sábado, 30 de junho de 2012

NOS BANCOS ESCOLARES DA UNIVERSIDADE (Porto Alegre – Parte X)


Nossos inesquecíveis professores (1): o folclore dos operários da construção

Em qualquer curso de nível superior existem disciplinas centrais e aquelas que ajudam a compor o currículo. Para relembrar: trata-se aqui do Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, década de 60. O curso, na época, possuía três áreas de concentração: Sociologia, Ciência Política e Antropologia. Optei pelas duas primeiras. Os professores que aqui serão abordados lecionavam disciplinas que não pertenciam ao núcleo central e constituíam aquele abnegado segmento encarregado de colocar os tijolos básicos de nossa construção. Pelo teor das historinhas, nenhum dos professores é identificado.


O professor de Economia, prestes a aposentar, estava visivelmente enfadado com a vida. Vivia no piloto automático. O negócio é o seguinte: professor prepara um curso com afinco na primeira vez; na segunda, faz os ajustes necessários; dali para diante vai no piloto automático. Claro que isto é mais fácil em disciplinas cujo conteúdo não muda, como matemática, estatística. Nas áreas das ciências sociais é muito mais complicado porque como não se trata de um conhecimento consolidado e definitivo, é preciso estar sempre atualizado com novas pesquisas e novos enfoques conceituais. Mas nosso mestre literalmente ditava suas aulas. As anotações estavam em fichas manuscritas. Um belo dia se superou. Estava ditando uma fichinha quando de repente parou, pensou um pouquinho e pediu: “deixem um espaço em branco porque não estou reconhecendo minha própria letra”. O cansado guerreiro não se dava mais nem ao trabalho de um pequeno improviso. Não reconhecera apenas uma palavra...


Outro professor que ditava aulas era o de História Econômica. Adjunto do titular, muito inteligente, trazia todo o conteúdo de suas aulas transcrito em folhas grandes que passava a aula inteira lendo. Eu ficava inconformado porque, afinal, ele era jovem e visivelmente entendia do assunto. Um dia, conversando em um intervalo, perguntei porque ele usava aquele procedimento. Contou que antes lecionava de forma normal, mas acabou tendo uns probleminhas com a área de segurança por conta de uns comentários que havia feito. E isto que não se tratava de nenhum radical... Por precaução, passou a escrever as aulas antecipadamente e a ler o texto porque assim eliminaria a possibilidade de novamente fazer algum comentário que lhe fosse prejudicial, além de ter uma comprovação do que foi dito.

Foi em sua disciplina que certa vez aconteceu o seguinte episódio. O professor tinha marcado um trabalho em grupo. Mas, como meu grupo só tinha despreocupados, faltando um dia para a apresentação do trabalho não tínhamos produzido nada. O esquema de emergência foi o seguinte: um dos colegas do grupo era padre jesuíta que conseguiu uma sala à noite no Colégio Anchieta, quando não havia atividade didática, com máquina de escrever à disposição. Como a situação era de emergência a solução também tinha de ser. Resolvi que não iria fazer sozinho nenhuma pesquisa exaustiva. Optei por datilografar praticamente na íntegra um artigo de Celso Furtado sobre a fase da economia do café, publicado na Revista Civilização Brasileira. Naturalmente modifiquei o título e subtítulos e fiz leves retoques nas frases para tornar o texto mais, digamos, coloquial. Um trabalho de alfaiataria literária. Datilografado, o trabalho ficou bonitinho. Mas havia um grande risco. Não por parte do professor, que provavelmente não conhecia o texto de Furtado por razões ideológicas, e que certamente daria nota pelo jeitão do trabalho. O risco eram os colegas. Como os trabalhos tinham que ser lidos parcialmente para toda a classe e depois comentados, ainda que superficialmente, era grande a chance de que alguém conhecesse aquele texto e falasse alguma coisa a respeito; nestas horas não se pode confiar inteiramente na solidariedade coletiva e além do mais era preciso preservar a honra. Assim, na hora da apresentação, eu, que leria nosso texto, estava meio inquieto, esperando ser chamado para enfrentar o matadouro. Aí surgiu uma oportunidade inesperada que aproveitei na mesma hora. Um dos grupos era só de meninas, felizmente todas muito tímidas, e que, na ausência da escolhida para relatora, estavam com vergonha de ler o seu trabalho para os colegas. Tive a idéia de me oferecer para ler o trabalho delas. Como todas concordaram e o professor também, assim foi feito. Aí, quando chegou a nossa vez, não precisei nem me preocupar: o professor nos dispensou da leitura, já que eu tinha feito a apresentação do outro trabalho. Resultado: ficamos com nota máxima e com a honra preservada.


No primeiro dia de aula o professor de Psicologia Social comportou-se como um artista no palco: chegou de terno escuro e óculos de sombra e ficou um tempão sentado nos observando, sem dizer nada. Algumas aulas depois, quando já tínhamos quebrado a barreira inicial, perguntamos o porquê de sua atitude. Queria apenas observar nossa reação. Coisas da profissão. Contava que tinha colegas com clínica que faziam de tudo para que os pacientes não identificassem suas preferências pessoais. Um deles se vestia sempre de cinza. Exemplo de comportamentos curiosos aparentemente característicos da referida categoria profissional. As aulas de Psicologia Social resultaram muito interessantes, não só pelo sentido da disciplina, útil para nós estudantes de sociologia, mas também porque com frequência desbordava para aspectos de psicologia no sentido lato, como nos momentos em que o professor interpretava os sonhos relatados por alguma colega. A disciplina começou com um estranhamento e transformou-se em aulas alegres e festivas.


Mas, como nenhum mestre era de ferro o lado humano acabava se sobrepondo. Em um dia de prova, o professor estava no estrado meio enfadado. Não precisava se preocupar com a possibilidade de cola, porque em sociologia ou em política não adiantava colar, eram questões de aplicação de raciocínio. Quando terminei minha prova e fui entregar o trabalho, o professor me passa um dinheiro e pede para ir no barzinho do centro acadêmico comprar um guaraná. O lance era o seguinte: eu já estava instruído para comprar uma cerveja uruguaia, de casco igual ao da garrafa de guaraná, e de retirar seu rótulo. E assim foi feito.

Foi de um professor americano, de origem judaica, que comprei meu primeiro radinho portátil. O professor esteve um certo tempo em nosso curso e, antes de voltar para os Estados Unidos, vendeu praticamente tudo o que tinha, com a óbvia exceção da roupa do corpo. O radinho era lindaço: AM e FM em um tempo que não tínhamos emissoras transmitindo na frequência de FM. Como desconhecia o assunto, o professor me explicou corretamente que se tratava de um tipo de transmissão ainda não disponível em Porto Alegre mas que era o futuro do rádio. Picardia, nosso colega de pensão entendido no assunto, explicou de uma forma mais simples: era a faixa em que as emissoras de televisão transmitiam seu som.  Mas a faixa de frequência das emissoras de TV não é a mesma utilizada pelas rádios. Como em Porto Alegre elas coincidiam apenas em uma determinada faixa do espectro, conseguia sintonizar apenas o som de uma ou duas emissoras de TV. Além disso, o radinho usava bateria, outra novidade na época, mas que era muito cara para o dia-a-dia de um estudante, obrigando a um uso de forma criteriosa. Fiquei pouco tempo com o radinho. Certa ocasião, quando estava hospedado no apartamento de um colega, uns garotos fizeram uma limpa levando roupas e o que puderam pegar, incluindo meu radinho. Foi-se, mas deixou saudades. Mesmo sem nunca ter sido usado em sua finalidade precípua de receber sinais de rádios FM.

E la nave va...

Enquanto a vida universitária seguia seu curso, a vida em nossa pensão também. Futebol, nas quadras da Praça da Redenção, era a diversão preferida dos fins de semana. Abaixo uma lembrança deste período.



Em cima, o primeiro à esquerda era Carlos Zen, depois o “Doutor” e então ”Picardia” (de quem já falei antes, na postagem Paralelo 30 Brasileiro, início da série sobre porto Alegre). Embaixo, sou o terceiro da esquerda para a direita.

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sábado, 23 de junho de 2012

O ASSOMBRO DA LUTA PELA VIDA


Das lembranças inocentes às trevas do coração

Todas as pessoas têm algo a contar. Têm a sua história
 e as suas “estórias”. Histórias e estórias saborosas e
 insípidas; doces e amargas; bonitas e feias; alegres e tristes;
 ricas e pobres; agradáveis e desprezíveis.
Moaci Madeira Campos

Antes de abordar as lembranças e histórias dos professores de meu curso universitário, acho oportuno dizer alguma coisa sobre como a memória se manifesta nestes casos. Apresento também o relato de uma situação singular, quando a memória é só o que resta. Gostaria de ser versado na obra de Ivan Izquierdo, argentino, atualmente professor da UFRGS, e um dos maiores especialistas em questões relacionadas à neurobiologia da aprendizagem e da memória, para poder tratar da manifestação das lembranças de uma forma mais criteriosa. Não tenho, porém, esta bagagem acadêmica.

Todo mundo lembra dos seus mestres mais queridos. No entanto, há quem lembre com mais detalhe dos primeiros níveis de ensino, como minha colega Rosamaria Costa, que sabe até hoje o nome dos nossos professores do primário e do ginásio e lembra de cada um. Não é o meu caso, como já demonstrei em minhas escassas lembranças deste período. Acredito que Rosamaria, por morar perto da cidade natal e lá voltar com frequência, tem a memória reavivada por vivências e conversas.

O perfil das minhas lembranças encontra um bom exemplo no livro de onde foi retirada a epígrafe acima, “Reminiscências de um mestre-escola”, de Moaci Madeira Campos, renomado intelectual piauiense. Na obra ele relaciona todos os mestres do primário, mas apenas relaciona; já a partir dos cursos secundário e superior, além de referir-se nominalmente aos seus mestres e contar suas particularidades, ilustra com episódios da época de estudante.  De forma aproximada, minhas lembranças também privilegiam os professores da época de faculdade. No entanto, pareça haver algum consenso sobre a importância e às vezes até predominância das primeiras memórias.  Vou contar uma situação extrema.

Até recentemente, nossa chácara teve como caseiros casais do mesmo perfil: o marido trabalhando em outro emprego e sua mulher registrada como caseira. O primeiro destes casais foi o de seu Abílio e dona Tina (Militina), que criavam o filho Marcelo. Seu Abílio, de personalidade um pouco complicada, algo explosivo e temperamental, sofreu um derrame cerebral fortíssimo. Sobreviveu com muitas sequelas: ficou cego, paralisado de um lado e com forte prejuízo das capacidades motora e mental, isto é, sem condições de se movimentar e sem consciência do que se passava ao redor. Nestas condições ainda viveu 13 anos e seis meses, graças aos bons cuidados que recebeu de esposa e filho.

Sua primeira lição foi o incrível sentimento de sobrevivência, mesmo sem o uso racional de suas faculdades mentais. Quando o hospital verificou que não poderia fazer mais nada por ele, e que internado ficaria uma ocupando uma vaga útil para outros pacientes, pois a fila devia andar, foi despachado para casa com alimentação por sonda. O que era uma coisa complicada. A sonda irritava muito e ele volta e meia usava a mão livre para arrancá-la.



Das primeiras vezes vinha uma ambulância com enfermeiros para recolocar a sonda (o sistema público de saúde do Distrito Federal, apesar de muito precário e problemático felizmente neste caso sempre funcionou de forma eficiente). Pois bem, seu Abílio retira a sonda e a ambulância é chamada. Que veio, mas, como era época de chuva, não conseguiu superar os problemas de nossa ainda sofrível estrada de terra de acesso à chácara. A ambulância deu volta e durante dois dias as condições de tempo não melhoraram e o atendimento não pode ser feito. Diante disto, dona Tina experimentou lhe levar à boca uma colher com comida convencional. Prontamente aceita. A sonda nunca mais foi necessária. Veja-se, assim, como o nosso organismo por si só procura sempre agir no sentido de garantir sua sobrevivência. Sobrevivência como mero organismo vivo, não sobrevivência a partir de considerações intelectuais. O instinto de sobrevivência é, conforme visto, muito forte.

Pois bem, durante todos estes treze anos seu Abílio expressava apenas lembranças de sua infância, eventualmente da juventude. Falando sozinho dizia coisas do tipo “bença, mãe”, “bença, pai”, “mãe, estou com frio”, “mãe, deixa eu deitar com a senhora”... Mencionava o nome dos seus três irmãos, mas não mencionava o nome da mulher e do filho. Uma única vez pronunciou o nome da mulher: “Tina”. Em noites de lua cheia, ficava possesso. Passava a noite inteira gritando e vociferando. Para, evidentemente, ódio dos vizinhos. Vez por outra, notava-se que ele tinha alguma percepção sensorial, como ao virar a cabeça ao ouvir o barulho do motor de nosso carro. Uma gloriosa e saudosa Parati a álcool.


O seu lado sombrio de vez em quando vinha à superfície. Dona Tina conta que quando estava atacado ficava falando “bença, diabo”, “bença, capeta”. João Sales, marido de Sebastiana, caseira que substituiu dona Tina, diz que de vez em quando procurava conversar com seu Abílio, mesmo sabendo que ele não iria responder.  Certa noite, entrou no quarto onde ele estava sentado e buscou conversa. A reação foi inesperada e violenta: “eu vou te matar, eu vou te matar”. Segundo Eric Kandel, neurocientista, ganhador do Prêmio Nobel de 2000 de Medicina pelos estudos sobre o armazenamento da memória no cérebro, “a mente humana é muito complicada e muito dela é irracional, muito dela é o inconsciente que é influenciado por impulsos eróticos e agressivos”. A frase consta de uma entrevista, “As Artes do Cérebro”, publicada no caderno Eu & Fim de Semana, jornal Valor Econômico, 15 a 17/06/2012.

Assim, conforme vimos, no fundo do inconsciente existe um cantinho com algumas trevas que se manifestam quando encontram caminho livre.

As historinhas propriamente ditas sobre os inesquecíveis professores serão apresentadas na próxima postagem.


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sábado, 16 de junho de 2012

PREOCUPAÇÕES COM A VIDA ETERNA


A CRISTO S.N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA 

Gregório de Matos



Meu Deus, que estais pendentes de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro;

Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.

Mui grande é vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito,
Espero em vosso amor de me salvar.



Gregório de Matos (1636-1695), nascido em Salvador, ficou conhecido pela alcunha “Boca do Inferno”, por conta de seus poemas satíricos e pelas críticas à Igreja Católica. Nada obstante, é considerado o maior poeta barroco do Brasil. Tinha alguns momentos de reconciliação com a fé católica, como o presente poema, e "A NSJC com actos de arrependido e suspiros de amor", "Buscando a Cristo", além de outros mais. Ou seja, de vez em quando tinha umas recaídas. Atualmente seria considerado portador de transtorno bipolar em questões de fé.


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sexta-feira, 8 de junho de 2012

A SUSTENTABILIDADE DO PADIM CIÇO


Próximos à realização da Rio +20, Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável,  que discutirá uma agenda do desenvolvimento sustentável para as próximas décadas, surpreende ver o que pensava a respeito o Padre Cícero (1844-1934). Cícero Romão Batista, o Padim Ciço cearense, objeto de devoção e romarias, reverenciado como santo milagreiro, foi também proprietário de terras e gado, tendo participado ativamente da vida política: foi Prefeito de Juazeiro do Norte, vice-Governador do Ceará e elegeu-se deputado federal, embora não tenha assumido o cargo. Esta participação na vida política refletia também sua preocupação com as condições de vida da população mais pobre. Abaixo estão transcritas suas recomendações para um desenvolvimento sustentável do sertão. Surpreende ver o acerto e a atualidade destes conselhos.

 
Padre Cícero aos oitenta anos

Padre Cícero já dizia como guardar e preservar a água e o sertão:

1.      “Não derrube o mato, nem mesmo um só pé de pau.
2.      Não toque fogo no roçado nem na caatinga.
3.      Não cace mais e deixe os bichos viverem.
4.      Não crie o boi nem o bode soltos; faça roçados e deixe o pasto descansar para se refazer.
5.      Não plante em serra acima nem faça roçado em ladeira muito em pé: deixe o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza.
6.      Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva.
7.      Represe os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta.
8.      Plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só.
9.     Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar você a conviver com a seca.
10.   Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer.
11.   Mas se não obedecer, dentro de pouco tempo o sertão todo vai virar um deserto só.”

A citação acima foi extraída da “Cartilha do Produtor Orgânico do DF”, Brasília, 2010, publicação do Instituto Universitas em convênio com o Ministério da Ciência e Tecnologia, como resultado do Projeto “Melhoria da Produção e Comercialização de Produtos Orgânicos e do Arranjo Produtivo Local da Agricultura do DF”. A cartilha não informa, porém, a referência bibliográfica da citação nem em que contexto foi apresentada.


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