terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

AS PRIMEIRAS LIÇÕES

Aos seis anos de idade meu avô ensinou-me a melhor maneira de degolar um paisano. Era de um tipo que se sentia meio inquieto em tempos de paz. Mesmo que não fosse de comportamento atrabiliário, quando seu olhar se perdia nas recordações dos tempos de revolução provavelmente deveria pensar mais ou menos como Don Segundo Menchaca, para quem não havia nada mais lindo do que "ir a disfrutar de la guerra, que es la mallor de las fiestas tradisionales para los bástagos de nuestro suelo natibo, ya que en ella se pueden carnear bacas gordas y montar cualisquier caballo ajeno sin que le bengan a uno con reclamaciones los dañificados, como acontece por desgrasia en épocas de paz" (Simplicio Bobadila, "Los partes de don Menchaca". 3ª ed., Montevidéu, Libreria Blund, 1965) Don Menchaca era um comissário de polícia analfabeto e seus relatórios escritos por Esmeraldo Zipitrias, escrivão que não primava muito pelo espanhol escorreito.

Pouco tempo depois, recebi lições de como usar uma espingarda com o Dr. Peri de Souza, um humanista. Não prosperei em nenhuma das atividades. Talvez tenha sido um erro. Poderia vir a ser, na melhor das hipóteses, uma personagem de literatura. Na pior, sabe Deus.

Em primeiro plano a casa do Dr. Peri nos anos 40. Do seu lado a antiga Casa Paroquial

O Dr. Peri era fazendeiro. Médico formado que nunca exerceu a profissão. Não sei as razões. Financeiramente não precisava. Em sua mansão da cidade mantinha uma imensa biblioteca de livros de medicina. Como meu avô, que morava em frente, cuidava da casa, eu tinha acesso. Morrendo de medo. Na sua escrivaninha de trabalho o enfeite era uma caveira. Uma coisa inocente, mas que me dava um pavor terrível. Mesmo não tendo exercido a profissão, conservava alguns dos seus elementos de liturgia. Aproveitava para dar uma olhada nos livros. Quase todos de medicina e afins. Ainda lembro de dois: um era um horror, tratava de coisas tipo feridas feíssimas, cancros, por aí; o outro, não menos ameno, tratava dos distúrbios psicológicos sofridos por freiras de convento, por conta de auto-repressão sexual. Cada coisa...

Ele era um anticlerical simpático. Aliás, o anticlericalismo não era tão raro assim entre intelectuais da época. Devia ter alguma cismazinha com as freiras. Um dos quadros da casa, provavelmente coisa da família, mostrava uma imagem de Nossa Senhora do Bom Parto com várias freirinhas em volta rezando. Dizia o Dr. Peri que as freirinhas rezavam para obter um bom parto. A casa era imensa, comprida, com inúmeros quartos e apenas um banheiro. As, digamos, necessidades noturnas eram atendidas por urinóis. O que era então muito comum. Nas paredes espalhavam-se também gravuras de Molina Campos, desenhista argentino que retratou de forma esplêndida o cotidiano dos gaúchos.

O Dr. Peri foi uma das minhas grandes admirações intelectuais. Mas tive poucas informações sobre sua vida. Solteirão até o fim, escreveu um livro de poesias “Da minha lavra”. Infelizmente não conheci o livro. Nem imagino o estilo, embora o mais provável era que fosse parnasiano, o padrão da época. Este livro teve sua edição custeada por ele mesmo, não vendeu nada e ficou encalhado. Era uma de suas frustrações. Do que trataria? Algum amor frustrado, assuntos épicos e históricos à la Konstantinos Kafávis, odes à terra natal? Nunca saberei. O que restou da coleção foi incinerado pelos atuais proprietários da mansão, donos de um colégio. Deve ser gente que gosta do “Farenheit 451”, do Ray Bradbury, que imaginou uma sociedade onde os bombeiros atuavam não para apagar fogo mas para incendiar livros de literatura. O papel entra em combustão quando a temperatura chega aos 451 graus da escala Farenheit.

Dr. Peri se afeitava com meu avô Antonio Fagundes, que era barbeiro. Sentado na cadeira, a calça ficava repuxada e aparecia por baixo uma ceroula, que ele usava em todas as estações. A ceroula, usada por cima da cueca, é uma roupa de baixo com pernas compridas. No Sul, normalmente feita de flanela. Para o inverno é um espetáculo, protege muito. Como o Dr. Peri usava ceroula mesmo no verão provavelmente tinha algum problema de regulação térmica do corpo. Foi encontrado morto, vitimado por um ataque cardíaco, no mesmo lajeado de sua fazenda onde me ensinava a dar tiros em latinhas vazias.

2 comentários:

Andrea Leal disse...

Amigo, que memória prodigiosa! Me deu uma invejinha...
Excelente ideia publicar teus recuerdos, quem sabe algum outro blogueiro tenha informações que complementem as tuas e pronto, teremos uma radiografia de uma época pouco lembrada do nosso Rio Grande.

ana disse...

Ola!!!Sou sobrinha da dona Tininha, filha da Cadoca e do Nito, não sei se lembra deles.Minha mãe era prima do Pery, lembro quando ele morreu, mas tambem tenho poucas informçõe sobre ele. Lembro que era radio amador...
Mas Lembro muito da barbearia do teu avo, Seu Antoninho Barbeiro. Descobri o teu blog no face, no grupo osdelavras, que comentaram .........
Ana Tereza Teixeira