sábado, 17 de setembro de 2011

MOCIDADE SE ESPALHA MUITO (Bagé – Parte V)

(O título é retirado de “O vau da vida”, de Ariosto Augusto de Oliveira. São Paulo: Nankin Editora, 2004.)


Política estudantil
 
Do mesmo modo como praticamente todo mundo de minha geração, também participei do movimento estudantil. Para os eventuais leitores interessados em sangue, prisões, torturas, etc., cabe alertar que estas coisas somente vieram a acontecer alguns anos depois. Além disto, minha participação na época foi muito periférica, sem nenhum detalhe escabroso. Ao contrário, talvez os relatos aqui feitos estejam mais adequados para uma coletânea crítica sobre o Pequeno Príncipe. No entanto, para quem quiser aprofundar-se no assunto sugiro consultar a extensa bibliografia indicada no site Memória do Movimento Estudantil: 

Um relato recente e muito interessante de quem teve participação mais ativa é o texto “Rakudianai”, de Persio Arida, publicado na Revista Piauí nº 55, abril de 2011.

A União Bageense dos Estudantes Secundários – UBES, estava ligada à União Gaúcha dos Estudantes Secundários – UGES, esta, por sua vez, ligada à outra UBES – União Brasileira de Estudantes Secundários. As principais orientações, contudo, vinham da entidade que  congregava os universitários: a União Nacional dos Estudantes – UNE.


O movimento estudantil sempre serviu de trampolim político. Para dar alguns exemplos atuais: José Serra, Aldo Rebelo e Lindberg Farias foram dirigentes da UNE. A carteirinha aí de cima foi assinada por Aluizio Paraguasssu Ferreira, presidente da UGES. Posteriormente, Aluizio Paraguassu foi eleito deputado estadual no RGS, pelo MDB, na legislatura de 1971-1975, e deputado federal (MDB/PDT) nas legislaturas de 1975-1979 e 1979-1983.

A participação nos grêmios e associações estudantis foi muito útil, não só para mim como também para vários colegas. Como estávamos longe da família, a experiência representou a complementação de um processo educativo para as coisas da vida. Aprendemos bastante: como administrar os recursos das carteirinhas estudantis, como tratar de questões como aluguel da sede e seu pagamento, etc. e tal. Mais adiante aprendi coisas até inesperadas: como ajeitar-se nas cadeiras para agüentar as intermináveis reuniões e congressos (muito embora a sugestão fosse daquelas de enfartar ortopedista) e como descansar o corpo quando necessário acompanhar em pé cerimônias longas, a exemplo de discursos e do hasteamento da bandeira nacional. Este último macete aprendi com o filho de um ex-prefeito, que o aprendeu com seu pai.

Na calada da noite

Naquele entusiasmo juvenil resolvi participar de uma panfletagem clandestina. Colar alguns cartazes. Sobre o quê, não lembro. Provavelmente alguma campanha para eleição no grêmio estudantil. Eu e outro colega recebemos um curso intensivo de uns 10 minutos. Basicamente duas recomendações: não colar apenas um cartaz no poste, mas vários; no caso de faixa estendida ao ar livre, colocar alguns furos para favorecer a passagem do vento, caso contrário o vento poderia embolsar e rasgar a faixa.

Na noite escolhida lá fomos nós subindo a Av. Sete de Setembro, a principal de Bagé. Eu estava com um terno de risca de giz. Talvez fosse o mais escuro de que dispunha, talvez a noite estivesse meio fria, talvez pelas duas razões. Além do mais, por não ser um figurino típico de panfletário não deveria despertar suspeitas. Meu colega levava os cartazes e eu uma lata tampada cheia de cola. Primeiro tivemos a surpresa de ter termos escolhido a hora errada. Embora de noite, não estávamos na calada da noite, mas à luz da iluminação pública, e o que era para ser um deslocamento subreptício estava sendo feito no meio de muita gente, porque coincidia com a hora de saída dos cursos noturnos. Depois, percebi que muitos dos que passavam olhavam para mim meio espantados. Lá pelas tantas descobri o por quê. A tampa da lata estava meio aberta e a cola escorria pela perna da minha calça, chamando atenção pelo contraste: cola branca em roupa escura. Resumindo: minha primeira e última tentativa de panfletagem clandestina foi um fiasco completo.

A galinha Filomena

Como ninguém é de ferro, estávamos na sede da UBES jogando conversa fora quando passa um caminhão e deixa cair uma galinha. Na mesma hora fomos atrás e conseguimos pegá-la. O senhorio do prédio da entidade concordou em cuidar dela. Por votação, o galináceo recebeu o nome de Filomena. Compramos milho durante duas semanas, para que ganhasse peso. Após o que ela se converteu em uma divertida galinhada para nossa pequena diretoria.

A participação em entidades de representação estudantil



A participação na política estudantil era incentivada pela Igreja Católica, em especial por meio da JEC – Juventude Estudantil Católica e da JUC – Juventude Universitária Católica. Assim, era quase mandatório circularmos com a encíclica Mater et Magister, de João XXIII, debaixo do braço, cujo subtítulo era “A evolução da questão social à luz da doutrina cristã”. A Mater et Magister foi lançada em 1961. O importante não era, obviamente, ter lido a encíclica, mas tê-la como objeto físico. Inclusive por ser o pretexto para as longas conversas intelectualizadas com as colegas mais engajadas. Conversas intelectualizadas e frequentemente cansativas. No começo da década de 60 era comum que o rapaz fosse recebido do lado de fora da casa e que ali ficasse em papos intermináveis. Em pé. Não era, porém, uma regra inflexível. Um dos convites que recebia para entrar e sentar era de uma colega que não queria saber de política, a filha de um grande fazendeiro, que morava em um palacete. Era uma nativista, antes que isto virasse moda, e me tratava por um “tche” tão vigoroso que me deixava até meio assustado.


Os encontros das associações

Como era próprio do relacionamento entre as entidades estudantis, participávamos de alguns encontros fora da cidade sede, regionais e estaduais. Nos encontros regionais tive uma boa experiência e outra nem tanto assim. A boa foi um encontro realizado na cidade do Rio Grande, onde a associação local recebeu os participantes com pompa e circunstância. O ponto mais alto da visita, considerado pelo lado das satisfações vitais de qualquer indivíduo, foi um excepcional almoço oferecido pela Pescal, uma empresa pioneira no congelamento de pescados. O cardápio era uma demonstração das imensas possibilidades culinárias dos frutos do mar e fazia parte das atividades de marketing da empresa. Curiosidade: na época já conhecia o termo marketing, que, segundo o Houaiss, foi justamente no início dos anos 60 que tornou-se de uso corrente no Brasil; vem do latim "mercatus", que significado negócio, mercado.  

O encontro menos glorioso foi em Santana do Livramento. Como as entidades estudantis locais não dispunham de telefone, a comunicação entre elas era feita por telegrama. De modo que na véspera da data aprazada nossa delegação partiu de trem para Livramento. Esta variante da linha férrea foi posteriormente desativada no trecho entre Livramento e Dom Pedrito.  Porém, ao chegarmos em Livramento fomos informados de que o encontro tinha sido cancelado. O telegrama comunicando a suspensão do encontro, como não era de se estranhar muito naqueles tempos, chegou depois de nossa partida. O jeito foi voltarmos no trem seguinte. Apesar do transtorno, entendemos a situação. Não era fácil promover um encontro que congregasse muita gente. Além da questão das refeições, era necessário prover dormitórios e colchões, estes últimos quase sempre solicitados junto a quartéis. 

  

As canções revolucionárias e a inocência

Mesmo sem estarmos vivenciando os anos de chumbo, algumas nuvens negras já começavam a surgir nos céus. Naquele entusiasmo juvenil, nem tudo era considerado na devida proporção. Assim, por exemplo, jovens risonhas e simpáticas cantavam com o maior entusiasmo um versinho revolucionário: “sabãozinho, sabãozinho / de burguês gordinho / toda vil reação / vai virar sabão”. Seguramente a melodia fácil e o apoio do grupo mascaravam o sentido real dos versos, que ao pé da letra não tinham nenhuma inocência.

Outra comprovação da singeleza cordial desta época está estampada na foto abaixo, que reproduz frente e verso da pasta do XVI Congresso Estadual dos Estudantes de Grau Médio do Rio Grande do Sul, realizado no Alegrete, em julho de 1962.



Tal qual álbum das meninas, era costume deixar-se uma mensagem para o colega. Minha pasta, como pode ser visto, ficou repleta de dedicatórias, manifestações típicas de corações juvenis para os quais o mundo inteiro ainda estava por ser conquistado. Algumas das frases e dedicatórias legíveis, conservadas graças ao fato de terem sido redigidas com caneta tinteiro:

  • “Quando estiveres longe lembra-te que tens uma amiga em Alegrete” (Vivalda Ferreira)
  • “Deixo uma recordação da amiga e congressista” (Leila Maria Teixeira – Lavras do Sul)
  • “Ao Raimundo deixo minha amizade e recordação do XVI Congresso” (Daguimar Monteiro – Lavras do Sul)
  • “Aqui fica uma recordação de um velho amigo e companheiro de bancada e diretoria, que esta ficará gravada para sempre” (Gilberto Lima)
  • “Ao colega e amigo Raimundo uma recordação do Congresso de Alegrete” (José Artur Vivian)
  • “Raimundo, os piores momentos são aqueles que nós duvidamos de nós mesmos” (Madalena Moreira)
  • “És o que és” (Vera Maria Ramires- Bagé)
  • “Raimundo, luta pela tua autenticidade, és um tijolo insubstituível das paredes da nossa sociedade” (Girley)
  • “Uma recordação para que o amigo sempre recorde-se da turma mais unida do Congresso – Jaguarão, Bagé, Arroio Grande” (Verdi)

Outras assinaturas na pasta, que foi possível identificar: Aluizio Paraguassú Ferreira (Presidente da UGES), Carlitos Oliveira (Presidente da UBES), Marilia Loguércio (Bagé), José Cláudio da Silva (Arroio Grande), Ciro Loureiro Rocha (Alegrete), Astolfa Conceição Lages (Arroio Grande), Gilberto Nunes (Jaguarão), Léa Silva (Bagé), Rosa Maria Carraro (Garibaldi), Luiz Moreira Gonçalves (Jaguarão), Jaime Primo Dias (Jaguarão), Lelande (Alegrete), Mário Teixeira (Lavras do Sul), Madalena Niederauer Dias (Alegrete), João Pedro Vidal (Herval do Sul), Dilza Terezinha Goulart Lopes (Alegrete) e Estivalet Brandolf (Alegrete).

Por onde andará este povo?  Um ou outro já terá ido ao encontro do Criador? Será que, por estes milagres que a Internet propicia, alguém terá a oportunidade de ler estas notas e de se reconhecer nestas lembranças?

Pois isto!

-oO)(Oo-

4 comentários:

Rosamaria disse...

Belo retrospecto de vida estás fazendo, Raimundo. Isso vai ficar para teus descendentes saberem quem foste.
Eu gostaria imensamente de reler as mensagens deixadas por colegas em três álbuns de recordações que foram roubados de dentro da casa da minha mãe.
Dos lavrenses que falaste, a Leila é irmã de dois colegas nossos,o Glauco e o João Claiton, a Dagmar Monteiro, filha do seu Assis,que tinha um armazém, foi nossa colega, só não sei quem é o Mário Teixeira. Não sei notícias deles.
Um abraço.

Anônimo disse...

Gostei do seu momento Zé Dirceu

Madu

Marina disse...

Conheço as duas carteirinhas pois também fui da diretoria da União Montenegrina de Estudantes. Li e reli a Mater et Magister e fu da JEC.

Marina disse...

Conheci as duas carteirinhas pois também pertenci a União Montenegrina de Estudantes. Li a Mater et Magistra e fui da JEC