Nossos inesquecíveis
professores (1): o folclore dos operários da construção
Em qualquer curso de nível
superior existem disciplinas centrais e aquelas que ajudam a compor o
currículo. Para relembrar: trata-se aqui do Curso de Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, década de
60. O curso, na época, possuía três áreas de concentração: Sociologia, Ciência
Política e Antropologia. Optei pelas duas primeiras. Os professores que aqui
serão abordados lecionavam disciplinas que não pertenciam ao núcleo central e
constituíam aquele abnegado segmento encarregado de colocar os tijolos básicos
de nossa construção. Pelo teor das historinhas, nenhum dos professores é
identificado.
O professor de Economia, prestes a aposentar, estava
visivelmente enfadado com a vida. Vivia no piloto automático. O negócio é o
seguinte: professor prepara um curso com afinco na primeira vez; na segunda,
faz os ajustes necessários; dali para diante vai no piloto automático. Claro
que isto é mais fácil em disciplinas cujo conteúdo não muda, como matemática,
estatística. Nas áreas das ciências sociais é muito mais complicado porque como
não se trata de um conhecimento consolidado e definitivo, é preciso estar
sempre atualizado com novas pesquisas e novos enfoques conceituais. Mas nosso
mestre literalmente ditava suas aulas. As anotações estavam em fichas
manuscritas. Um belo dia se superou. Estava ditando uma fichinha quando de
repente parou, pensou um pouquinho e pediu: “deixem
um espaço em branco porque não estou reconhecendo minha própria letra”. O
cansado guerreiro não se dava mais nem ao trabalho de um pequeno improviso. Não
reconhecera apenas uma palavra...
Outro professor que ditava aulas era o de História
Econômica. Adjunto do titular, muito inteligente, trazia todo o conteúdo de
suas aulas transcrito em folhas grandes que passava a aula inteira lendo. Eu
ficava inconformado porque, afinal, ele era jovem e visivelmente entendia do
assunto. Um dia, conversando em um intervalo, perguntei porque ele usava aquele
procedimento. Contou que antes lecionava de forma normal, mas acabou tendo uns
probleminhas com a área de segurança por conta de uns comentários que havia
feito. E isto que não se tratava de nenhum radical... Por precaução, passou a
escrever as aulas antecipadamente e a ler o texto porque assim eliminaria a
possibilidade de novamente fazer algum comentário que lhe fosse prejudicial,
além de ter uma comprovação do que foi dito.
Foi em sua disciplina que certa vez aconteceu o seguinte
episódio. O professor tinha marcado um trabalho em grupo. Mas, como meu grupo
só tinha despreocupados, faltando um dia para a apresentação do trabalho não
tínhamos produzido nada. O esquema de emergência foi o seguinte: um dos colegas
do grupo era padre jesuíta que conseguiu uma sala à noite no Colégio Anchieta, quando
não havia atividade didática, com máquina de escrever à disposição. Como a
situação era de emergência a solução também tinha de ser. Resolvi que não iria
fazer sozinho nenhuma pesquisa exaustiva. Optei por datilografar praticamente
na íntegra um artigo de Celso Furtado sobre a fase da economia do café,
publicado na Revista Civilização Brasileira. Naturalmente modifiquei o título e
subtítulos e fiz leves retoques nas frases para tornar o texto mais, digamos,
coloquial. Um trabalho de alfaiataria literária. Datilografado, o trabalho
ficou bonitinho. Mas havia um grande risco. Não por parte do professor, que
provavelmente não conhecia o texto de Furtado por razões ideológicas, e que
certamente daria nota pelo jeitão do trabalho. O risco eram os colegas. Como os
trabalhos tinham que ser lidos parcialmente para toda a classe e depois comentados,
ainda que superficialmente, era grande a chance de que alguém conhecesse aquele
texto e falasse alguma coisa a respeito; nestas horas não se pode confiar
inteiramente na solidariedade coletiva e além do mais era preciso preservar a
honra. Assim, na hora da apresentação, eu, que leria nosso texto, estava meio
inquieto, esperando ser chamado para enfrentar o matadouro. Aí surgiu uma
oportunidade inesperada que aproveitei na mesma hora. Um dos grupos era só de
meninas, felizmente todas muito tímidas, e que, na ausência da escolhida para
relatora, estavam com vergonha de ler o seu trabalho para os colegas. Tive a
idéia de me oferecer para ler o trabalho delas. Como todas concordaram e o
professor também, assim foi feito. Aí, quando chegou a nossa vez, não precisei
nem me preocupar: o professor nos dispensou da leitura, já que eu tinha feito a
apresentação do outro trabalho. Resultado: ficamos com nota máxima e com a
honra preservada.
No primeiro dia de aula o professor de Psicologia Social comportou-se
como um artista no palco: chegou de terno escuro e óculos de sombra e ficou um
tempão sentado nos observando, sem dizer nada. Algumas aulas depois, quando já
tínhamos quebrado a barreira inicial, perguntamos o porquê de sua atitude.
Queria apenas observar nossa reação. Coisas da profissão. Contava que tinha
colegas com clínica que faziam de tudo para que os pacientes não identificassem
suas preferências pessoais. Um deles se vestia sempre de cinza. Exemplo de comportamentos
curiosos aparentemente característicos da referida categoria profissional. As
aulas de Psicologia Social resultaram muito interessantes, não só pelo sentido
da disciplina, útil para nós estudantes de sociologia, mas também porque com
frequência desbordava para aspectos de psicologia no sentido lato, como nos momentos
em que o professor interpretava os sonhos relatados por alguma colega. A
disciplina começou com um estranhamento e transformou-se em aulas alegres e festivas.
Mas, como nenhum mestre era de ferro o lado humano acabava
se sobrepondo. Em um dia de prova, o professor estava no estrado meio enfadado.
Não precisava se preocupar com a possibilidade de cola, porque em sociologia ou
em política não adiantava colar, eram questões de aplicação de raciocínio. Quando
terminei minha prova e fui entregar o trabalho, o professor me passa um
dinheiro e pede para ir no barzinho do centro acadêmico comprar um guaraná. O
lance era o seguinte: eu já estava instruído para comprar uma cerveja uruguaia,
de casco igual ao da garrafa de guaraná, e de retirar seu rótulo. E assim foi
feito.
Foi de um professor americano, de origem judaica, que
comprei meu primeiro radinho portátil. O professor esteve um certo tempo em
nosso curso e, antes de voltar para os Estados Unidos, vendeu praticamente tudo
o que tinha, com a óbvia exceção da roupa do corpo. O radinho era lindaço: AM e
FM em um tempo que não tínhamos emissoras transmitindo na frequência de FM. Como
desconhecia o assunto, o professor me explicou corretamente que se tratava de
um tipo de transmissão ainda não disponível em Porto Alegre mas que era o
futuro do rádio. Picardia, nosso colega de pensão entendido no assunto,
explicou de uma forma mais simples: era a faixa em que as emissoras de
televisão transmitiam seu som. Mas a faixa
de frequência das emissoras de TV não é a mesma utilizada pelas rádios. Como em
Porto Alegre elas coincidiam apenas em uma determinada faixa do espectro,
conseguia sintonizar apenas o som de uma ou duas emissoras de TV. Além disso, o
radinho usava bateria, outra novidade na época, mas que era muito cara para o
dia-a-dia de um estudante, obrigando a um uso de forma criteriosa. Fiquei pouco
tempo com o radinho. Certa ocasião, quando estava hospedado no apartamento de
um colega, uns garotos fizeram uma limpa levando roupas e o que puderam pegar,
incluindo meu radinho. Foi-se, mas deixou saudades. Mesmo sem nunca ter sido
usado em sua finalidade precípua de receber sinais de rádios FM.
E
la nave va...
Enquanto a
vida universitária seguia seu curso, a vida em nossa pensão também. Futebol,
nas quadras da Praça da Redenção, era a diversão preferida dos fins de semana.
Abaixo uma lembrança deste período.
Em cima, o primeiro à esquerda era Carlos Zen, depois o “Doutor” e então ”Picardia” (de quem já falei antes, na postagem Paralelo 30 Brasileiro, início da série sobre porto Alegre). Embaixo, sou o terceiro da esquerda para a direita.
-oO)(Oo-