quarta-feira, 7 de setembro de 2011

NO MEIO DOS JUNCAIS SURGIAM PATOS BAGUAIS (Bagé - Parte IV)



EPISÓDIOS DO COTIDIANO


A trilha sonora da vida em Bagé vinha das rádios. A cidade tinha duas emissoras, a Rádio Difusora e a Rádio Cultura. Dos municípios próximos recebíamos o sinal da rádio de Aceguá e da Rádio Upacaraí, de Dom Pedrito. Mas as novidades musicais vinham mesmo das emissoras porteñas: além da rádio de Melo, no Uruguai, as emissoras argentinas principalmente, como a Rádio Belgrano, de Buenos Aires. Até a propaganda das rádios se incorporava ao nosso cotidiano: como o célebre bordão “chiquititas, pero cumplidoras”, das Pílulas de Vida do Dr. Ross, um laxante. Por conta desta proximidade, o bolero “Alma, Corazón y Vida”, de grande sucesso no Brasil, foi primeiro sucesso em Bagé, tocado por todos os conjuntos musicais, só depois chegando a Porto Alegre e, finalmente, a Rio e São Paulo, quando então alcançou os primeiros lugares das paradas musicais.

Quase 50 anos depois não houve muita mudança nesta situação, típica de regiões fronteiriças. Ao falar sobre o lançamento do disco “Hermanos irmãos” (O Globo, 16/08/2011), que traz canções da região Centro-Oeste, com influências da música paraguaia junto com a tradição dos violeiros de Mato Grosso do Sul, diz Rodrigo Teixeira, um dos responsáveis pelo disco: “Sei que nas grandes cidades litorâneas a música em espanhol não chega muito, mas para nós é normal, convivemos com os paraguaios e pessoas de outros países sul-americanos diariamente”.


Igreja Nossa Senhora da Conceição: a imagem veio de Concepción, em 1870,
presa da Guerra do Paraguai


A experiência na Rádio Difusora de Bagé

Por conta de uma crônica que foi premiada no Colégio Estadual, fui convidado a apresentá-la na Rádio Difusora. Logo em seguida o convite se estendeu para ocupar um espaço dedicado aos estudantes. Devo ter produzido mais umas duas ou no máximo três crônicas. Todas com o senso de justiça sobre os problemas do mundo que qualquer adolescente tem, com absoluta convicção de que se tratava da última verdade sobre o assunto. Felizmente percebi que aquilo não tinha futuro, meu conhecimento dos mistérios da vida ainda era muito incipiente. Optei por ocupar o espaço com a apresentação de notícias sobre o movimento estudantil. Encerrada esta etapa, fui convidado a fazer um estágio informal na rádio (isto é, sem remuneração), monitorado por um dos seus locutores. Resultou sendo uma experiência interessantíssima: trabalhei em dois setores, a organização do horóscopo diário e a preparação de notícias.

A primeira tarefa era simplíssima. A rádio dispunha de um fichário com vários prognósticos. Minha tarefa era semelhante a de embaralhar cartas de baralho: simplesmente passava uma fichinha de um signo para outro. Sugeri dar uma atualizada nas previsões mas não concordaram. Acho que o pessoal da rádio achou que eu pudesse ter uma imaginação delirante, assim melhor não. O padrão das previsões é basicamente sempre o mesmo. De outra parte, ninguém reclamava do “truque”, provavelmente não se davam conta, pois todo mundo só presta atenção no seu próprio signo.

A segunda tarefa era mais trabalhosa. Tratava-se de preparar as notícias que a rádio divulgaria. Naqueles tempos a coisa era bem pedestre:  as informações meteorológicas eram buscadas na  Rádio Nacional de Montevidéu, e as notícias nas rádios do Rio e da Argentina. Depois de copiadas à mão (e tinha que ser rápido porque não havia possibilidade de replay), eu datilografava fichas com as notícias, sempre começando do mesmo modo que as agências noticiosas: “Londres”, “Paris”. A dificuldade da tarefa era maior por conta das condições de recepção do sinal. A escuta frequentemente era precária e exigia atenção. Foi aí que aprendi a não subir o volume. Ao contrário, com o som baixo era possível ouvir melhor. Incorporei esta lição para o resto da vida. Que acabou reforçada no Piauí, quando o meu orientador para assuntos musicais, o maestro Emílio Terraza (argentino professor da UnB e que esteve em Teresina por um bom tempo), recomendava a mesma coisa. O Prof. Terraza tinha uma aparelhagem de som fantástica, mas quando precisava resolver uma dúvida sobre uma determinada passagem sonora, passava o som para uma caixinha bem pequena, diminuía o volume e aproximava o ouvido para perceber melhor.

Enfim, a experiência na Rádio Difusora acabou me valendo muito.


Jogando um bolão

Aproveitando as quadras públicas iluminadas, o que nos permitia jogar à noite, montamos um efêmero time de futebol de salão, “Os Diplomatas”. Ao invés de camiseta, usávamos camisa social e gravata. Uma bobagem, felizmente sepultada pelo bom senso, que às vezes tarda, mas que neste caso manifestou-se cedo.


Monumento em homenagem aos Estados brasileiros
 Praça Silveira Martins


O dia em que quase fui envenenado

Certa noite, andando pela Avenida Sete de Setembro, vi uma cena inesperada: como se duas noivas estivessem andando pela calçada. Eram duas irmãs, minhas conhecidas, que iam a pé para um baile de gala, com vestidos brancos. Paramos um instantinho para conversar. Foi quando notei que uma delas calçava sapatos de pés diferentes. Isto gerou um transtorno de proporções. Como a casa não era perto tiveram que voltar de táxi para, digamos, acertar o passo. Pois, voluntaria ou involuntariamente, a moça do sapato trocado acabou me dando o troco.

Alguns poetas, quanto mais distantes ficam no tempo mais são lembrados por apenas uma ou duas poesias. Foi assim com Alceu Wamosy, poeta gaúcho que morreu cedo, aos 28 anos,  conhecido basicamente pela sua poesia “Duas almas”: “Ó tu que vens de longe, ó tu, que vens cansada, / Entra, e sob este teto encontrarás carinho”. Fazíamos a seguinte paródia: “Ó tu que vens que vens de longe, ó tu, que vens cansada, / Entra, senta e toma limonada”. Tal como se fosse sua versão masculina, vinha eu de longe, cansado, e resolvi fazer um pit-stop na casa de minha colega do sapato trocado para pedir um copo d’água. Prontamente atendido, no primeiro gole tive que cuspir o conteúdo: era querosene. Encabulamento geral, grandes desculpas, até que uma explicação foi encontrada: o pai da jovem guardara a garrafa de querosene junto com a de água. Ninguém percebeu o cheiro diferente e não me dei mal por pouco.

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Pois são estas pequenas experiências as que ficam. Um conhecido, de forte participação em movimentos estudantis e em crítica literária, ao ler um depoimento a seu respeito, onde era lembrado por atirar pipocas nas mocinhas durante as sessões de cinema, ficou indignado: “o sujeito tem uma trajetória de luta, de participação, e acaba marcado por um episódio menor”. Mas é assim mesmo. Os pequenos episódios formam a base de um relacionamento. Muito tempo depois, quando encontramos um conhecido estes assuntos é que são comentados: “te lembras daquela vez?”


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O Analista de Bagé

O Analista de Bagé, de Luis Fernando Verissimo, é conhecido. O que pouca gente sabe, no entanto, é sua gênese, como o personagem foi concebido. 

Em entrevista, Verissimo explica o processo: a sugestão partiu de um personagem que ele havia criado para o Jô Soares apresentar na televisão. Verissimo fazia parte da equipe de redatores do programa. Conta: “Inventei um gaúcho que era garçom num restaurante francês, fino. Era um contraste entre o tipo do gauchão grosso e o restaurante fino. Foi engraçado, a idéia partiu da semelhança da palavra francesa chez e a expressão gaúcha tche. Comecei a imaginar a partir dessa semelhança; idealizei um restaurante com o nome de Tchez, tendo como dono um gaúcho e uma dona francesa. Imaginei que eles teriam se encontrado quando ele estava exilado em Paris. Ao voltarem para o Brasil eles montaram o restaurante. Só que enquanto a francesa oferecia pratos finos, o gaúcho, de tipo grosso, tentava empurrar a comida gaúcha: arroz carreteiro, carne de panela e, como não podia deixar de oferecer, churrasco. Como o quadro foi pouco aproveitado, passei a publicá-lo na minha coluna com algumas modificações: o garçom virou psicanalista e o restaurante um consultório. Seria uma caricatura típica do gaúcho interiorano, grosso, numa profissão que requer muita sensibilidade”

E diz por que escolheu Bagé como naturalidade do analista: “Escolhi Bagé porque é uma cidade que fica na fronteira do Brasil com o Uruguai. Também tem a fama de ser a mais gaúcha das cidades gaúchas. Capital do machismo”.

O Analista recebe os pacientes de bombacha e pé no chão. O divã é forrado com um pelego. Formado na Alemanha e freudiano de carteirinha, para dinamizar as sessões inventou a análise em grupo com gaiteiro, "pra indiada se soltá”. E nos casos mais recalcitrantes aplicava o método do joelhaço, nos países baixos, que fazia o sujeito esquecer de todos os complexos. 

Para relembrar, um pouco do Analista, nos traços de Edgar Vasques:



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LAGO VERDE AZUL



Algumas músicas gauchescas são verdadeiros “hinos”, quer porque abordam de forma brilhante a alma do povo e aspectos do seu comportamento, quer porque retratam características geográficas que simbolizam regiões marcantes. A exemplo de “Guri”, já apresentada aqui, “Querência Amada”, de Teixeirinha, e o “Canto Alegretense”, de Antonio Fagundes e Bagre Fagundes. Assim também “Lago Verde Azul”, de Elmo de Freitas, referente à Lagoa dos Patos, a maior lagoa do mundo. A gravação abaixo foi feita em sua terra natal, Camaquã, durante o programa “Galpão Crioulo”. Camaquã fica na margem direita da Lagoa dos Patos e na margem esquerda do rio Camaquã. Chama a atenção no vídeo a emoção com que Elmo de Freitas canta e a participação integral da platéia. De um modo geral se diz que santo de casa não faz milagre. Mas Elmo fez. Cantar consagrado em sua própria terra deve fazer o coração disparar. O sentimento deve ser indescritível.


Elmo de Freitas – “Lago Verde  Azul”


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Um comentário:

Rosamaria disse...

Eu não sei se tu sabes que o Ricardo Teixeira é filho de uma lavrense, a Maria Lúcia, filha da D. Dezembrina. Fiquei sabendo no Facebook.
Lembro que minha irmã juntava uma turma de primos e amigos (eu metida, claro) e cantávamos as propagandas daquela época. Quando tinha uma nova era aquela festa.
Muito tango dancei com a Tânia, prima que morava conosco, lustrando a casa com panos de lã nos pés, ao som da rádio Belgrano, de Buenos Aires.
Se for comentar cada parágrafo, vou escrever mais do que tu. Só quero dizer mais uma vez da minha admiração e dar os parabéns por teres feito a revolução no teu blog.
Vou levar o Lago Verde Azul pro FB. Adoro esta música!
Um abraço.