sábado, 23 de junho de 2012

O ASSOMBRO DA LUTA PELA VIDA


Das lembranças inocentes às trevas do coração

Todas as pessoas têm algo a contar. Têm a sua história
 e as suas “estórias”. Histórias e estórias saborosas e
 insípidas; doces e amargas; bonitas e feias; alegres e tristes;
 ricas e pobres; agradáveis e desprezíveis.
Moaci Madeira Campos

Antes de abordar as lembranças e histórias dos professores de meu curso universitário, acho oportuno dizer alguma coisa sobre como a memória se manifesta nestes casos. Apresento também o relato de uma situação singular, quando a memória é só o que resta. Gostaria de ser versado na obra de Ivan Izquierdo, argentino, atualmente professor da UFRGS, e um dos maiores especialistas em questões relacionadas à neurobiologia da aprendizagem e da memória, para poder tratar da manifestação das lembranças de uma forma mais criteriosa. Não tenho, porém, esta bagagem acadêmica.

Todo mundo lembra dos seus mestres mais queridos. No entanto, há quem lembre com mais detalhe dos primeiros níveis de ensino, como minha colega Rosamaria Costa, que sabe até hoje o nome dos nossos professores do primário e do ginásio e lembra de cada um. Não é o meu caso, como já demonstrei em minhas escassas lembranças deste período. Acredito que Rosamaria, por morar perto da cidade natal e lá voltar com frequência, tem a memória reavivada por vivências e conversas.

O perfil das minhas lembranças encontra um bom exemplo no livro de onde foi retirada a epígrafe acima, “Reminiscências de um mestre-escola”, de Moaci Madeira Campos, renomado intelectual piauiense. Na obra ele relaciona todos os mestres do primário, mas apenas relaciona; já a partir dos cursos secundário e superior, além de referir-se nominalmente aos seus mestres e contar suas particularidades, ilustra com episódios da época de estudante.  De forma aproximada, minhas lembranças também privilegiam os professores da época de faculdade. No entanto, pareça haver algum consenso sobre a importância e às vezes até predominância das primeiras memórias.  Vou contar uma situação extrema.

Até recentemente, nossa chácara teve como caseiros casais do mesmo perfil: o marido trabalhando em outro emprego e sua mulher registrada como caseira. O primeiro destes casais foi o de seu Abílio e dona Tina (Militina), que criavam o filho Marcelo. Seu Abílio, de personalidade um pouco complicada, algo explosivo e temperamental, sofreu um derrame cerebral fortíssimo. Sobreviveu com muitas sequelas: ficou cego, paralisado de um lado e com forte prejuízo das capacidades motora e mental, isto é, sem condições de se movimentar e sem consciência do que se passava ao redor. Nestas condições ainda viveu 13 anos e seis meses, graças aos bons cuidados que recebeu de esposa e filho.

Sua primeira lição foi o incrível sentimento de sobrevivência, mesmo sem o uso racional de suas faculdades mentais. Quando o hospital verificou que não poderia fazer mais nada por ele, e que internado ficaria uma ocupando uma vaga útil para outros pacientes, pois a fila devia andar, foi despachado para casa com alimentação por sonda. O que era uma coisa complicada. A sonda irritava muito e ele volta e meia usava a mão livre para arrancá-la.



Das primeiras vezes vinha uma ambulância com enfermeiros para recolocar a sonda (o sistema público de saúde do Distrito Federal, apesar de muito precário e problemático felizmente neste caso sempre funcionou de forma eficiente). Pois bem, seu Abílio retira a sonda e a ambulância é chamada. Que veio, mas, como era época de chuva, não conseguiu superar os problemas de nossa ainda sofrível estrada de terra de acesso à chácara. A ambulância deu volta e durante dois dias as condições de tempo não melhoraram e o atendimento não pode ser feito. Diante disto, dona Tina experimentou lhe levar à boca uma colher com comida convencional. Prontamente aceita. A sonda nunca mais foi necessária. Veja-se, assim, como o nosso organismo por si só procura sempre agir no sentido de garantir sua sobrevivência. Sobrevivência como mero organismo vivo, não sobrevivência a partir de considerações intelectuais. O instinto de sobrevivência é, conforme visto, muito forte.

Pois bem, durante todos estes treze anos seu Abílio expressava apenas lembranças de sua infância, eventualmente da juventude. Falando sozinho dizia coisas do tipo “bença, mãe”, “bença, pai”, “mãe, estou com frio”, “mãe, deixa eu deitar com a senhora”... Mencionava o nome dos seus três irmãos, mas não mencionava o nome da mulher e do filho. Uma única vez pronunciou o nome da mulher: “Tina”. Em noites de lua cheia, ficava possesso. Passava a noite inteira gritando e vociferando. Para, evidentemente, ódio dos vizinhos. Vez por outra, notava-se que ele tinha alguma percepção sensorial, como ao virar a cabeça ao ouvir o barulho do motor de nosso carro. Uma gloriosa e saudosa Parati a álcool.


O seu lado sombrio de vez em quando vinha à superfície. Dona Tina conta que quando estava atacado ficava falando “bença, diabo”, “bença, capeta”. João Sales, marido de Sebastiana, caseira que substituiu dona Tina, diz que de vez em quando procurava conversar com seu Abílio, mesmo sabendo que ele não iria responder.  Certa noite, entrou no quarto onde ele estava sentado e buscou conversa. A reação foi inesperada e violenta: “eu vou te matar, eu vou te matar”. Segundo Eric Kandel, neurocientista, ganhador do Prêmio Nobel de 2000 de Medicina pelos estudos sobre o armazenamento da memória no cérebro, “a mente humana é muito complicada e muito dela é irracional, muito dela é o inconsciente que é influenciado por impulsos eróticos e agressivos”. A frase consta de uma entrevista, “As Artes do Cérebro”, publicada no caderno Eu & Fim de Semana, jornal Valor Econômico, 15 a 17/06/2012.

Assim, conforme vimos, no fundo do inconsciente existe um cantinho com algumas trevas que se manifestam quando encontram caminho livre.

As historinhas propriamente ditas sobre os inesquecíveis professores serão apresentadas na próxima postagem.


-oO)(Oo-

4 comentários:

ruth wigner disse...

INTERESSANTE, RAIMUNDO :-)Quando pensei que ia ler sobre nossos ex-professores da Ufrgs već a historia do caseiro, desv io de PENSAMENTO? M eu cunhado tambem costumava retirar a sonda incomoda :-):-)queria morrer? JA QUE SOFRIA tanto?

Marina disse...

Também pensei como a Ruth, que ias falar de nossos professores e fiquei curiosa, por acreditar que lembrarias, quem sabe, de algo que já não me lembro. Mas achei interessante falares da história de teu caseiro e destes "esconderijos" de nosso inconsciente.

Raimundo Tadeu disse...

Pela sua importância, reproduzo o comentário recebido por e-mail do amigo Moura Fe:
"Parabéns Tadeu.
O tema de hoje é mais difícil de analisar no curtíssimo prazo.
Assunto complexo, que acomete muitas pessoas que necessitam de alimentação por sonda, a maioria em estado terminal, mesmo que durem 10 a mais anos. Vejo que você está interessado em recolher informações que levem a esclarecer algo. Isto é bom.
Suas colegas/amigas esperam, no entato, que vc retorne ao assunto das memórias escolares.
Contudo, o caso em pauta, o instinto de sobrevivência, é muito interessante. Posso lembrar casos mais estudados na agricultura, como os mecanismos de sobrevivências das espécies. Exemplos, no semi-árido nordestino, são muitos. O caso do umbuzeiro, uma planta que se veste de flores antes da estação das chuvas para que suas sementes caiam em solo úmido e passam germinar e manter viva a sua espécie. No cerrado, vc pode examinar o caso do Ipê,que também produz suas sementes em tempo hábil para a perpetuação da espécie. Tem muitos exemplos.
A natureza tem suas leis, muitas e põe muitas nisso, ainda estão sendo desvendadas.
Vamos em frente,
Um forte abraço do
Moura Fe"

ruth wigner disse...

LEMBRAS DO JORGE FURTADO?BONACHAO CHEIO DE FILHOS casado com DERCI !ASSISTI UMA FALA DELA NA QUAL CONTOU INDIGNADA QUE QUANDO O PROFESSOR ESTAVA HOSPITALIZADO AS ENFERMEIRAS O CHAMAVAM DE "VOVO"! IMAGINA! ELE DETENTOR DE TANTOS TITULOS UNIVERSITARIOS SER CHAMADO ASIM SIMPLESMENTE! POIS E ELE NO CIRCULO UNIVERSITARIO ERA UM MESTRE OU DOUTOR MAS NO FIM DA VIDA DOENTE APENAS UM VOVO! EU PESSOALMENTE NAO VEJO DEMERITO NENHUM MAS PARA ELA DEVIA SER DOLOROSO ADMITIR A DECADENCIA FISICA DAQUELE SEU COMPANHEIRO ADMIRADO POR SEUS FEITOS INTELECTUAIS! PENSO QUE ISTO NOS INCOMODA A TODOS QUANDO PENSAMOS EM DECADENCIA FISICA OU MENT AL!E QUE FAZER? CURTIR O MOMENTO PRESENTE SEM SEMELHANTE PREOCUPACAO?