sábado, 10 de dezembro de 2011

FÉRIAS, QUE NINGUÉM É DE FERRO (Parte I)

Em Campos do Jordão comemos uma truta grelhada no Baden Baden. Mas, até chegarmos lá algumas atrapalhadas...

Nossas férias, minhas e de minha mulher, começaram sob fortes emoções. Por problemas inesperados no trânsito de Brasília chegamos ao aeroporto quando a companhia aérea já estava nos chamando. Correria para cá, para lá, uma van que nos levou para o avião, que estava na pista só à nossa espera.

Desembarcamos em Campinas, de onde pegamos um ônibus para Campos do Jordão. Viagem brilhante, pelas excelentes rodovias de São Paulo, até Pindamonhangaba. Aliás, Pinda, segundo o modo local de se referir à cidade. É Pneus Pinda, Drogaria Pinda, loja Pinda & Borda, etc.etc. Isto, que gramaticalmente corresponde ao processo de formação de palavras por redução vocabular, como cine reduzido de cinema, auto reduzido de automóvel e foto de fotografia, aparentemente é um costume apreciado pelos paulistas: Bandeirantes vira Band, Rádio Panamericana vira Jovem Pan, e até Jundiaí pode virar Jundi como em Jundi Turbinas.

Saímos de Pinda no começo da noite e foi como entrar no meio do nada: uma estrada sem nenhuma iluminação, só os faróis do ônibus permitindo ver as curvas ascendentes, isto é, uma curva para a esquerda, uma curva para a direita, sempre subindo. A distância entre as duas cidades é de 101 km, Pinda fica na altitude de 557 m e Campos do Jordão a 1.600 metros em média. Portanto, um trecho bastante puxado pela Serra da Mantiqueira. Ao lado da estrada uns bastõezinhos iam indicando a mudança de altitude. Mais ou menos no meio do trajeto um silvo, um barulho e o ônibus para. Suspeita de pneu furado. Suspeita não confirmada, a abraçadeira da mangueira do intercooler havia se soltado. Sem condições de suporte técnico, pois o serviço de Campos do Jordão encerra-se ao final do dia e dane-se o que acontecer fora do horário de expediente, o jeito foi recolocar a abraçadeira do modo que foi possível e seguir viagem devagar para não forçar novo problema. Que de fato houve. Nova tentativa. Daí para a frente o ônibus terminou de subir a serra andando a 20 km/hora. Chegamos ao destino com uma hora meia de atraso e com 11ºC de temperatura. Finalmente começavam nossas férias. 

Campos do Jordão

A origem de Campos do Jordão: o Governador da Capitania de São Paulo concedeu uma sesmaria (equivalente à área atual da cidade) para Vieira de Carvalho. Com sua morte, a sesmaria foi hipotecada, em 1825, para o Brigadeiro Manoel Rodrigues do Jordão, amigo íntimo de D. Pedro I e dono das terras nas quais o Imperador deu o “Grito da independência”.  O Brigadeiro morreu dois anos depois sem ter conhecido a fazenda e a antiga sesmaria passou a ser conhecida como “os campos do Jordão”.

O portal da cidade

Por conta das qualidades do ar da região, as pousadas e pensões passaram a receber pessoas com problemas respiratórios, chamados de “respirantes”. Como se respirantes não fôssemos todos nós. A fama da cidade propagou-se e, para evitar que ficasse estigmatizada, os hotéis passaram a exigir dos hóspedes atestado de boa saúde.

A Prefeitura de Campos do Jordão fica na altitude de 1.628 m. É, portanto, o mais alto município brasileiro.
 
Pousada das Hortênsias

Ficamos hospedados na Pousada das Hortênsias, um local simpaticíssimo e marcado pela cordialidade no atendimento. Embora exista o serviço de café da manhã, o restaurante não oferece refeições como almoço e jantar. Mas, os hóspedes dispõem de um chá da tarde, como cortesia, servido às 17 horas com todos os complementos. No começo da noite cada apartamento recebe ainda uma bandeja para uma última rodada de chá, acompanhada de biscoitinhos.

A pousada onde ficamos hospedados





Capivari - o bairro nobre






O bairro Capivari é onde se concentram os hotéis e pousadas e as principais atrações turísticas. A construção no local só é permitida nos moldes da arquitetura de origem suíça.

O Pico do Itapeva



É o pico mais alto da região. Fica a 2.305 metros. Embora pertença a Pinda, seu acesso é feito por Campos do Jordão. Por razões, digamos, visíveis, as barraquinhas do lugar vendem um apropriado e muito a calhar chocolate quente.

Floração nativa




A força da natureza: na beira da estrada copos de leite (as flores brancas) e digitalis (as avermelhadas). A digitalis precisa de frio para florescer e é a base da digitalina, remédio usado para problemas de arritmia do coração.

Ducha de Prata


O local, próprio para atividades junto à natureza, localiza-se em um bairro chamado Vila Inglesa, que herdou o nome de uma antiga Pensão Inglesa.
 


Centro turístico

Campos do Jordão possui dois centros: este, que é retratado, e o centro comercial, onde se concentram os principais estabelecimentos comerciais que atendem à população local.
  
 
O Morro do Elefante


O Morro do Elefante deve seu nome ao fato de que, de longe, seu contorno lembra o dorso de um elefante. O acesso principal é feito por meio de um teleférico.



O teleférico para o Morro do Elefante

O mirante do Morro

Campos do Jordão ainda tem vários outros atrativos que, pelo tempo disponível, não conseguimos conhecer. Como, por exemplo, o Mosteiro das Monjas Beneditinas, o Palácio do Governo, a Fábrica da Baden Baden e principalmente o trajeto de trem até São José dos Pinhais. Para quem gosta, a região também é procurada por suas trilhas para jipes, motos e outras modalidades do chamado turismo de aventuras.

É fácil entender sua fama no tratamento de problemas respiratórios. O ar que lá se respira é revigorante. Também revigorante o frio da segunda quinzena de novembro. Frio, aliás, de alto gabarito. Aquele frio que estimula. Nada daquele frio bárbaro que é acompanhado por vento ou por chuva. Portanto, quem estiver em busca de qualidade de vida, prestes a se aposentar dispondo de um pé-de-meia, pode considerar a possibilidade de se estabelecer em Campos do Jordão. As ofertas imobiliárias vão das mais razoáveis às de altíssimo padrão.  O cidadão será vizinho da alta burguesia que lá possui mansões, como o Bispo Edyr Macedo, Ricardo Semler – autor do best-seller “Virando a Própria Mesa” e cuja casa está construída em um terreno de cinco milhões de metros quadrados -, e o Deputado Paulo Maluf, nome de um enorme e saboroso pastel local, naturalmente com recheio superfaturado. Além disso, Campos do Jordão fica a confortáveis 170 km da cidade de São Paulo, aonde o cidadão terá a oportunidade, quando lhe aprouver, de ir assistir a todos os shows, filmes e espetáculos oferecidos pela maior cidade brasileira. Junta-se assim o melhor de dois mundos: um lugar agradável onde existem excelentes alternativas gastronômicas, com a proximidade do fervo artístico e cultural. Convém saber que o preço dos combustíveis é mais elevado até do que em Brasília, além do que o consumo dos carros resulta prejudicado pela topografia da cidade. Em contrapartida, a passagem nos ônibus urbanos é grátis para quem tem mais de 60 anos.

Campos do Jordão foi a primeira parte de nosso itinerário. Que ainda teve desdobramento.

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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

NOTAS SOCIAIS


O registro de um mimo e recomendação de leitura


Minha colega de faculdade, Ruth Wigner, enviou-me o livro acima: “Vozes da legalidade: política e imaginário na era do rádio”, de Juremir Machado da Silva, publicado pela Editora Sulina em 2011 e já em 5ª edição. O livro foi comprado na Feira do Livro de Porto Alegre, que este ano comemorou sua 57ª edição. Iniciativa brilhante e que a cada ano alcança pleno êxito.

Uma ocasião, quando já estava na universidade, em Porto Alegre, coisa aí pelo final dos anos 60, fui à Feira e estava xeretando em uma banca para ver as novidades. O livreiro, um sujeito grandão, com jeito de quem estava meio enfadado, perguntou se eu estava interessado em alguma coisa. Pra desconversar, disse que estava procurando alguma coisa leve. Na mesma hora ele rapidamente me passou o livro “A era da incerteza”, de John Kenneth Galbraith, que não era leve nem no conteúdo nem em sua dimensão física, sendo um cartapácio de quase 400 páginas. Fiquei com a nítida impressão de que o cidadão queria se livrar daquele livro. Achei prudente agradecer e fui visitar outras bancas com livreiros de melhor astral.

Mas o registro do “Vozes da legalidade” se deve não só à gentileza do presente, acompanhado de carinhosa dedicatória, mas também porque se trata de um trabalho cuja leitura é recomendável. Em especial para quem quer conhecer os bastidores do episódio em que Leonel Brizola, então Governador do Rio Grande do Sul, organiza uma rede de rádios, a Cadeia da Legalidade, comandada pela Rádio Guaíba, de Porto Alegre, que desencadeia um movimento de mobilização popular que acabou viabilizando a posse de João Goulart na presidência. Jânio Quadros havia renunciado e os militares queriam impedir que Jango, então em viagem ao exterior, assumisse o cargo. Mas a leitura é também recomendada para quem tiver interesse em ler um bom texto sobre nossa história política. É um livro quase coloquial, de leitura fácil e saborosa, resultado de um primoroso trabalho de pesquisa e de entrevistas com grandes nomes da política da época. O autor é jornalista, radialista, professor, historiador e Doutor em Sociologia.

Um sugestão de pesquisa

Carlos Renato B.da Silva comenta com muita gentileza os textos memorialísticos que tenho publicado. Em um dos comentários postados, ele sugere resgatar um período um tanto desconhecido dos lavrenses que é a época do Cultivo do trigo e do Comando Agrícola Marema LTDA”. Acrescenta que uma consulta aos dados de produção do município auxiliaria na pesquisa. 

A sugestão é preciosa. No entanto, pelo meu distanciamento físico de Lavras do Sul, que em linha reta dá mais de dois mil quilômetros, divulgo a sugestão para quem tenha a condição ou interesse de desenvolvê-la, pois supõe a possibilidade de ter melhor acesso a dados estatísticos disponíveis em órgãos da Prefeitura, do IBGE ou do Governo do Estado. Além, naturalmente, da disponibilidade de consulta a cidadãos que viveram a época e que possam dar seu depoimento e testemunho. O PATO VELHO está à disposição para publicar os resultados deste trabalho.

Novas perspectivas para as ouvidorias públicas

A Ouvidoria-Geral da União está desenvolvendo uma série de atividades e projetos relacionados às ouvidorias públicas, a exemplo dos estudos para a formalização de marcos legais que assegurem a formação de um sistema federal de ouvidorias, a instituição de uma identidade administrativa e orçamentária para as ouvidorias, além do estabelecimento de normas que resultem em uma nova organização do processo de análise das manifestações.

Como etapa preliminar e para melhor conhecimento do universo e das condições em que atuam as ouvidorias públicas, a Ouvidoria-Geral da União promoveu a aplicação on-line de dois levantamentos: um questionário para identificar a percepção dos ouvidores sobre sua atividade e outro voltado para a obtenção de informações operacionais. O responsável pela coleta e análise desses dados é o Prof. Doriam Borges, Doutor em Sociologia pelo IUPERJ e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ. Para complementar seu trabalho ele entrevistou os ouvidores dos diversos ministérios. Nas fotos abaixo, registro de sua passagem pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

A partir da esquerda: o Ouvidor-Geral do MCTI,  Prof. Dr. Doriam Borges
e Eduardo Ramos Ferreira da Silva, Ouvidor-Substituto do MCTI

Um momento raro: o Ouvidor está falando

 No corrente mês, como resultado de parceria formada entre a Ouvidoria-Gral da União e o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), foi realizado o encontro Novas Tecnologias para Ouvidorias, com o objetivo principal de identificar as necessidades das ouvidorias em Tecnologia da Informação (T I), especialmente em face da implementação da Lei nº 12.527/2011, de Acesso à Informação Pública. Na oportunidade, foi apresentado o sistema que o Serpro desenvolveu para gerenciamento eletrônico das manifestações recebidas pelas ouvidorias, na forma de software livre.

As palestras do encontro podem ser assistidas por meio do seguinte endereço: http://assiste.serpro.gov.br/ogu.  O software desenvolvido pelo Serpro está disponível em: http://softwarepublico,gov.br. Procure por “Sistema de Ouvidoria”. Para download é necessário cadastro prévio.


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sábado, 3 de dezembro de 2011

NA RETA FINAL DA CORRIDA PARA A UNIVERSIDADE (Porto Alegre – Parte V)


Tenho a desconfiança de que estamos caminhando para a barbárie. Alguns exemplos: a humilhação a que os universitários calouros são submetidos, a pichação que emporcalha as cidades brasileiras, o domínio territorial das facções ligadas ao tráfico de drogas, a violência nas escolas – briga entre alunos, bullying, ameaça aos professores – e a violência doméstica contra a mulher, em especial os casos cada vez mais frequentes que resultam em mortes cometidas por homens que não suportam a separação.

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que os homens não eram tão bárbaros e as mulheres eram muito mais dóceis. Faz sucesso um e-mail com o título “antigamente é que era bom”, onde são listadas as recomendações que as revistas femininas faziam às suas leitoras, principalmente na década de 50. As relações conjugais e as considerações sobre os papéis de homem e mulher na relação eram assim apresentadas:
  • O lugar da mulher é no lar. O trabalho fora de casa a masculiniza. (Revista Querida, 1955)
  • Para ser essencialmente feminina, você precisa ser compreensiva, precisa ter um mestre, um marido a quem respeitar. (Jornal das Moças, 1955)
  • Se o seu marido fuma, não arrume briga pelo simples fato de cair cinzas no tapete. Tenha cinzeiros espalhados por toda casa. (Jornal das Moças, 1957)
  • É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido. (Jornal das Moças, 1957)
  • A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas, nada de incomodá-lo com serviços domésticos. (Jornal das Moças, 1959)
  • Se desconfiar da infidelidade do marido, a esposa deve redobrar seu carinho e provas de afeto. (Revista Claudia, 1962)
  • A boa esposa faz do marido um homem muito feliz. Entusiasma-se com as idéias dele, suas piadas e histórias só para agradá-lo e/ou incentivá-lo. Ela não incomoda o marido em seu trabalho e só telefona para seu escritório quando o assunto for realmente importante. É carinhosa o suficiente para satisfazê-lo totalmente, porém não para inquietá-lo. (Claudia, 1962)
 As revistas femininas na década de 60
Algumas das principais revistas femininas da época são publicadas até o presente: Capricho, a mais antiga, iniciada em 1952, Claudia, iniciada em 1961, e Capricho, existente desde 1963. Claudia, que completou 50 anos em outubro de 2011, foi muito importante como uma precursora das revistas femininas que começaram a divulgar uma nova concepção do papel das mulheres na sociedade, em especial nas crônicas da psicóloga Carmem da Silva. 

Claudia de 1963

Graças aos conselhos de Carmen da Silva é que aos poucos a compreensão do papel da mulher na relação conjugal foi se alterando. Foi ela que começou a redefinir as condições para a felicidade conjugal, introduzindo recomendações sobre a independência feminina e a necessidade de comunicação entre o casal. Começou a mudar o conceito do que era ser uma boa esposa, abrindo espaço para o entendimento de que a afinidade e a satisfação sexual eram fatores relevantes para a harmonia conjugal. O universo feminino nunca mais foi o mesmo.

Atualmente existem muitos trabalhos e estudos sobre o tema das relações de gênero. Indicamos uns poucos, cuja referência completa pode ser obtida por meio do Google: “Folheando o amor contemporâneo nas revistas femininas e masculinas”, de Thays Babo e Bernardo Jablonski; “Homens e mulheres nos anos 1960/70: um modelo definido?”, de Maria de Fátima da Cunha; e “Revistas femininas e o ideal de felicidade conjugal (1945-1964)”, de Carla Bassanezi. A última autora integra o Centro de Estudos de Gênero Pagu, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, que se dedica integralmente ao assunto.
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O Willys Capeta
No Salão do Automóvel de 1964 a Willys Overland do Brasil apresentou um protótipo de carro esporte, o Willys Capeta, que nunca chegou a entrar em linha de produção. O projeto, totalmente nacional, foi construído em comemoração ao milionésimo carro da indústria brasileira. Segundo o site VRUM, o Capeta era equipado com propulsor de 2,6 litros, seis cilindros, 148cv, que desenvolvia velocidade máxima de 180km/h. A transmissão do veículo foi criada pelo departamento de competições da marca. O interior trazia bancos em couro e apliques de jacarandá nas portas e painel. O esportivo trazia evoluções que seriam usadas mais tarde em outros modelos da marca, como a caixa de quatro marchas, o próprio motor de seis cilindros, com cabeçote com coletores de admissão destacáveis e dois carburadores horizontais de corpo duplo.
O Willys Capeta, restaurado

Atualmente encontra-se cedido ao Museu do Automóvel de Brasília, sob a curadoria de José Roberto Nasser. Observe-se que até hoje as linhas do Capeta são atraentes.
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O protótipo Saci
Antes do Capeta a Willys apresentou, no primeiro Salão do Automóvel, de 1960, o protótipo Saci. Similar ao modelo americano Jeepster, o Saci era um conversível com capota de lona baseado na Rural Willys. Mas, o Jeepster nunca foi um sucesso de vendas nos Estados Unidos nem o Saci chegou a ser produzido no Brasil. Bons tempos em que a indústria nacional utilizava nomes tupiniquins para seus modelos...
Willys Saci
Eu era apaixonado pelo modelo do Saci. Nunca entendi porque não deu certo. Afinal, nesta época, os modelos da Willys, a Rural e o Jeep, eram sonho de consumo nas cidades do interior. Um modelo como o Saci seria uma diversificação esportiva da linha. Mas, os tempos eram duros e, além de provavelmente caro para ser construído, talvez o protótipo tenha sido considerado festivo demais. Ou não teve a aceitação esperada.
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Ó céus! Ó vida!

Antes de entrar para a Universidade e ter restaurante universitário à disposição, fazia minhas refeições em outra pensão, próxima de onde morava. Oportunidade para conhecer novos colegas, inclusive os que vinham de fora do país. A UFRGS recebia e continua recebendo muitos estudantes estrangeiros. Em minha época predominavam os latino-americanos: peruanos, equatorianos, venezuelanos. Refeição em pensão também costuma ser combate grupal na luta pelos recursos escassos. Certa feita, o último bife estava no prato onde era servido. Aí, após um pequeno momento de suspense, três dos garfos mais rápidos do Oeste espetaram o bife ao mesmo tempo. Foi preciso um Conselho de Arbitragem para uma divisão mais ou menos equalizada.

Tempos de dinheiro escasso. Quando se conseguia algum íamos jantar em um restaurante modesto mas que servia um magnífico arroz de carreteiro, com pimenta no ponto. Na inclemência climática do RGS, estava precisando de um guarda-chuva. Que, para os meus trocados, não era um produto tão barato assim. Olhava aqui, olhava ali, e nada que estivesse no jeito. Até que vi em uma vitrine um guarda-chuva com um preço maneiro. Entrei na mesma hora pedindo para comprá-lo. É sabido que homem não enrola muito para estas coisas, entra e vai direto ao ponto. Felizmente o vendedor percebeu quais eram minhas intenções e alertou: “mas moço, este guarda-chuva é para criança”. O jeito foi ter paciência até surgir uma nova oportunidade. Afinal, no bairro do Bom Fim e no centro da cidade existiam muitas marquises...

Temporal no bairro Vila Nova, de Porto Alegre (em 04/04/2011)

Em outra pensão vizinha encontrei um colega de Lavras. Com problemas parecidos, mas conformado com a situação. Também tinha necessidade de um guarda-chuva novo. Dizia: “meu guarda-chuva já está tão prejudicado que não é mais guarda-chuva, é um transformador: transforma chuva em garoa”. No pátio interno de sua pensão costumavam deixar as roupas para secar penduradas no varal durante a noite. Como tudo pode dar errado, apareceu algum espertinho e levou o que pode. Deixou apenas duas calças do meu colega. Que ficou indignado, pois se deu conta de que as calças estavam em um estado tão lastimável que nem o ladrão se interessou por elas.
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Torcedor entusiasmado

Ia assistir a partidas de futebol no Estádio Olímpico, do Grêmio, com o kit de torcedor: radinho e almofada. A almofada era feita de espuma, com o escudo do clube, e confeccionada em duas metades, de modo que ficava mais fácil dobrá-la para carregar debaixo do braço. Fundamental para se agüentar a dureza das arquibancadas de cimento. O radinho era um Spica, com cobertura de couro marrom, emprestado de um colega de pensão.  Como naqueles tempos não existia ainda fone de ouvido, para se escutar a transmissão o radinho tinha que ficar grudado no ouvido. Em uma noite chuvosa e gelada, mesmo morrendo de dor de dente, fui assistir, pela primeira vez, a uma exibição de Pelé, em um jogo do Grêmio contra o Santos. Desnecessário dizer que o Santos ganhou. Mas ver Pelé era uma obrigatoriedade, valia o sacrifício. Curiosamente, na minha pensão eu era o único fanático por futebol.

 
O Estádio Olímpico, do Grêmio (na década de 60 a cobertura superior era parcial)

Nesta época eram muito populares os programas humorísticos da Rádio Farroupilha, principalmente o quadro que reunia Pinguinho, representando um torcedor do Internacional, e Walter Broda, o alemão, representando um torcedor do Grêmio. Na crônica esportiva pontificava Ruy Carlos Ostermann, professor formado em filosofia, cuja linguagem intelectualizada conquistava os ouvintes; por exemplo, ele não analisava simplesmente o ataque do Grêmio, mas suas “proposições ofensivas”.
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Química, uma pedreira

O professor de Química do Julinho era um dos melhores do ramo, reputado professor de cursinho. Nem por isto conseguiu despertar meu interesse pela disciplina. Fiquei em dependência, ao final do ano. Se não passasse, não poderia prestar vestibular. Os colegas de pensão acompanhavam meu drama e torciam a favor. Mas, o anjo da guarda ajudou, São Judas Tadeu idem, provavelmente ambos sob a orientação do Altíssimo, e consegui obter o grau necessário para passar. Nada muito brilhante, meio ponto acima da nota mínima. Como se dizia, passei “na tangente”. Quando cheguei na pensão, com a notícia da aprovação, foi uma festa. Um deles, o do meio aí na foto, nem me deixou entrar pela porta, me puxou por cima da janela para me abraçar.

Eu (de casaco de pijama, revelando uma vocação precoce), Carlos Zen (estudante de Engenharia e alma boníssima) e o “Doutor” (estudante de Medicina, cujo futuro profissional  já antecipávamos pelo apelido, e que, aplicadíssimo, tinha uma coleção notável de cadernos manuscritos com anotações de aula)


Estava, finalmente, habilitado para o vestibular.


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