Nossos inesquecíveis
professores (5): os professores de Ciência Política – Helgio Trindade
O curriculum
vitae de Helgio Trindade é dos mais expressivos. Alguns dos aspectos mais
relevantes: Doutor em Ciência Política pela Université Paris 1 (Panthéon
–Sorbonne), Pós-Doutorado na Fondation Nationale des Sciences Politiques, no
Centre d’Études e de Recherches Internationales, na L’École des Hautes Études
en Sciences Sociales e na Stanford University, Reitor da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (1992-1996), Presidente da Comissão Nacional de Avaliação
do Ensino Superior (2004-2006), integrante do Conselho Nacional de Educação –
Câmara de Educação Superior (2006-2009), membro da Academia Brasileira de
Ciências (desde 2006) e atualmente Reitor
da UNILA – Universidade Federal de Integração Latino-Americana, com sede em Foz
do Iguaçu, Paraná. Em 2005 foi agraciado com a comenda da Ordem Nacional do
Mérito Científico, do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Quando foi nosso professor, Helgio vinha de uma
especialização na França, realizada no Institut d’Études Politiques. A sua
formação acadêmica francesa, por ele valorizada pela ênfase no rigor
metodológico, de certa forma representava uma novidade, pois a Ciência Política
no Brasil constitui-se basicamente a partir dos docentes formados nos Estados
Unidos.
Nossa turma assistiu suas primeiras aulas. Com a atenção
concentrada não no assunto, mas na peregrinação de Helgio no estrado, onde,
talvez por alguma timidez inicial, ia de um lado para o outro olhando para o
chão e fazendo um rangido constante provavelmente por alguma tábua meio solta
onde ele pisava no seu ir-e-vir. Este registro é de cunho afetivo e serve
apenas para registrar o início de uma carreira que depois se revelou brilhante.
Um parêntesis francês
Durante o nosso curso, Helgio
trouxe a Porto Alegre um professor francês, Jean Ranger, que ministrou na UFRGS alguns
cursos de curta duração. Fora das atividades acadêmicas, Helgio cumpria uma
rotina de anfitrião, levando o professor a conhecer os principais pontos da
cidade. De vez em quando eu participava como carona destes passeios. Por conta
desta vivência, observei que todos os dias o professor francês vestia o mesmo
casaco, um axadrezado Príncipe de Gales, se estou bem lembrado. Comentei o fato
com Helgio: “ele não troca o casaco, será que não tem outro?” Helgio riu e
contou: “o pior é que na França ele também usa sempre este casaco”.
A produção do livro
sobre o movimento integralista
Helgio Trindade com as insígnias de Comendador da Ordem
Nacional do Mérito Científico
(Brasília, 2005)
Durante o período em que foi nosso professor Helgio
dedicava-se à pesquisa que resultaria em sua tese de doutorado: o movimento
integralista. Apresentada na Universidade de Paris, em 1971, a tese foi
publicada em português: “Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30”, co-edição entre a Difusão Européia do Livro e a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, São Paulo, 1974. A apresentação do livro é de Georges Lavau, que fez parte da banca examinadora. Apesar de que as
opções ideológicas tenham colocado os dois em campos opostos, o livro de Helgio
integrou a Coleção Corpo e Alma do Brasil, dirigida por Fernando Henrique
Cardoso.
Poucos anos depois, Helgio apresentaria detalhes
metodológicos e comentaria como estruturou o seu trabalho no artigo “Tentativa
de Reconstituição Empírica de um Movimento Político Radical”, publicado em “A
Aventura Sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa
social”, organizado por Edson de Oliveira Nunes. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1978.
Nas conversas informais Helgio contava alguma coisa a
respeito da pesquisa. Seu trabalho como pesquisador levou a que alguns
ex-integralistas acreditassem que se tratava de alguma iniciativa para
recuperar e reativar o movimento. Ele ganhou muitos mimos: publicações, faixas,
bottons, etc. Por outro lado, encontrou também alguns percalços, quer dos que
se recusavam terminantemente a participar da entrevista, quer dos que cuja
participação na pesquisa era vetada pela esposa. Em um destes casos, conta
Helgio que, já tendo marcado a entrevista, dirigiu-se na hora marcada para a
casa do cidadão. Foi recebido pela esposa que o colocou porta afora, gritando que
ele não iria novamente levar o seu marido para outra aventura política. Helgio
retirou-se conformado, mas, antes de chegar à primeira esquina, o cidadão que
seria entrevistado veio correndo atrás dele e marcou horário em um local onde
não pudesse ser importunado pela esposa.
Havia uma alta carga emocional nesta tarefa de entrevistar
ex-dirigentes e ex-integrantes do movimento. Cheguei a vivenciar alguns
exemplos. Pouco tempo depois de ter concluído o curso de graduação, fui para
Belo Horizonte, selecionado para o curso de mestrado em Ciência Política, da
Universidade Federal de Minas Gerais. Neste momento Helgio já estava com seu
trabalho praticamente concluído. Nada obstante, solicitou-me que realizasse
algumas entrevistas de controle com ex-integrantes do movimento, a partir de
uma lista de nomes que ele conseguiu. Fui atendido em todas as solicitações de
entrevista, mesmo tendo, na ocasião, um biótipo desfavorável: era jovem, usava
cabelo razoavelmente comprido, e possuía um carregado sotaque sulista. Pois,
apesar da dificuldade de um estranho entrar na casa de uma família mineira,
sempre fui bem recebido. Um caso, porém, foi marcante. Marquei dia e horário
para a entrevista, que seria à noite. Na parte da manhã telefonei para
confirmar e ninguém atendeu. Pelo sim pelo não compareci no horário combinado.
A esposa do cidadão recebeu-me à porta e me convidou imediatamente a entrar e
esperar na biblioteca. Aí ele apareceu visivelmente abatido. Perguntei se ele
gostaria de manter a entrevista. Disse que sim, que gostaria de falar sobre o
movimento, porque isto contribuiria para ele esquecer um pouco o seu drama
pessoal: seu pai havia falecido na véspera e durante o dia ele estava ocupado
encarregado das exéquias. Constrangido, aventei a possibilidade de deixar a
entrevista para outra ocasião ou mesmo suspendê-la. Ele fez questão de manter o
compromisso, que foi denso pela situação emocional em que fez seu depoimento.
Acho que isto demonstra o fervor e a dedicação que aqueles homens ainda tinham
com o movimento integralista.
O trabalho como
pesquisador de campo
A tarefa de pesquisador de campo exigia
algum planejamento, qualquer descuido e tudo ia água abaixo. Uma vez, para ir a um determinado bairro um pouco distante,
precisei ir para o centro da cidade e de lá pegar um ônibus. Fi-lo. Depois de
estar rodando um certo tempo, desconfiei do entorno que via pela janela e
resolvi perguntar para onde estava indo. Havia me enganado de ônibus e o
destino não era o que eu precisava. Até voltar para o centro foi-se a maior
parte da manhã e a perda do turno de trabalho.
Como é sabido pelo pessoal da
área, a possibilidade de ser bem recebido era maior nos bairros de classe mais
baixa. Nos de classe alta a própria receptividade era muito pequena e difícil
(isto naqueles tempos, imagine-se hoje). Foi em um deles que tive um único
percalço, o de ter sido atacado por um cachorro. Sem danos, contudo. Mas foi de
uma pesquisa sobre hábitos de consumo, patrocinada pela Fundação Getúlio
Vargas, que guardo as melhores lembranças. Conto duas, ambas situadas em bairros
da periferia.
A pesquisa era chatíssima,
indagava-se quantos quilos de arroz a família tinha comprado na semana, quantos
de feijão, o preço de cada produto e o que aquilo representava no orçamento doméstico, etc. e tal. Em algumas das amostragens era aplicado um questionário mais completo, aborrecidíssimo. Enfim... Em um bairro paupérrimo, em uma residência
idem, onde, com muita gentileza, me indicaram para sentar um banquinho de
madeira, um dos raros móveis da casa, terminada a entrevista a dona da casa me
ofereceu um café com uma merenda, uns doces variados até que muito bem apresentados.
Mas, quando ela ofereceu e viu que eu estava com uma certa relutância, resolveu
me tranquilizar: “moço, não se preocupe, é tudo de boa procedência, meu marido
trabalha como motorista do carro de entrega de uma padaria”.
De outra feita, vou também a uma
residência pouco mais do que um barraco. A moradora era uma velhinha
encarquilhada. Cheguei e apresentei minha cantilena sobre a pesquisa. Aí ela me
disse: “moço, não entendi nadinha do que o senhor falou, mas o senhor falou em
Getúlio Vargas, ele foi um presidente muito bom para os pobres, eu gostava
muito dele e por isso vou lhe atender e o senhor pode me perguntar o que
quiser”.
Brasil, zil, zil.
-oO)(Oo-
3 comentários:
Não me lembro de ter sido aluna do Hélgio. Ele deve ter sido teu professor no bacharelado. Fui conhecê-lo quando foi Reitor da UFRGS.
Vejo que conviveste muito com ele e a amizade se mantém. Isto é muito bom.
Quanto ao teu trabalho como entrevistador, eu não sabia. Deve ter sido após 1967, quando vim residir em Canoas e a gente já não convivia tanto, como nos primeiros tempos de Faculdade.
ALEM DE BONITO HELGIO ERA BOM PROFESSOR
E tinha um sonho: UMA UNIVERSIDADE ABERTA PARA TODOS! NUNCA FALOU EM COTAS PARA NEGROS! O TODOS OS INCLUIAM!ATE TINHAMOS UM COLEGA NEGRO BONITAO E QUE NO INTERVALO DAŠ AULAS COSTUMAVA FICAR RODEADO DAŠ COLEGAS SEM NENHUM PRECONCEITO! HOJE A UFGRS ĆOMO AS DEMAIS ESTAO CERCADAS DE GRADES E AS TAIS COTAS NAO RESOLVERAM O PROBLEMA!
Grande prof. Tadeu,
Estou aqui para dar um grande olá. Como andam as coisas?
Abraços Daniel
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