quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Enquanto isto, na Fercal...

- Mãe, toda avó tem chácara?

Camila, 5 anos, que já sabe que avó é tudo de bom.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

INVENTÁRIO

Emanuel Medeiros Vieira

Em memória do professor Lauro Junkes, caro amigo e incansável estudioso da literatura catarinense

Aquela manhã posterior:
qual?
Não a verei – canto da cigarra matutina
morango na relva
grama orvalhada

O espelho me leva a outros espelhos,
a Morte à espreita, sorri na esquina
e diz que sabe esperar: “Tenho mais tempo.”
Olho-a e retruco: “Passou a hora de ter medo.”
Mas sentirei saudades de um certo mar,
de um arco- íris que um menino contemplou
numa ilha ao sul do efêmero.


Cumpri os rituais: afiei o lápis, contemplei a folha branca
(ah, pureza inatingível/impureza inaceitável).

Palavra arrancada da pedra: esta a memória que ficará.

No meio do café, Ela me olha de novo – fixamente.
Despisto, finjo que não a vejo, e sigo – é preciso
seguir.

Não, não verei meus olhos no momento derradeiro,
nem o novo dia sendo fundado.

As guerras que vivi?
Já não importam.

(Aquele que foi feixe de ossos e de emoções,
segue – pacificado – o rio.)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

EXÍLIO*

Emanuel Medeiros Vieira

Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.

Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.

Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.

*Poema premiado no Concurso Nacional de Poesias, cujo tema foi “O Mundo do Trabalho”, promovido pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

VIETNÃ (E o “desfolhante laranja”)

Emanuel Medeiros Vieira

Ah, Porto Alegre, anos 60. Conversávamos na Praça da Matriz: eu, Flávio, Alberto, Edgar, Aydos, Paulo, Sá Brito e outros. O que fazer? Havia a ditadura, cassetetes, mimeógrafo, apostilas. E a notícia de que Glauber e outros artistas haviam sido presos no Rio por protestarem contra a Guerra do Vietnã. Era preciso fazer alguma coisa. Sabíamos o que o Império estava fazendo. Não, mais uma vez não era possível ficar calado, como se nada estivesse acontecendo lá longe, sim, bem longe, do outro lado do mundo.

(A luta continuou depois, já na década de 70, em São Paulo e Florianópolis.)
A guerra terminou. Acordo assinado em 1975. Mas ela guerra não acaba com o armistício: ficam as sequelas, as viúvas, as muletas, os órfãos, as cidades destruídas.

Éramos poucos? Sim. Mas parecíamos muitos.

Queríamos mudar o mundo.

A gente já escrevia para jornais do centro acadêmico, da faculdade de Direito, de Filosofia. Os verbos eram “ampliar”, “engajar”.

Ou: “nossa força é a nossa união, não passarão, polícia também é povo.”
(Hoje, quem ler, talvez sorria.)

Iríamos “fundar a utopia.” Líamos tudo. Queríamos saber, conhecer, viajar.. A livraria do Arnaldo e do Brutus (“Coletânea), no coração da cidade, era ponto de encontro. E vendia a crediário. Andávamos quase sempre “duros”. A livraria, o centro acadêmico, a Praça da Matriz, o “Mateus”, o “Rian”, as casas dos amigos, as repúblicas, os restaurantes universitários, os cine-clubes eram os locais agregadores.

E havia o Vietnam, para quebrar a nossa cabeça.

A turma tem hoje, aproximadamente, 60 anos, 60 e poucos. Enternecer sem perder a dureza.... A vida pode ter colocado espaço, distâncias. Vários amigos já estão encantados, tentando decifrar os enigmas da eternidade.

Não, não estamos em 1967. Estamos em 2010.

Trinta e cinco anos depois do final da guerra e da maior derrota militar dos EUA, os efeitos da dioxina usada no desfolhante laranja continuam a afetar regiões que compreendem áreas do Vietnã, do Laos e do Camboja. Os resíduos se entranharam na terra e nas sementes das plantas , e as pessoas que as consumiram e consomem, transmitiram e transmitem seus efeitos aos descendentes.

35 anos depois! Crianças sem olhos, sem braços, sem ouvidos, como revela Mauro Santayana. Recém-nascidos com os órgãos genitais na face.

Escreve ele: “São milhares de seres humanos e, enquanto viverem e continuarem a nascer, representam o libelo mais ácido contra os piores terroristas: os senhores estadunidenses da guerra.”

A história do desfolhante laranja começou na Segunda Guerra Mundial, quando os encarregados das armas químicas sugeriram seu emprego maciço sobre os arrozais japoneses.

Mas maiores empresas químicas do EUA, estimuladas pelo Pentágono – tendo à frente a Monsanto (não esqueçamos este nome) e a Dow Chemical passaram a pesquisar os efeitos do agente laranja contra os seres vivos, não só os da deformação genética genética, como também os da indução ao câncer. Em 1960 passaram a produzir para a guerra. Em 1961, o glorificado presidente Kennedy autorizou o uso do produto no Vietnã.
Naquele país, além das crianças deformadas a incidência do câncer no útero é 30 vezes maior do que no resto da Ásia.

Os acordos de Genebra proíbem rigorosamente o uso de armas químicas nas batalhas.
A morte pode ser um processo técnico lucrativo, observa Mauro. “Não lhes importa a possibilidade de que os transgênicos venham a matar os consumidores ou a condenar as almas da crianças a habitar coros deformados nas próximas gerações. O que importa é o preço das ações, os dividendos aos acionistas, e a elevada remuneração de seus quadros executivos”, arremata.

Porto Alegre. Rapazes de 20 anos. Os inseguros amores, os esperançosos amores. Contos, poesias, curta-metragens.

Meu barro é mnemônico: não esqueço. Eu me lembro: Vietnã. Talvez, o exemplo que conhecemos de maior bravura e de maior coragem de uma gente. Tal luta vale mais que mil teses que falem em auto-determinação dos povos.

(Queria dedicar esta memória a todos os amigos que estiveram juntos naquele “campo de sonhos”, nos anos de Porto Alegre – cidade, também florida, das faculdades tão agitadas, do Guaíba do pôr-do-sol, das ladeiras, do “Rian”, do Cine Rex, do Quintana, do Gastal, do Appel, do Gerd e de tantos outros que, generosamente, nos ensinaram o valor da amizade, do pluralismo e da democracia (sim, que vá o lugar-comum necessário) como valor universal.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sobre o Mito de Sísifo

Emanuel Medeiros Vieira

Nascido na mitologia grega, há várias versões sobre Sísifo, que foi o fundador de Éfira, que mais tarde veio a chamar-se Corinto.

Ele era considerado o mais astucioso dos homens, mas incorreu na cólera de Zeus. Este lhe impôs no inferno o castigo de ter de rolar até o alto de uma colina uma grande pedra para baixo; essa tarefa recomeçava incessantemente, numa punição eterna.

Albert Camus escreve uma obra célebre sobre o tema, intitulada “O Mito de Sísifo”, que marcou várias gerações (pessoalmente, li esse livro várias vezes), quando o estudo da mitologia e da filosofia era respeitado e valorizado em nossas universidades.

Para muitos, seria ele a metáfora do herói estóico. Sofre o maior dos castigos: ter de rolar até o alto de uma colina uma grande pedra para baixo e, além disso, precisa recomeçar essa tarefa sem parar.
Essa obrigação, dever ou danação, lembra a noção do absurdo.

Para muitos existencialistas, o absurdo é a evidência que desperta. Quer dizer, mesmo que Deus não exista, que o homem seja finito, que a justiça e o bem raramente triunfem, a missão dos viventes não é inútil. Significa que o mérito de uma obra é tê-la feito. Simplesmente isso: tê-la realizado.

Que não se espere gratidão, que não se conte com a valorização alheia por posturas dignas num mundo corrompido. É preciso ter uma ética pessoal, calcada não na retórica, mas na vida. Isto é, é preciso ser autêntico. Por isso Camus, encerra sua bela obra afirmando: “É preciso imaginar Sísifo feliz”.

Então, a vida não é justa, nem injusta. Simplesmente é. Não caberia dizer: “ele é tão bom, não mereceria sofrer”. Porque não adianta. Com estoicismo, é preciso estar preparado para tudo. Essa é a lição que fica.

Num mundo pós-utópico, absolutamente fragmentado, em que a ânsia da totalidade nunca é concretizada, no qual reina o desencanto, e também a resignação e a passividade, a capacidade de resistirmos com ética e honra, se torna, talvez, nossa missão maior neste planeta.

Formou-se uma comunidade de consumidores, não de cidadãos. Em um mundo árido, carente de ideais maiores, o mito de Sísifo torna-se cada vez mais atual.

Noutra versão, Zeus revoltado com Sísifo, ordenou que Tânatos o matasse. Sísifo usando sua astúcia, acorrentou Tânatos (gênio masculino que personificava a morte, irmão de Hippos, o sono), de tal maneira que ninguém mais morria. Seria, o mito de um homem eterno, não finito.

O próprio Zeus teve de compelir Sísifo a libertar Tânatos, que novamente em sua função de pôr termo à vida das criaturas humanas, matou sem demora Sísifo.

De volta à terra, depois de voltar do inferno (Hades), Sísifo viveu, nessa versão, até a extrema velhice.

Brasília, setembro de 2010

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

SÍSIFO

(Em memória de Beluco Marra)

Emanuel Medeiros Vieira

Incansavelmente
bordo a túnica do passado.
Exausto, teço e desteço.
Acumulo, nunca unifico: sigo a jornada –
Sísifo da solidão planetária.

Sim, teço.
Mas é próprio do meu barro destecer sempre.
(Resta-me a memória do mundo.)

Um pouco de Mozart, e este amanhecer azul.
Celebro o instante:
se não posso convertê-lo em sempre
sou finito),
abraço-como um náufrago sorridente.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

TEMPO

Emanuel Medeiros Vieira

“O mal não está em que a vida promete largo e dá estreito: o mal é que ela sempre dá e depois tira.” (Juan Carlos Onetti)

"Me colocaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado.
Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul
pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela linha educação.”
(Murilo Mendes)


O Tempo não roerá o verso da minha boca, reivindica a poeta. Crônica? Não sei. Mas é sobre essa “brevidade infinita” que chamamos de tempo, que eu gostaria de meditar.

Os mais radicais dizem que o tempo não existe. Mas ele está aqui, nos meus calcanhares, no domingo à tarde –, outro que se esvai, assim, sempre. Ou o tempo é uma ilusão? Não, não é a busca da notoriedade efêmera, o que queremos com a literatura. (Refiro-me àqueles que sabem que seu ofício é mais que marketing.) Nem aspiramos prebendas.

A pergunta de sempre: por que escrevemos? Ou melhor: por que continuamos? Poucos parecem se interessar pela palavra. A imagem prevaleceu.E a internet acelera a comunicação. Não a aprofunda.
Mas é preciso persistir e continuar acreditando na permanência da literatura.

Sabemos – com Freud – que podemos reconhecer apenas um pequeno fragmento dos nossos ímpetos, e um fragmento ainda menor dos ímpetos de outras pessoas. Desistiremos por essa razão? Da subjetividade que nos exila e da objetividade que nos esmaga? Ainda mais num mundo em que tudo parece se “derreter”, em que tudo é descartável, em que nada parece perdurar.

Como observou Milan Kundera, a idéia do eterno retorno designa uma perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas nos aparecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. E tudo é fugaz. Alguém disse que a morte sempre vence, porque tem mais tempo.

E escrever, é também uma busca de transfiguração. Transfigurar para eternizar. É isso o que importa.

Não a doentia busca de notoriedade ou fama que, no mundo em que vivemos, todos parecem querer conquistar a qualquer custo. Mesmo que se venda a própria alma.

O fundamental é manter-se fiel a si mesmo. Não é fácil. Mas só assim preservamos a nossa essência e os nossos valores.

“Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz”, observa Kundera. Por isso, Nietzsche afirmava que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos.

Como criadores, em nossas narrativas, buscamos criar uma teia de sentido, num mundo que parece ter se desencontrado do núcleo do humano. Perdemos o eixo na chamada pós-modernidade?

Na hegemonia do fragmento, é preciso buscar um caminho que reconcilie
SER E DESTINO.