(“Teorías Salvajes”, livro do qual foi extraída a epígrafe abaixo. Buenos Aires: Editorial Entropía, 2008.)
Un hombre con una teoría es alguien que tiene algo por gritar.
Pola Oloixarac
Botando os pingos nos iis
Mesmo que o distinto leitor não tenha um interesse especial por questões relacionadas ao movimento estudantil, talvez até por ter vivido em outros tempos, quando estas coisas já eram história, suponho que as informações que se seguem tenham sua utilidade, quanto mais não seja por relembrarem um momento significativo da vida política brasileira.
O CPC da UNE
O começo dos anos 60, do ponto de vista dos movimentos estudantis, foi marcado pela atuação do CPC da UNE – Centro Popular de Cultura. Criado em 1962, de acordo com a descrição de Manoel T. Berlinck “o CPC era o órgão cultural da União Nacional dos Estudantes, regendo-se com autonomia administrativa e financeira. A sua direção era eleita (e poderia ser dissolvida) pela Assembléia Geral de seus membros e a filiação ao CPC era feita em bases individuais. Nesse sentido, pode-se dizer que o ‘CPC da UNE’ nunca pertenceu À União Nacional dos Estudantes: era uma organização administrativa e financeiramente autônoma. Porém, ao mesmo tempo, era o órgão cultural da UNE”.
Integrado por intelectuais de diversas áreas, o CPC desenvolveu atividades de teatro, cinema, música e literatura. A principal orientação do CPC era produzir a chamada “arte popular revolucionária”. Seu documento-base, nunca publicado, é o “Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura”, de março de 1962, que pode ser encontrado no livro “Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70”, de Heloisa Buarque de Hollanda. Todavia, dois outros trabalhos explicitaram seu referencial teórico: “A questão da cultura popular”, de Carlos Estevam Martins, e “A cultura popular posta em questão”, de Ferreira Gullar; ambos, mais Carlos (Cacá) Diegues, foram os diretores do CPC em sua curta trajetória.
Integrantes do CPC da UNE, encenando uma peça de teatro na sede do sindicato dos metalúrgicos (RJ), onde estava em andamento a Revolta dos Marinheiros. 25/26 de março 1964. (CPDOC/FGV/ R47 Cruzeiro, vol.36, n.28, abr 1964)
Um exemplo de como a atuação do CPC da UNE foi marcante é que o único filme que produziu, Cinco vezes favela, de 1962, considerado um dos marcos do Cinema Novo Brasileiro, teve uma refilmagem recente, sob a coordenação geral de Cacá Diegues, apresentada em agosto de 2011 com o nome de Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos.
Embora uma consulta ao Google apresente muitas referências a respeito, para quem quiser consultar apenas uma fonte, um apanhado geral e sucinto do que foi o CPC encontra-se em “CPC da UNE”: http://forumeja.org.br/book/export/html/1720. No site é possível fazer o download na íntegra do livro de Manoel T. Berlinck, citado acima, bem como dos outros trabalhos mencionados, além do acesso a depoimentos gravados e diversas informações a respeito de obras sobre e do CPC, incluindo-se a publicação Violão de Rua e o disco O Povo Canta. Estas duas últimas referências foram as atividades com as quais o movimento estudantil do interior teve maior aproximação.
Violão de Rua
A pequena série de três volumes do Violão de Rua foi uma derivação da série maior Cadernos do Povo Brasileiro, editada pela Civilização Brasileira, de Enio Silveira. Quem tiver interesse em conhecer melhor esta história, leia a tese de doutorado de Angélica Lovatto: “Os Cadernos do povo brasileiro e o debate nacionalista nos anos 1960: um projeto de revolução brasileira”. Disponível para download no site Domínio Público do MEC:
A coleção Cadernos do Povo Brasileiro consistiu de 28 volumes, incluídos os três do Violâo de Rua, e foi publicada no período de 1961-64. Sua interrupção, quase que desnecessário dizer, foi por conta do governo militar. Os Cadernos possuíam linguagem simples e destinavam-se à população em geral. Estima-se que a tiragem total de seus exemplares tenha ultrapassado a marca de um milhão de exemplares. Estas publicações destinavam-se a contribuir para o processo de transformação da sociedade brasileira por meio da conscientização da massa popular. A grande propagação da coleção deveu-se ao empenho do CPC da UNE em sua divulgação.
A publicação do Violão de Rua era um produto da chamada arte engajada. Sua Nota Introdutória, redigida por Moacyr Félix, explicava: “Guiada por um critério acentuadamente político-social, e que não exclue a validade de outros critérios achados nos caminhos da poesia e da arte, a publicação desta série de poemas visa apenas realizar a apresentação de alguns esforços e de algumas tentativas aptas a provocar e estimular um clima propício ao aparecimento ou ao renascimento de uma literatura que responda ao seu tempo, universalizando-se fatalmente, em suas criações maiores, por não se querer mais de costas voltadas para a realidade e para a vida”.
Grandes nomes da poesia brasileira participaram do Violão de Rua: Affonso Romano de Sant’Anna, Ferreira Gullar, Geir Campos, Joaquim Cardozo, Moacir Felix e Reynaldo Jardim, entre outros. Abaixo, dois pequenos fragmentos, ambos do volume II:
COME E DORME (...) O rico come e dorme. O rico dorme e come. Come a comida do pobre. O pobre dorme com fome. A fome come o pobre porque a fome não dorme. O rico diz: foi Deus. Depois, com e dorme O sono cristão: enorme. Felix de Atahyde | QUE FAZER? (...) A revolução floresce na minha, na tua mão, que nada há mais que a detenha - nem polícia nem bloqueio nem bomba nem “Lacerdão” – que ela assobia no vento e marcha na multidão, ilumina o firmamento, gira na constelação - porque já foi deflagrada no meu, no teu coração. Ferreira Gullar |
Senzala Branca
No interior do Rio Grande do Sul o movimento estudantil estava distante das iniciativas da Capital, sintonizadas com as da UNE. Além do mais, a temática nordestina, histórias sobre grileiros, favelados, tudo isto estava um pouco distantes da vida cotidiana e da cultura do sul. Neste período, a poesia gaúcha ficou ao largo da possibilidade de atrelamento ideológico. Pode-se considerar uma exceção o poeta Lauro Rodrigues, que, além de jornalista e radialista, foi vereador em Porto alegre e deputado federal pelo RGS. Em 1958 ele lançou sua obra mais conhecida, Senzala Branca, onde surgiam aqui e ali algumas tintas sociais. A principal destas poesias foi a que deu nome ao livro: Senzala Branca.
O tema central de Senzala Branca trata da situação de pobreza galopante (perdão, leitores) tanto do Rio Grande quanto do Brasil: “A guerra é de doutrinas... Vem! Desperta / que os dias do porvir serão vividos... / Pois, pressinto na fome de meu filho / que um vulcão de revolta aclara o trilho / por onde segue a procissão dos pais... // Mas não tarda que a aurora do futuro / tinja de escarlate o céu escuro / dos párias desta estância abandonada... // E, então, o marco de uma nova era, / surgirá num ermo da tapera / para que o povo todo num só grito, / possa bradar da Terra ao Infinito: ALELUIA!... ALELUIA!... ALELUIA!...” Na época, eu sabia esta poesia inteira de cor, que não é tão pequenininha assim. Até hoje sei vários fragmentos. E isto que não era daquelas que a gente decorava só para impressionar mulher... Mas, Lauro Rodrigues também era muito bom nas poesias nativistas.
O Povo Canta
Meu xodó entre os produtos do CPC era o jogral da Canção do Subdesenvolvido, de Carlos Lyra e Francisco de Assis, faixa principal do disco O Povo Canta, um vinil compacto de 33 rpm. Escute abaixo.
CPC da UNE – “Canção do Subdesenvolvido”
No meio do caminho tinha uma pedra...
Com exceção de algumas expectativas e tentativas, como ir para o seminário ou ingressar no Colégio Militar, não tive qualquer pressão da família sobre a escolha do curso superior. Mas, do meu mato não saia coelho, estava em uma total e absoluta indefinição sobre o futuro profissional. Durante o curso científico realizado em Bagé, a professora de Matemática, Silvinha, me perguntou umas três vezes que carreira eu iria seguir, pois, segundo dizia, eu era o único na turma com este tipo de dúvida. Preocupado, procurei a Profa. Terezinha, de História, em busca de um conselho. Após a consideração de diversas conjecturas e respectivas refutações voltamos à estaca zero. Resultou sendo minha única tentativa formal. A participação no movimento estudantil, e a consideração a sério de suas bandeiras de justiça social, acabaram sendo os fatores determinantes para a minha decisão. Coisa de missionário, certamente com a anuência do Altíssimo.
Acabei escolhendo a carreira por meio de um livro: “As vocações e como descobri-las”, do psicólogo Emilio Mira y López, o qual sugeria que as pessoas interessadas no conhecimento dos processos sociais e que desejassem colaborar para a solução dos grandes problemas do país deviam realizar um curso de Sociologia, o que no catálogo da UFRGS correspondia a Ciências Sociais. Feita a escolha, nem sempre era muito fácil justificá-la. Aliás, no meio em que vivia nunca era fácil. As pessoas normais, com bom senso, estavam acostumadas a considerar somente as carreiras tradicionais, como engenharia, medicina, e manifestavam alguma estranheza com o que achavam um delírio. Em Lavras, um colega me perguntou para o que servia o curso. Já meio cansado com longas explicações, resolvi encurtar o caminho e disse que o curso me habilitaria a ser colunista social. O colega me olhou com um jeito meio apalermado e só conseguiu fazer um curto comentário: “ah...”
Enfim, fui para Porto Alegre realizar o último ano do curso científico com pelo menos a certeza sobre o tipo de vestibular que iria prestar.
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