sábado, 31 de março de 2012

DIGRESSÕES E A DIVULGAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE UMA CARTA



Em agosto de 2001 o jornal Correio Braziliense publicou uma matéria com o conhecido título “Recordar é Viver”. Tratava do hábito crescente de as pessoas contarem sua vida. Nos Estados Unidos, onde estas atitudes comportamentais costumam surgir primeiro e onde logo são potencializadas, já foram publicados dois livros a respeito: A Guide for Recalling and Telling Your Life Story (Um Guia para Recuperar e Contar a História de sua Vida), da Hospice Foundation of America, e Writing Family Histories and Memories (Escrevendo Histórias de Famílias e Memórias), de Kirk Polking. O uso de exercícios de escrita é incentivado por psicólogos e psiquiatras como um modo eficaz para ajudar as pessoas a encontrarem uma saída para seus problemas. “Isso ajuda o paciente a encontrar um sentido para sua vida e a desenvolver uma narrativa consistente”, segundo Kenneth Doka, professor da Universidade de New Rochelle, em Nova York. E Kirk Polling, já mencionado, diz que escrever as memórias é melhor do que contá-las verbalmente, pois o registro escrito tende a ser mais honesto e verdadeiro.
Mais recentemente o Correio Braziliense voltou a tratar do tema, desta vez em sua Revista de Domingo, de 16/10/2011, em uma matéria com o título “Escrever para se (re)conhecer”. A reportagem apresentava o livro Fios da memória – um guia para escrever de si, organizado pelas terapeutas Helena Silveira e Adriana Kortlandt, publicado pela Thesaurus, uma editora de Brasília. No livro, a escrita de si seria, mais do que um processo terapêutico, um processo de autoconhecimento. A elaboração de um blog é um dos processos indicados para quem quer contar a sua história pessoal. Reconhecendo o valor histórico desses relatos pessoais, o Museu da Pessoa, de São Paulo, montou um acervo de histórias de vida que podem contribuir para a compreensão de períodos da história do país.  O site é: www.museudapessoa.net.
 A Internet é, obviamente, um facilitador para quem deseja contar suas histórias de vida. Bem ou mal, de forma talvez canhestra, é o que ultimamente tento fazer por meio das mal digitadas linhas deste blog. A narrativa vinha seguindo em ordem cronológica até que foi necessária interrompê-la temporariamente por conta de problemas inesperados. Na impossibilidade de poder manusear caixas com meus recortes de jornais e registros pessoais, que permitiriam melhor ilustrar a narrativa, comecei a tratar de alguns autores piauienses como uma forma mais fácil de manter o blog em atividade. No entanto, faltando poucas postagens para encerrar esta nova abordagem e, assim, retomar o fio das histórias de vida, quando as condições o permitirem, o acaso trouxe a oportunidade de também interromper o atual tratamento mais literário e colocar um enclave para o presente registro.
Pois encontrei entre meus guardados na gaveta uma carta de 1983 que aqui será transcrita sem autorização. O que em si já dá um tchan a mais e provoca aquele frisson que surge quando se tangenciam situações mais ou menos delicadas. Afinal, nunca se sabe que reação as pessoas vão ter, principalmente hoje em dia, onde por qualquer coisinha costumam ser levantadas bandeiras que alegam defesa do último refúgio da individualidade. Nada obstante, em tempos de Big Brother, de cotidiano apelo à necessidade de se estar permanentemente interagindo e conectado às redes sociais, o que se fará aqui corresponderá a uma divulgação de caráter, digamos, angelical. Antes, porém, uma pequena digressão sobre a amizade.
A importância da amizade, como se alguém tivesse qualquer dúvida a respeito

Pelos e-mails que cotidianamente todos nós recebemos, é fácil encontrar, além das várias mensagens que coletam frases sobre o assunto, pelo menos dois textos poéticos que tratam da amizade: “Procura-se um amigo”, de Vinicius de Moraes, e “Amigo Aprendiz”, de Fernando Pessoa. Destarte, vou abordar o tema com base na minha própria vivência.
Amigos são importantes, bem como os grupos de referência que nos envolvem. Minha vida profissional certamente ficou marcada por ter me desgarrado do grupo de referência, os colegas do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Mas, o que passou, passou. Ao longo da vida não parece fácil manter amizades, embora as da chamada primeira hora são as que têm mais chance de permanecer. Em meu exemplo pessoal cito os colegas da CAPES, principalmente os das décadas de 1970 e 1980, com os quais até hoje mantenho relacionamento.
 Como a trajetória de vida da pessoa pode envolver um longo período de tempo, algumas amizades se esvaem por razões “naturais”, como, por exemplo, a saída de uma cidade para estudar em outra, quando então os caminhos se diferenciam, assim como outras, que são intensíssimas durante um certo período, desaparecem ou se diluem de forma tranquila, mas tão definitiva que as pessoas acabam se tornando estranhas umas às outras. Algumas, no entanto, se rompem de forma traumática e são estas as que doem. No outono da vida é mais raro formar novas amizades, mas não impossível, e estas, talvez pela experiência de vida acumulada, são saborosas. Perdem-se também aquelas amizades interrompidas quando um dos parceiros recebe o chamamento do Altíssimo. Foi assim que, dos convívios em Lavras do Sul, perdi primeiro José Francisco Mazzini, que cedo partiu, e que, um pouco mais velho, foi importante em minha formação pessoal, com sua paciência para me ensinar as coisas do mundo, a exemplo das importantíssimas características da rivalidade entre Grêmio e internacional. Mais tarde perdi Luiz Carlos Barcelos, com quem, na infância, brincava quase que diariamente e que mais tarde, em Porto Alegre, tornei a encontrar por breve período. Ele também atendeu ao chamado do Altíssimo. Mas, não foram os únicos, lamentavelmente.
O relato mencionado no título

Durante todo o meu tempo de permanência em Porto Alegre convivi com Carlos Romeu Argemi Pinto, um grande talento principalmente em termos de conhecimento literário. Carlos Pinto, como era conhecido, chegou a ter, por pouco mais de um ano, uma livraria chamada Sagarana. Dizia, então, já ter até o título para publicar um livro meu: “Inéditos de Raimundo Corrêa”, blague evidente com o poeta parnasiano homônimo Raimundo Correia.
Assim que fui para Teresina ele me mandou uma carta dizendo que quando fosse à cidade iríamos ao bar tal, depois passearíamos pela avenida tal e iríamos para outro estabelecimento, etc. e tal. Fiquei surpreso com a correta descrição dos principais points da capital. Alguns anos depois, quando em Porto Alegre, perguntei-lhe como tinha elaborado aquela carta, já que tinha certeza de que ele nunca havia estado por lá nem conhecia ninguém da terra. Contou-me, singelamente, que havia se guiado pelas informações de um Guia Quatro Rodas.
 
Porto Alegre, Parque da Redenção, em um domingo qualquer de 1971:
Carlos Pinto (o mais fortinho) comigo e com sua família
Pois eis que, mexendo em minha papelada, descubro uma carta datilografada que Carlos Pinto havia me enviado em dezembro de 1983, quando eu já estava radicado em Brasília. A carta se destinava a “retomar uma amizade que desafia os anos e as agruras da vida” (o que, infelizmente, veio a termo), e contava que nos seus velhos papéis havia encontrado uma carta escrita em 1974, por ocasião do meu casamento, e que nunca remeteu. Reproduziu o texto que, embora tendo nove anos de atraso, lhe parecia ainda válido. Mesmo não tendo sua autorização para divulgar a carta, o texto é de tal forma inventivo que merece ser aqui transcrito:
Parabéns, velho Maurício [meu codinome completo era Bacharel Maurício Machado Penumbra]. Parabéns mesmo. Foi uma luta convencer as menininhas aqui do sul a se conformarem com a nova e dura realidade: o Bacharel casado. Foi fogo. Elas tentaram de tudo. Manifestos foram escritos. Concentrações foram realizadas. Havia até um plano de anexação do Piauí. Lavras aderiu integralmente e já preparava uma marcha. O clima nos bares era insuportável. Na Filosofia, centro das operações, circulavam boatos alarmistas. Reinava o terror. Finalmente depois de muito trago e discussão, chegaram a um acordo – um tanto conciliador para as tradições do Rio Grande -, mas, enfim, todos concordaram com a tese do velho Aurélio [um de nossos amigos comuns] de que tu aí no Piauí, agora, poderias resolver o problema populacional desse despovoado Estado. São muito estranhas essas mulheres, muito estranhas. Clandestinamente, enquanto se realizavam as conversações de paz, escrevi um poeminha, que lido em toda a cidade, vale dizer, nas mesas de todos os bares, fez amplo sucesso:
CANTIGA DE AMIGO
CANTIGA DE AMOR
Lavras te deu Maria,
Bagé, Matilde
Teu amor secreto e humilde.
Porto Alegre te entregou a Rainha,
Bela e delirante.
Mas o Rio Grande emocionado
Muitas mais te daria
Se o Piauí, já afetado
Não te ordenasse MÁRCIA!
MÁRCIA – a grande amada”.
E encerrava a missiva com a frase: “Que beleza o teu GRÊMIO, campeão do mundo!” Estávamos, vale lembrar, em 1983.
Como entre os leitores pode haver quem tenha uma imaginação delirante ou mesmo uma crença ilimitada em informações epistolares, convém esclarecer que, exceto pelas linhas finais da poesia, o texto é pura ficção, sem qualquer relação com fatos da realidade.
É isto aí.
-oO)(Oo-

domingo, 25 de março de 2012

O RUDE SERTANEJO QUE SÓ FALA A LÍNGUA DAS SELVAS: HERMÍNIO CASTELO BRANCO


Lá pelos idos de mil oitocentos e antigamente, quando algum vaqueiro do Piauí necessitava promover uma vaquejada, para resgatar o gado solto pelo mato, chamava seus companheiros para ajudar. Era uma forma de mutirão, muito praticada no sertão. Chegando os vaqueiros no final do dia, para começar as lides já cedo da madrugada, são recebidos com um cardápio substancioso, preparado pelo anfitrião:

Fui buscar, logo nas buchas,
A panela de coalhada;
A farinha numa cuia,
No espeto, a carne assada.
Venham vindo se arrastando!
- Gritei à rapaziada.

Cada qual com sua faca,
De coc’ras junto à panela,
Foi tirando com a cuia
Que servia de tigela,
E despejando a farinha
Na coalhada, dentro dela.

Misturando a carne assada,
Gorda, frescal e cheirosa,
Todos ficaram contentes
Com a ceia apetitosa.
Nem no céu nunca se viu
Comida tão saborosa!

Os versos acima são de “O Vaqueiro do Piauí”, de Hermínio Castelo Branco, poesia constante do volume “Lira Sertaneja”. Hermínio de Paula Castelo Branco (1851-1889) nasceu no município de Barras, Piauí, hoje pertencente a Esperantina. Fascinado pelas lides do sertão, não prosseguiu os estudos, permaneceu ao lado do povo simples, de quem se tornou o grande cronista, registrando costumes, falas e tradições. Alistou-se como voluntário durante a Guerra do Paraguai, depois entrou para o Exército e seguiu carreira militar até passar para a reserva. A condição de militar lhe permitiu conhecer diversas regiões do país. Ao encerrar sua carreira, retornou a Teresina, onde veio a falecer. 

A seu respeito diz Herculano Moraes (“Visão Histórica da Literatura Piauiense”, tomo I, p. 66):  “Tornou-se inigualável na descrição de uma vaquejada, de uma farinhada, de uma quermesse em que predominavam os costumes regionais em toda a sua inteireza”.


O primeiro título de Lira Sertaneja foi “Ecos do Coração”, publicado em Teresina no ano de 1881. Reeditando o livro no Ceará, em 1887, já em 7ª edição, Hermínio Castelo Branco mudou o título para “Lira sertaneja”, por considerar mais adequado ao conteúdo da obra. Ao apresentá-lo, diz ele, em sua “Satisfação ao Leitor”: “dedico este livrinho aos sertanejos do Norte de minha Pátria, como saudosa recordação dos dias felizes que entre eles passei. Se, na opinião autorizada dos críticos ilustrados, cometo um crime audacioso, tenho certeza de ser absolvido no Egrégio Tribunal dos canoros Cisnes Cearenses, pela humildade do meu pobre trabalho”. Pelo posterior reconhecimento da importância da obra de Hermínio Castelo Branco, parece claro ter recebido aprovação dos referidos “canoros Cisnes Cearenses”, provavelmente uma academia de letras da época.

O verso mais conhecido de “O Vaqueiro do Piauí”:

Era no mês da mutuca:
Fins d’água vinham chegando,
Quando o gado sai da mata
Na carreira, esc’ramuçando,
Se deram estas façanhas
Que,  eu, por aqui, vou contando.

A mutuca é uma mosca de picada dolorosa, e o mês da mutuca, segundo o autor, corresponde ao mês de maio. O que o verso conta é que as moscas importunavam de tal forma o gado que ele saia desesperado de dentro do mato. Minha edição de “Lira Sertaneja” é de 1972, resultado de atos de Alberto Silva, então Governador do Piauí, que criou uma comissão especial para elaborar o Plano Editorial do Estado do Piauí. A publicação é particularmente enriquecida por contar com a colaboração de dois renomados intelectuais piauienses: Celso Pinheiro Filho, que elaborou o prefácio e a biografia do autor, e José de Arimatéia Tito Filho, que com o modesto título de Ligeiras Observações sobre a Vocabulário da Lira Sertaneja apresenta um alentado e esclarecedor estudo lexicológico.

Hermínio preservou com maestria o linguajar do sertão e seus procedimentos. Veja-se a singeleza deste pedido de casamento: “O moço, baixando a vista / Pesando cada expressão, / Gaguejou: “Seu Zé da Mata, / É chegada a ocasião... / Vim lhe pedir sua fia / Para comigo casar; / Isto se for do seu gosto / E vamicê queira dar”.  

E os hábitos de linguagem: “Os vaqueiros, a um tempo / Com a devida atenção, / Disseram-me: “Deus vos guarde! Como vai a obrigação?” A “obrigação” se refere à família, as pessoas da obrigação de alguém são as pessoas da família, os da casa.   

Na poesia “São Gonçalo nos Sertões” diz Hermínio: “Nunca vi couro de alma/ nem rastro de lobisome”. Muitos e muitos anos mais tarde, Ney Matogrosso  gravou a música “Homem com H”, de Antônio Barros, que começa com os versos: “Nunca vi rastro de cobra / Nem couro de lobisomem”.  É uma variação dos versos de Hermínio, estes, por sua vez, provavelmente recolhidos no meio do povo. Na mesma poesia encontra-se esta passagem: 

Depois de findo o serviço
De carne, arroz e farinha,
Vem chegando da cozinha
A panela de chouriço.
É sobremesa excelente,
Doce que, estando quente,
Mais provoca o apetite!

O chouriço mencionado é o chouriço doce, feito de sangue de porco com açúcar e temperado com gergelim e outras especiarias. No Sul o chouriço é igualmente apreciado, mas salgado, na forma de linguiça caseira, de tripa portanto. Minha avó fazia uma variação com o pescoço da galinha, morta por meio de um manotaço que lhe destroncava o pescoço e depois pendurada pelas patas. O sangue, então, se acumulava no pescoço. Coisa especial de buena.

E por aqui ficamos.

-oO)(Oo-

sábado, 10 de março de 2012

O CRONISTA DA BRASÍLIA DO ISOLAMENTO E DO MISTICISMO


De todos os escritores piauienses aqui abordados, Esdras do Nascimento, nascido em Teresina, em 1934, é o único cosmopolita, o único que não desenvolveu uma abordagem regional. Contribuiu para isto, certamente, o fato de que sua carreira profissional teve lugar fora do estado: foi comerciário, professor, jornalista, tradutor, bancário e gerente de empresa financeira internacional, condição que lhe permitiu morar uns tempos na Europa e nos Estados Unidos. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela PUC-Rio, Mestre em Comunicação e Doutor em Letras pela UFRJ, Esdras notabilizou-se por ter sido o primeiro doutorando brasileiro a defender tese com a apresentação de uma obra de ficção: “Variante Gutemburgo”, nome de uma jogada de abertura do jogo de xadrez, depois publicada como livro em 1978. Apesar das resistências acadêmicas iniciais, conseguiu que a UFRJ aceitasse seu trabalho, o que foi viabilizado pelo peso acadêmico e institucional de seu orientador, Afrânio Coutinho.  Atualmente dedica-se exclusivamente ao ofício de romancista, e dirige, no Rio de Janeiro, uma Oficina de Criação Literária. Até o presente já publicou 14 romances e quatro livros de ficção. Em 1998, seu livro “Lição da Noite” ganhou o prêmio "Melhor romance do ano", da Associação Paulista de Críticos de Arte.

Se a minha oscilante memória não me trai mais uma vez, lembro de uma matéria que contava um episódio pitoresco de Esdras do Nascimento. Trabalhando em jornal carioca, o editor lhe pede uma matéria sobre mais uma recorrente seca ou enchente do Nordeste (qualquer das duas provoca estragos), já que ele era da região; pragmático, Esdras perguntou: “Doutor, miséria para quantas laudas?”
 

Meu exemplar de Esdras é o “O Ventre da Baleia”, romance de 1980, editado pela Nórdica, do Rio de Janeiro, e que trata da vida em Brasília nos anos 60, época marcada por dois grandes fenômenos sociais: o isolamento das pessoas na nova capital e a disseminação de crenças religiosas, como  a seita que no livro ele denomina de Ordem Mística dos Pioneiros Transcendentais.

Uma de suas personagens comenta assim a vida em Brasília: “No começo, os grandes espaços angustiam, mas a pessoa termina se acostumando. Quando vai passear noutros lugares, estranha os edifícios colados uns nos outros, irrita-se com as calçadas cheias de gente, impacienta-se com as filas, sonha com os amplos gramados de Brasília e se apavora com a falta de espaço. É como se a geografia interior da pessoa tivesse se ampliado e não mais encontrasse correspondência na geografia exterior. Talvez uma questão psicológica ou até mesmo um problema de ordem orgânica”.  
E arremata: “Quem vem para Brasília e logo se adapta é porque tem um espaço interior muito rico, que no planalto se expande ainda mais. Quem gira em torno de um centro de gravidade situado nas coisas e objetos exteriores, dificilmente sobrevive. Ou se modifica e se põe de acordo com os grandes espaços físicos e espirituais do cerrado, ou se liquida”.

A última frase do livro não é animadora: “Mas haverá quem realmente não se sinta no exílio, vivendo aqui no planalto?”

Os primeiros anos de Brasília de fato foram difíceis. Apesar de o projeto arquitetônico pretender o estímulo ao convívio de diferentes segmentos sociais (desnecessário lembrar que o projeto de Brasília foi concebido sob tintas socialistas), o isolamento individual foi um efeito inesperado. No caso dos prédios de apartamentos, a idéia era de que ali moraria o motorista do ministério, vizinho do grande dirigente público. Nos setores de habitações individuais geminadas, o projeto pretendia estimular o relacionamento entre vizinhos colocando a frente das casas nas vias internas, umas de frentes para outras, enquanto que a parte dos fundos ficava voltada para as avenidas. 

 
As superquadras de Brasília

Se para os solteiros a vida não resultou fácil, também difícil foi para os casados.  Vindo para Brasília somente a família nuclear (pais e filhos), aqui a “discussão da relação” alcançou paroxismos, na ausência de tias, avós ou outros parentes que pudessem amortizar conflitos entre os casais. A cidade passou a ser conhecida como a capital dos divórcios. Mas, as razões sociológicas não eram as únicas, muitas separações foram de conveniência, ou de fachada, apenas para que cada membro do casal pudesse ter direito a um apartamento funcional. Isto perdurou até recentemente, principalmente em função da venda dos apartamentos.

Setor de Habituações Individuais Geminadas

Nem tudo, porém, se reduziu às dificuldades de comunicação. A questão do espaço moldou a vida na nova capital, criando um tipo específico de convívio, especialmente entre os adolescentes, que tinham tanto espaço como liberdade nos pilotis dos prédios de apartamentos das superquadras do Plano Piloto. As superquadras têm suas peculiaridades. A exemplo das habitações individuais geminadas, as superquadras constituem um espaço próprio. O cidadão que sai de carro da garagem de seu prédio não sai diretamente para a rua, avenida no caso, mas sim para dentro de sua quadra para só então entrar no tráfego da cidade. É um movimento em dois tempos. 

No meu próprio plano familiar vivi exemplos das singularidades de Brasília. Certa feita, andando em uma cidade satélite, que meu filho via pela primeira vez, ele comentou: “mãe, esta cidade é estranha, é diferente”. Minha mulher precisou lhe explicar que aquela era uma cidade normal, as cidades eram assim, Brasília é que era diferente. Minha própria mulher, estando no Rio de Janeiro, contou que estranhara, de manhã cedo, sair do prédio aonde estava hospedada e encontrar uma farmácia ao lado da porta de saída. Coisa inimaginável em Brasília, cidade onde tudo é organizado por setores.

Esdras do Nascimento retratou um período difícil da capital, quando até a crença em discos voadores era seguramente uma válvula de escape, além do êxito então alcançado pela Doutrina do Amanhecer, formulada por Tia Neiva e estabelecida no Vale do Amanhecer. Mas, a vida seguiu seu curso e aqui estamos nós.

Esdras no Programa do Jô

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domingo, 4 de março de 2012

VENTO NORDESTE


Vento Nordeste, o disco

“Vento Nordeste” é o título do LP de estréia da cantora Terezinha de Jesus, do Rio Grande do Norte, lançado em 1979 pela CBS. Fagner patrocinou a estreante, Capinam e Abel Silva assinaram a apresentação de capa e o excelente repertório reuniu grandes nomes da nossa música. Depois deste disco Terezinha de Jesus gravou quatro outros títulos. Além de “Vento Nordeste”, tenho também o LP “Pra incendiar seu coração”, de 1981.


Meu interesse pelo disco teve duplo motivo: primeiro, porque veio a reboque do sucesso alcançado pela turma do Ceará, e isto era uma credencial; segundo, e muito importante, porque fez parte de um projeto pessoal que não chegou a se concretizar. Motivado pelas coletâneas organizadas por Marcus Pereira – que no início dos anos 70 lançou as coletâneas Música Popular do Nordeste, Música Popular do Centro-Oeste e Sudeste, Música Popular do Sul e Música Popular do Norte -, pretendi ter pelo menos uma manifestação artística e outra literária de cada estado brasileiro. Embora tenha feito um discreto progresso, o projeto acabou arquivado.

Mas, Vento Nordeste é também o título do livro de um autor piauiense.

Vento Nordeste, o livro
 
“Vento Nordeste” é da autoria de Permínio Ásfora (1913-2001), filho de um imigrante árabe natural da Palestina, sendo sua mãe de família piauiense com raízes no Ceará. Nasceu no que hoje é o município de Pimenteiras, na época região de Valença. Dos oito títulos que publicou, três receberam prêmios nacionais. No próprio Piauí Permínio Ásfora ficou pouco conhecido, pois desde criança sua família deslocou-se para outras paragens. Sua vida profissional de jornalista teve lugar no Rio de Janeiro, onde faleceu.


“Sapé”, seu primeiro livro, publicado em 1941, é ambientado na cidade de mesmo nome, na Paraíba, onde sua família morou, e foi interditado pelo DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão de censura do Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas. A Voz do Brasil classificou o livro como “subversivo e imoral”. Anos mais tarde, na década de 60, Sapé foi o maior reduto das Ligas Camponesas, criadas por Francisco Julião e que foram brutalmente reprimidas após a tomada do governo pelos militares em 1964. Permínio Ásfora foi um escritor admirado pelos grandes nomes da nossa literatura, a exemplo de Guimarães Rosa, Afonso Arinos de Mello Franco, Gilberto Freyre, Jorge Amado e Érico Verissimo.

Meu exemplar de Vento Nordeste é da 2ª edição, de 1982, publicada pela Editora Civilização Brasileira em convênio com o Instituto Nacional do Livro, órgão da Fundação Pró-Memória (MEC). A primeira edição do livro foi em 1952. Na “orelha” de apresentação, diz Ênio Silveira, da Civilização Brasileira”: “Merece relevo, ainda, o fato de que juntos tenhamos contribuído para retirar de injusto olvido muitos livros e autores de cujo convívio a Nação, ao cada vez mais descobrir-se a si própria, num continuado processo de amadurecimento e de conscientização, não pode nem deve prescindir. É o que sucede com este marcante e vigoroso romance de Perminio Asfora, VENTO NORDESTE, que em boa hora recolocamos diante dos leitores de hoje, quando já dispõem de adequada base teórica, bem como de poderosa rede de comunicação social, para se integrarem no processo de repensar nossa complexa e problemática realidade nacional”. Na contra-capa são apresentados depoimentos sobre a obra de Permínio Ásfora assinados por Jorge Amado, Álvaro Lins, Adonias Filho e Eduardo Portella.

“A ventania inesperada e fresca varreu sabugos e palhas de milho do terreiro batido e plano, agitando na ponta do mastro a bandeira desbotada de São João. Sob a jaqueira carregada, mulheres pitavam cachimbos e prendiam nos joelhos as saias largas de chita. Duas moças segurando as flores do cabelo olharam o pequeno balão que ganhava altura. Também os homens levantaram a cabeça, mas para ver as nuvens que se aglomeravam na cordilheira.” Este é o parágrafo de abertura de Vento Nordeste. A partir daí seguem-se histórias de miséria aguda, que, segundo o autor, “reduzia homens a trapos”. A trama é construída a partir da linha de trens da Great Western, companhia inglesa, dos cassacos – uma categoria de trabalhadores das vias férreas -, e dos plantadores de algodão dos confins do Rio Grande do Norte. Neste ambiente pesado e carregado de constantes conflitos sociais, rasgadas desilusões amorosas complicavam ainda mais o vagaroso desenrolar da vida cotidiana.

Vento Nordeste é uma obra de literatura regional que reproduz a linguagem popular e seus ditados, aspectos que mereceram análise em estudo do professor Walter Medeiros, do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro. Herculano Moraes, em sua “Visão histórica da literatura piauiense”, classifica a produção de Permínio Ásfora como “romance ideológico”, e transcreve a análise de Oliveiros Litrento (revista Leitura, nº 14, agosto de 1958): “Humanissimamente nordestino, Perminio Ásfora consegue transmitir o apelo da obscura gente de uma região marcada pela adversidade, pelo desespero. De criaturas onde se nota a mais autêntica brasilidade, a representar, paradoxalmente, uma pobreza quase indigente e a dignidade do nosso povo”.

Uma coincidência de linguagem

Em Vento Nordeste encontra-se a seguinte passagem: “Ergueu-se sem tocar as costas no chão. Os meninos correram para ver a briga, menos Alonso, o mais velho, que tinha ido ao Gurinhém.”

É a mesma construção do recente “meme” (uma unidade de informação) que, a partir de um comercial imobiliário protagonizado pelo colunista social Gerardo Rabello, ganhou destaque nas redes sociais: “fiz questão de reunir toda a minha família, menos  Luíza, que está no Canadá, para apresentar este empreendimento”.


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