sábado, 28 de julho de 2012

UM GRANDE MESTRE E UM APRENDIZ DE CONSELHEIRO (Porto Alegre – Parte XIII)


Nossos inesquecíveis professores (4): os professores de Ciência Política – José Antônio Giusti Tavares

Conforme já contei, prestei muita ajuda aos professores na datilografia de textos. A situação que mais me atraía era quando chamado pelo Prof. Tavares. Isto porque o convite sempre era acompanhado de um almoço, um lanche ou um jantar, situações potencializadas pelas excepcionais qualidades culinárias de sua esposa, Élida, chamada por ele carinhosamente de “Brotinho”. Tavares me chamava para datilografar suas traduções do italiano e suas conferências. Mesmo não sendo um especialista no ramo, traduzia do italiano excepcionalmente bem. Conseguira algumas curiosidades, como long-plays com discursos de Benito Mussolini. No intervalo para descanso, após as refeições, colocava em sua vitrola discos de música clássica. O que, naqueles tempos, era uma experiência um pouco trabalhosa pela necessidade de estar trocando os discos. Certa feita, após o almoço colocou a Nona Sinfonia de Beethoven, que consistia de dois discos de vinil, quatro lados portanto. Acostumado a sestear, precisei de um esforço hercúIeo para ficar de olhos abertos e ouvidos atentos. Esta sinfonia, a mais longa delas, com 74 minutos, serviu de parâmetro para o desenvolvimento do CD, cuja dimensão (12 centímetros de diâmetro) foi escolhida para poder comportar toda a Nona Sinfonia.

Tavares deve ter sido um dos nossos professores onde as ambivalências e as perturbações do lado humano mais se sobressaíam. Na época em que foi nosso professor, antes portanto de ter deslanchado sua formação pós-graduada, vivia obcecado com a tentativa de formular uma hipótese inovadora no campo da teoria política. Costumava me perguntar: “o que achas, caríssimo?” Pobre de mim, não tinha bagagem suficiente para avaliar se a proposição era algo inovador ou não. Sempre respondia que me parecia bom. No dia seguinte, Tavares aparecia contrariado: “pensei que estava criando algo novo, depois me dei conta de que isto estava em uma passagem do livro do Carl Friedrich”. Mas ia em frente. Lembrava um personagem de Machado de Assis, o maestro Pestana (do conto “Um Homem Célebre”) que passou a vida inteira tentando criar uma música clássica que fosse inédita, mas só conseguia criar polcas, pelo menos todas de grande aceitação popular; de vez em quando achava que estava no caminho certo, até a esposa lembrar “isto é Chopin”. Assim foi até o fim da vida. Tavares teve sorte distinta. Depois que deslanchou, após a pós-graduação, nunca mais precisou compor polcas.


Tavares e eu - o mestre e o aprendiz (Caxambu - MG, 1995) 

Ainda em começo de carreira, como professor assistente de tempo parcial, Tavares precisava melhorar o orçamento com outras atividades didáticas. Lecionava História em um colégio de segundo grau. Conhecendo seu dia-a-dia, sua rotina, perguntei em que horário ele preparava aula para estas turmas. Porque era evidente que ele não tinha esta preocupação. Contou-me que ia pensando na aula enquanto dirigia. Ao chegar em classe, praticava o que chamava de “terrorismo cultural”: propunha uma questão que chocasse pelo inusitado. Depois desenvolvia o tema que já tinha esboçado.  Uma estratégia assemelhada era utilizada pelo Prof. Laudelino, de Sociologia. Velho mestre, não muito longe da aposentadoria, não se preocupava em gastar mais tempo com o preparo das aulas. Já sabia tudo. Só precisava se situar. Assim, todo começo de aula, ele andava de um lado para outro e de repente apontava para um de nós e perguntava bem devagarinho, escandindo as palavras: “De que matéria estivemos tratando na última aula?” Este estratagema funcionava. Antes da aula a gente procurava relembrar o assunto anterior para não ser pego de surpresa.  Enquanto o coitado do aluno tartamudeava sua resposta (no caso das sabichonas da classe elas deitavam e rolavam), o Prof. Laudelino colocava as engrenagens para funcionar e de imediato já sabia o que deveria desenvolver naquele dia.

Para os estudantes do segundo grau Tavares também não se preocupava muito em gastar tempo atribuindo nota. Distribuía notas meio pelo jeitão do aluno. Frequentemente ele atribuía a nota na hora de anunciar o resultado, comunicando para toda a classe. Uma ocasião pisou em falso: anunciou “fulano, nota oito”. Os outros alunos reclamaram: “professor, ele  cancelou a disciplina no mês passado”. Tavares não se deu por achado: “sei disso, apenas lembrei dele e quis lhe fazer uma homenagem”.

As tarefas que mais cansam o professor são o preparo das aulas e a avaliação dos alunos. O preparo das aulas é inescapável, não tem jeito. Mas na hora de avaliar é complicado. Complicado nas áreas de ciências humanas, com respostas discursivas; não é a mesma coisa que avaliar uma prova de matemática ou estatística. Gasta-se muito tempo se a coisa for feita de forma criteriosa, comentando respostas e dando orientações. De um modo geral, tem quem avalie de modo mais frouxo e tem quem ache prazer em dissecar toda a prova e criticar até um mau uso das vírgulas pelo aluno.

Estes registros referem-se apenas ao tempo de convívio durante o curso. Posteriormente ele obteve sua formação pós-graduada, conseguindo os títulos de Mestre em Ciência Política, pela Universidade Federal de Minas Gerais, e depois Doutor em Ciência Política. Foi Pesquisador Associado no Centre d’Études de Recherches Internationales, Fondation  Nationale des Sciences Politiques, em Paris; Guest Scholar e Visiting Fellow do Helen Kellogg Institute for International Studies, Notre Dame University, em Indiana, Estados Unidos. Prolífico escritor, é autor de inúmeros artigos científicos e dos seguintes livros: “A Estrutura do Autoritarismo Brasileiro”, “Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas – Teoria, Instituições, Estratégia”, “Reforma Política e Retrocesso Democrático” e “Representação Política e Governo – J.F. de Assis Brasil Dialogando com os Pósteros”. Além disto, é organizador e coautor de “Totalitarismo Tardio – O Caso do PT”.

Uma foto supimpa

A partir da esquerda: Tavares, Sonia Guimarães, Anita Brumer, Arabela Oliven,
Ruben Oliven, Ilse Scherer-Warren, Tanya Barcellos, Valmiria Piccinini e eu
(Caxambu - MG, 1996)

A foto, registrada por ocasião do 20º Congresso Anual da ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado em Caxambu – MG, em 1996, obedece a uma simetria perfeita: homem – três mulheres – homem – três mulheres – homem. Nela está representada boa parte da intelligentzia gaúcha nas áreas de ciências humanas e sociais: Prof. Tavares (Ciência Política), Sônia Guimarães e Anita Brumer (ambas de Sociologia), Arabela Oliven (Educação), Ruben Oliven (Antropologia), Ilse Scherer-Warren (Sociologia da Universidade Federal de Santa Catarina, mas graduada em Ciências Sociais pela UFRGS), Tanya Barcellos (da FEE – Fundação de Economia e Estatística do RGS) e Valmiria Piccinini (Administração). Compareci como representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, um dos financiadores do evento por meio de suas agências de fomento.

Friedrich Nietzsche

Uma passagem de Friedrich Nietzsche diz que você pode não ser capaz de resolver o seu problema, mas pode ajudar a resolver o problema dos outros. Por razões insondáveis, havia quem achasse que eu tinha uma expressão serena. O próprio Tavares, brilhante intelectualmente mas internamente bastante agitado, me dizia que às vezes estava nervoso, angustiado, mas que quando via meu rosto tranquilo já começava a se acalmar. Por situações certamente parecidas é que vez por outra servi de conselheiro informal para os colegas de pensão.

Um deles, bem apresentado, desde que veio do interior apresentava uma trajetória peculiar: ele não namorava, noivava. Bom moço, estudioso, com futuro brilhante, seguramente era visto como um noivo ideal. Enfim, conseguiu se livrar daqui, dali, mas depois de dois noivados ultimamente estava se sentindo meio encalacrado. Embora sem ter concluído o curso e, portanto, não estar ainda ganhando seu próprio pão, era adorado pela família da noiva. Ele também gostava muito da menina e não tinha coragem de terminar a relação. Mas queria um pouco de sossego até sentar um pouco mais o pé na vida. Costumava me consultar para uma coisa ou outra, até que me pediu um conselho sobre como terminar aquele noivado que já estava lhe sufocando. Não sendo um expert no assunto, resolvi dar um conselho meio na brincadeira para ver se ele procuraria alguém com mais gabarito para opinar. Sugeri que ele tomasse uma bebedeira e assim aparecesse na coisa da noiva. Não precisaria ensaiar nenhum discurso, mesmo porque na hora ele não iria lembrar de nada e era melhor dizer o que lhe desse na tela. O importante é que os pais da noiva iriam ficar chocados com a cena e perceberiam que, afinal, ele não era a maravilha que estavam idealizando e que era bom saber disso antes que as coisas fossem em frente. Dito isto, me despreocupei, porque me pareceu uma idéia tão descabida que obviamente ele iria descartar. Alguns dias depois veio me procurar todo contente para agradecer e dizer que tudo tinha se passado como eu havia sugerido e que, agora, estava finalmente livre. Que coisa...

De outra feita não tive muito êxito. Outro colega de pensão me convidou para ir jantar fora às suas custas. Era o tipo do convite alegremente aceito na hora. Mas, no restaurante, percebi que o colega estava meio tenso, comendo pouco e insistindo para que eu pedisse mais bebida ainda que não estivesse me acompanhando. Percebi que sua intenção era de que eu ficasse meio alegrinho para poder me contar o que estava entalado na sua garganta. Além de normalmente não ser de beber muito, acabei travando. Numa situação daquelas não era possível beber com satisfação. O colega também travou e acabou não me contando nada. Talvez não fosse uma questão de aconselhamento. Ele estava querendo contar alguma coisa que lhe angustiava. Mas provavelmente não tinha coragem de falar com alguém que prestasse atenção e que depois não esquecesse do assunto. Aí ficou por isto mesmo. Mas, pelo resto da vida fiquei imaginando que tipo de situação constrangedora estaria preocupando o colega. Enfim, não se ganha sempre.


-oO)(Oo-

4 comentários:

Rosamaria disse...

Raimundo
Tiveste grandes mestres, mas, sobretudo, fostes um grande aprendiz. Soubeste aproveitar as oportunidades, o que não acontece com aqueles que não tem grande interesse, por isso o teu sucesso.
Ser conselheiro é inerente à pessoa, assim como a expressão serena, isto é só teu.
Um abraço

Marina disse...

Vejo que foste mais privilegiado que eu, pois conviveste mais com nossos mestres e ainda tiveste oportunidade de revê-los, bem como a alguns colegas. As fotos estão ótimas.
Quanto ao aprendiz de conselheiro, acho que deixaste a desejar e pior que o sujeito foi atrás do teu conselho. Coitado. Bom, pelo menos conseguiu terminar o noivado.

ruth wigner disse...

Lembro de Tavares dando aula :-)
Ele era vermelhinho e bando se entusiasmava ficava mais .Ele divagava ao associar fatos historicos e eu fazia um esforco enorme para acompanhar suas associacoes ate que me perdia junto com ele que perdia o fato inicial. COLEGAS indiscretas contavam que certa feita em banca de exame ,sviram no passar as maos nas pernas de colega prof. (Elza? ).Parece que os dois (ambos casados ) namoravam e nao se deram conta que a mesa era alberta na parte inferior o que permitiu maos alunos visualizar o que deveriam ser "carica secretas ".

ruth wigner disse...

Tu que escreves tao bem, deves ter reparado nos meus erros de digitacao. Sou uma analfabeta eletronica mesmo.QUERO ainda acrescentar que o prof. Laudelino era uma pessoa digna, que jamais endedou colegas, que resultasse em cassacoes ao contrario de um outro prof. que o fez sem nenhum prurido. Certa vez, encontrando o prof, Laudelino, falei daš minhas dificuldades para concluir minha dissertacao de mestrado, e ele sabiamente me respondeu: QUEM QUER FAZER O EXCELENTE ACABA NAO FAZENDO NEM O BOM,