra a vida”.
Gravura de Molina Campos
Outro caso interessante é relatado em “Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez”, de Tabajara Ruas (Rio de Janeiro, Editora Record, 2003). Juvêncio Gutierrez era contrabandista e de extensa folha corrida. Procurado pela polícia. Sabia que se voltasse a Uruguaiana seria morto. Mesmo assim, lá pelas tantas anunciou que deixaria a Argentina onde estava exilado e voltaria. O delegado, seu inimigo mortal e rival, armou todos os milicianos para esperá-lo na estação do trem. Juvêncio Gutierrez escapa em um primeiro momento, mas é perseguido, cercado e morto. Porque voltou, que razões tinha, ninguém ficou sabendo. Mas ele sabia que voltaria para ser morto.
O ímpeto para enfrentar a morte se atirando de peito aberto possui bons exemplos no disco “Ramilonga”, do Vitor Ramil. Aliás, se alguém só puder levar um disco nativista para uma ilha deserta leve este. Das onze faixas do disco três trazem referência à morte: Causo Farrapo, Gaudério e Último Pedido.
Em “Causo Farrapo”, http://www.youtube.com/watch?v=EHjqVlx4Wz4, a letra de Vitor Ramil relata uma briga com a própria morte:
“Numa peleja das braba
topei co’ a morte de cara
a matungona parada
de olho na minha alma
Eu le pedi: sai da frente
ou te levanto na espada
eu sei que a morte eu não mato
mas deixo toda lanhada”.
Em “Gaudério”, http://www.youtube.com/watch?v=GbNKIh_dPdI&feature=related, com letra de João da Cunha Vargas, poeta gaúcho de origem campeira que nunca escreveu seus versos, conservando-os apenas na memória, as intenções são muito claras:
“Não quero morrer de doença
nem com a vela na mão
eu quero guasquear no chão
com um balaço bem na testa
e que seja em dia de festa
de carreira ou marcação”
E peço, quando eu morrer
não me por em cemitério
existe muito mistério
prefiro um lugar deserto
e que o zaino paste perto
cuidando os restos gaudério”.
“Último Pedido”, também tem letra de João da Cunha Vargas:
“Se um dia a morte maleva
me dá um pealo de cucharra
numa saída de farra
me faça torcer o alcatre
me ajeitem bem sobre um catre
me tirem os laço das garra
Me enterrem num campo aberto
que eu sinta o vento pampeiro
em vez de vela, um candeeiro
ao pé da cruz falquejada
que eu possa enxergar a estrada
por onde passa o tropeiro”.
A reivindicação final homenageia outro grande poeta gaúcho, Aureliano de Figueiredo Pinto:
“Vou viver na estância grande
deste patrão soberano
levar comigo o minuano
pro rancho de algum posteiro
e pedir pra ficar lindeiro
com o imortal Aureliano”.
Lindeiro, para quem não é do RGS, significa vizinho de cerca.
Quadro de Marciano Schmitz
Pois então, apesar de todo o folclore estabelecido sobre a rudeza do gaúcho, que resultou em um estereótipo caricatural, não é um tipo fácil de entender. Em uma tentativa de buscar contribuições que ajudassem a refletir sobre a condição de ser gaúcho, a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul publicou dois livros: “Nós, os gaúchos” (1992) e “Nós, os gaúchos 2” (1994). A série acabou tendo desdobramentos: “Nós, os teuto-gaúchos” (1996), “Nós, os ítalo-gaúchos” (1998) e “Nós, os afro-gaúchos” (1998), mas aí já é outra história.
“Milonga de Manoel Flores”, Vitor Ramil com letra de Jorge Luis Borges
De onde vem tanta tragédia?
Conforme já visto, a cultura gaúcha está impregnada da idéia de morte. O Rio Grande tradicional, do “gaucho” sem acento, possui raízes espanholas antes do que portuguesas. As Missões jesuíticas foram pioneiras na ocupação do território. A “alma”, portanto, teria uma primeira influência cultural espanhola, precedendo a açoriana. E este legado parece ser o do sentimento de tragédia, conforme “Del Sentimiento Trágico de la Vida”, de Miguel de Unamuno, ou o poeta Quevedo: “al derredor todo lo que veía era la muerte”. Mesmo a discutida descrição da poesia de Ascêncio Ferreira, do gaúcho se pilchando, pegando o cavalo e saindo em desabalada carreira – para nada! –, parece semelhante à desatinada investida de Don Quixote de La Mancha contra os moinhos de vento. Consciente uma, sem objetivos. Insana outra, com propósito bem definido, ainda que desfocado.
De Portugal ganhamos o tempero do sentimento de nostalgia, da saudade. Como o fado, que cultua o lamento: o sujeito em frente ao mar sangrando de saudade... É assim no Madredeus, um grupo musical contemporâneo, que canta o amor perdido. A nostalgia está em Camões e Fernando Pessoa, que celebram as grandes conquistas, a navegação, enfim, o passado. Um autor português contemporâneo, Eduardo Lourenço, debruçou-se sobre o tema: primeiro com “O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português” (1978), depois com “Mitologia da Saudade” (1999). Este último apresenta ensaios como “Melancolia e Saudade”, “Da Saudade como Melancolia Feliz”, “Romantismo, Camões e a Saudade”, “Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa”. Na orelha do livro, diz Saramago: “Tudo o que o autor escreveu até hoje obedece a uma imperiosa necessidade de ver e compreender o que há por trás dos véus em que parecem esconder-se, mais do que Portugal, os portugueses. Por isso creio poder interpretar a visão de Lourenço como duplamente crepuscular. Há um crepúsculo da tarde que precede a noite e há um crepúsculo da manhã que anuncia o sol. É neste que Eduardo Lourenço profundamente aposta, ainda que algumas vezes desesperado”.
Esta herança toda a gente carrega vida afora. É brabo! Enfim, o aprofundamento do que acima foi toscamente alinhavado certamente poderia iluminar um pouco mais nosso conhecimento sobre os elementos de formação da alma gaúcha.
“Deixando o Pago”, Vitor Ramil com letra de João da Cunha Vargas
-oO)(Oo-
2 comentários:
Muito bom. Acho interessante fazeres esta retrospectiva.
Gosto do Vitor Ramil e também de seus manos Kleyton e Kledir.
Teu blog ficou muito melhor depois que começaste a postar o que escreves, o que fazes muito bem.
Sou gaucha, mas quero distância da matungona.
O verso mais bonito do "Gaudério" é este:
E vou levar quando eu for
No caixão algum troféu:
Chilena, adaga, chapéu
Meu tirador e o laço
O pala eu quero no braço
Pra gauderiar lá no céu!
Um abraço.
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