sábado, 30 de julho de 2011

ÀS VEZES NEM MAÇANILHA TIRA ESSE AMARGO DA VIDA

(Nota explicativa: no título desta matéria foram utilizados versos da poesia de Gujo Teixeira “Quando o silêncio dos mates compõe as horas da tarde”.)



“Pido a Dios que me asista
en uma ocasión tan ruda”
Martin Fierro


Certa ocasião um colega de ginásio, em Lavras do Sul, tentou se matar, aparentemente por conta de uma desilusão amorosa. Deu um tiro no coração. Mas errou,  não foi fatal. Em sua fase de recuperação costumava ficar em pé nos jardins da Estação Hidráulica, olhando o infinito enquanto a mente viajava ou simplesmente para ser visto. Passávamos e víamos aquela figura ao longe, objeto de profunda reverência. Adolescente dá muito valor para atitudes extremas. O gesto era visto como uma alta expressão de sentimento. Como os poetas de antigamente, que morriam jovens de mal de amor. Nosso maior sentimento de perda, no entanto, era porque se tratava de um excelente centro-médio, que por conta de seu gesto estava afastado dos gramados. Felizmente recuperou-se plenamente e alguns meses depois já jogava novamente com vigor redobrado.

Um pouco mais adiante no tempo e um dos grandes fazendeiros da cidade se matou. Lavras reproduzia, em sua dimensão de cidade pequena, um fenômeno que no Rio Grande do Sul assume proporções significativas. Como se verá mais para a frente.

Nos anos 60, as viúvas se vestiam de preto por pelo menos um ano, e os homens usavam uma tarja preta na manga da camisa ou do casaco. O pessoal do interior, do interior de Lavras bem entendido, expressava seu sentimento de um modo mais marcante: os homens deixavam crescer cabelo e barba; as roupas de cor preta, senão todas pelo menos a bombacha ou a camisa. O lenço no pescoço era outro departamento, podia ser preto, mas também podia ser indicativo de posição política, branco, no caso dos chimangos (federalistas) e vermelho para os maragatos (revolucionários). Além do visual a postura era muito importante. Um ar de tristeza inabalável. Achava aquilo o máximo. Eram darks, antes que o termo passasse a identificar uma tribo urbana.




Quisiera el alma serena

Ondina Fachel, doutora em Antropologia pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, e professora da UFRGS, quando realizava seu trabalho de campo para a tese de doutorado, ouvia com freqüência histórias sobre a morte, com referências freqüentes a alguém que havia se suicidado. Interessou-se e tratou do assunto em “Suicidio y honor en la cultura gaucha” (Ediciones de Las Mujeres, Masculinidades Poder y Crises, Santiago, Chile, v. 24, p. 113-124, 1997). Segundo o texto, a vida cotidiana nas estâncias significava conviver com a morte, pelo abate dos animais, etc. e tal: “los gaúchos viven con la muerte, y la piensan”. Quando o gaúcho perde os elementos que o distinguem, quando não tem mais força para sustentar um boi no laço, quando percebe que não tem mais alternativas fora do universo de cavalos e rebanhos, neste momento começa a pensar na morte. O suicídio típico do gaúcho campeiro: vai ficando mais e mais pensativo sobre a vida, quieto, sozinho, então, um dia faz tudo o que sempre fez a vida inteira, monta no cavalo e sai a campear levando junto uma corda, só que desta vez busca uma árvore e se enforca.
 
Pintura de Voldinei Burkert Lucas
 
A literatura gaúcha traz exemplos. No romance “Porteira Fechada”, de Cyro Martins, da chamada “trilogia do gaúcho a pé”, o personagem João Guedes entra em um tal processo de depressão pela deterioração de sua vida que acaba se matando. Outra imagem literária está na poesia “Relato do Enforcado”, de Aureliano de Figueiredo Pinto:

“Com o chapéu bem tapeado,
bem preso no barbicacho,
cerrou nos queixos o crioulo,
e resvalou-se com jeito,
para ser estrangulado”.

Além dos aspectos indicados por Ondina Fachel, da falta de condições favoráveis ao modo de vida tradicional do gaúcho, existem outros condicionantes. Na revista Veja, edição de 02/06/98, uma reportagem, “Em home da honra”, abordava o crescimento do número de suicídios na Campanha, a região dos pampas (no sul do Estado). De longa data a região vem enfrentando problemas de decadência comercial, com empobrecimento progressivo e sem perspectivas de crescimento econômico, o que dificulta aos pequenos agricultores cumprir com os compromissos assumidos junto aos bancos. O sentimento de vergonha por não poder superar os grandes problemas de dívidas e as dificuldades para sobreviver com alguma dignidade seriam os principais fatores para explicar a onda de suicídios.  


O assunto tem sido objeto de estudos acadêmicos, a exemplo de “Características epidemiológicas do suicídio no Rio Grande do Sul”, de Stela Nazareth Meneguel e outros, publicado na Revista de Saúde Pública, vol. 38, nº 6, São Paulo, dec. 2004. Alguns dos principais dados:  
  • o RGS é o Estado brasileiro que historicamente apresenta os maiores coeficientes de suicídio do País, entre os homens, principalmente;
  • as maiores incidências ocorrem nos extremos: entre os menos favorecidos socialmente e entre os privilegiados. Também entre a população idosa (maior de 70 anos), embora na década de 90 apareça uma tendência de elevação nas faixas mais jovens;
  • por ocupação, os maiores coeficientes estão entre pessoas ligadas à agropecuária e à pesca;
  • a maior proporção ocorre entre pessoas casadas; e
  • o método mais utilizado é o do enforcamento, seguido pelo uso de armas de fogo.
 Um estudo mais recente é a dissertação de mestrado “Promoção da vida e prevenção do suicídio no RS”, do médico psiquiatra Ricardo Nogueira. Seu estudo contemplou os municípios de Santa Cruz do sul, Candelária, Venâncio Aires e São Lourenço do Sul, sendo que Candelária e Venâncio Aires, próximos um do outro, têm índices de suicídios entre os maiores do mundo. Acredita que um dos fatores explicativos, em especial para as cidades fronteiriças, é a vizinhança com o Uruguai, um dos países que tem mais suicídios no mundo. Segundo sua pesquisa, o perfil do suicida gaúcho é de trabalhadores rurais, brancos, católicos, casados e com baixo nível de ensino. E a grande maioria, entre 60 e 70%, se mata por enforcamento e dentro de casa, principalmente.

Quem tiver interesse em mais informações pode ler “Suicídio: uma análise causal das taxas de mortalidade-suicídio no Rio Grande do Sul”, de Rosangela Werlang, dissertação de mestrado na área de sociologia, defendida na UFRGS em 2003. Uma apresentação resumida do trabalho encontra-se em:


O suicídio feminino normalmente é pouco enfocado. Com freqüência aparece associado ao casal que opta por um pacto de morte. No entanto, ele também ocorre de forma isolada e, embora se pudesse imaginar que o envenamento fosse o método mais utilizado por mulheres, as evidências indicam que também entre elas predomina o enforcamento. No próprio ambiente doméstico. Uma curiosidade é que, de acordo com um levantamento do Ministério da Saúde, entre as capitais brasileiras, a que apresenta a maior mortalidade feminina por suicídios é Teresina, no Piauí.

Bueno, apesar disso tudo, como dizia o cronista João Saldanha, vida que segue... Então, para aquecer os corações e levantar o astral, veja aí embaixo um vídeo da Juliana Spanevello cantando "Pela Querência", de Jairo Bauer e Joca Martins..

 
-oO)(Oo-

3 comentários:

Rosamaria disse...

Não lembro do colega de ginásio que tentou se matar e nem do fazendeiro que conseguiu seu intento.
Não eram só as viúvas que se cobriam de preto. Quando meu pai faleceu eu vesti preto durante um ano. No primeiro dia que usei um blusão cor de rosa, meu filho que era pequeno, não queria vir comigo,nunca tinha me visto senão de preto.

A solidão, a depressão, o desespero, podem levar qualquer um ao suicídio, mas no caso é problema de saúde pública.

Conheço a Juliana Spanevello desde que ela começou a cantar. Ela está cada vez melhor. No último Prêmio da Música Brasileira ela tirou o segundo lugar, perdendo para a Elba Ramalho.

Um abraço.

Anônimo disse...

Apesar do tema um tanto quanto soturno, você conseguiu fazer mais belo um texto

Madu

Andrea Leal disse...

Bueno, imagina a cena: Uma estância perdida no meio da pampa. Até onde a vista alcança, campo e mais campo, quebrada apenas por um e outro capão de mato (a pampa é o céu pelo avesso, como diz Mário Barbará). Um frio de renguear cusco, até os animais estão encorujados no galpão. Uma chuvinha fininha, guasqueada pelo minuano que não pára de assobiar nas frestas do rancho. Passarinho não canta, cachorro não acoa, gentes não conversam nem riem. Só o mate para aquecer a alma e revolver lembranças e saudades. Tchê, quer motivo maior para se atar numa corda pelo pescoço? Úia, tá explicado por que é que no Rio Grande até o índice de suicídios é bagual...