sábado, 27 de agosto de 2011

CORAÇÃO DE ESTUDANTE (Bagé - Parte III)

A saudade mata a gente, morena
A saudade é dor pungente
João de Barro (Braguinha)
  
Iniciado no Colégio Estadual de Bagé, meu curso científico foi posteriormente concluído no Colégio “Júlio de Castilhos”, em Porto Alegre. Foi em Bagé, no entanto, que vivi os anos mais expressivos deste nível de ensino. O Colégio Estadual de Bagé atualmente chama-se Escola Estadual de 2º Grau Dr. Carlos Antônio Kluwe (um ex-prefeito). O curso científico era indicado para os alunos que pretendessem seguir carreiras mais técnicas, como engenharia, medicina, etc. E o curso clássico para quem fosse para a área de humanidades. Embora em tese este último fosse o mais indicado para a minha, digamos, inclinação intelectual, escolhi o científico porque queria ter uma base de conhecimentos mais ampla. Queria conhecer um pouco mais de outras ciências, não apenas aquelas das áreas sociais. O que quase resultou em tragédia. Mas é outra história.

O palacete onde funcionava o Colégio Estadual de Bagé

Todos os meus estudos foram realizados em colégios públicos de classes mistas, no sentido convencional, isto é, de homens e mulheres. O nível médio em Bagé ainda era oferecido em outros dois estabelecimentos particulares, ambos confessionais: pelo Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, de padres salesianos, portanto com turmas exclusivamente masculinas, e no Colégio Franciscano Espírito Santo, das irmãs franciscanas, com turmas só femininas, e que era conhecido, obviamente, apenas como “colégio das freiras”. Curioso, ou não, é que o colégio dos padres tem em seu nome uma referência feminina e o das freiras uma referência masculina, isto de certa forma, porque o único gênero que se pode atribuir ao Espírito Santo é o gramatical.
 
A Igreja e o Colégio Espírito Santo

Uma das grandes atrações para os rapazes era ficar nos muros em frente ao colégio das freiras observando a saída das meninas. Afinal, os colégios de freiras sempre se caracterizaram por abrigar “as mais finas flores da sociedade”. Aqueles anjos de candura sabiam umas cantiguinhas maliciosas com pesadas insinuações sobre a madre superiora. Nada pessoal. Certamente as mesmas que seriam cantaroladas em todos os cantos do país onde houvesse um colégio de freiras com sua madre superiora.

 Tavito: “ Rua Ramalhete”

Quem estudou sempre lembra de seus professores mais marcantes. Não foi diferente comigo. Tínhamos o solene prof. Frederico Petrucci, a simpática profa. Silvinha, sua esposa, o prof. Eduardo Contreiras Rodrigues, professor de espanhol e cultor de um bigode de grandes proporções, Terezinha Severo, professora de história, e o professor de química, José Avancini, matéria que se tornaria meu calo. Nosso professor de educação física, Naguinho (Wagner  Previtalli), era idolatrado. Sempre com um cronômetro na mão costumava usar um bordão para nos manter em movimento: “correndo curtinho, para sair mais cedo”. Na época era técnico do Guarany de Bagé, motivo para nós de imenso orgulho. Acompanhávamos atentamente suas explicações sobre estratégia e os critérios para escalar a equipe. O principal jogador do Guarany era Max, o centro-avante, que até hoje detém o título de maior goleador da história do time. Outra estrela era Ivo Medeiros, comprado do Bangu, do Rio de Janeiro.  Com um professor simpático, que prendia a atenção com suas histórias e que mais promovia partidas de futebol do que exercícios, a educação física do nosso curso científico era uma atividade extremamente agradável, muito diferente dos exercícios marciais praticados no Ginásio de Lavras do Sul. Sobre o Guarany, foi em seu estádio, o Estrela D’Alva, que assisti pela primeira vez, emocionado e com o coração querendo sair pela boca, uma partida com o Grêmio de Futebol Porto Alegrense. Saudoso time, com um ataque onde despontavam Gessy, Milton e Vi.

Mas foi no estádio do Grêmio Bagé, o de camisa jalde-negra, amarela e preta como a do Peñarol do Uruguai, que participei de um torneio início estudantil.

Alguns dos colegas:

 
Na foto, a única mulher é Déa, extravagante, exagerada e ótima companhia. Morava com a mãe. Suponho que volta e meia enfrentassem alguns problemas, pois quando seus fantasmas apareciam ela regredia nervosamente. No canto à esquerda Carlito, nosso decano, colega mais velho e dono de um coração imenso, ajudava todo mundo. Tinha uma loja de conserto de calçados e, embora nunca tenha casado, possuía um caso permanente com uma costureira; uma união, portanto, entre trabalhadores manuais.

O tempo, implacável, não deixa que todos os queridos colegas permaneçam na lembrança. Alguns sempre ficam, por uma ou por outra razão.  Assim, por exemplo, Jesus, sempre sorridente, que se preparava para ser médico; Tânia Karam, com sua exuberância física; a simpática Francisquinha; Gilberto, um dos raros motorizados, com sua F-100; além de Vera, dirigente estudantil da mais alta expressão intelectual. O goleiro do time de nossa turma era afrodescendente. Recebeu o apelido de Terciopelo, veludo em espanhol, por alusão a Veludo, goleiro da Seleção Brasileira de 1954. Das quadras para a sala de aula, o apelido lhe acompanhou pelo resto do curso. Sebastião Barbosa, vindo do interior, gordinho de rosto rosado, fez parte da diretoria da União Bageense de Estudantes. Além de sua simpatia, marcava pelo seu espanto diante da cidade grande. Ao ouvir a buzina de uma motoneta pela primeira vez achou parecida com o som de um cincerro (chocalho colocado nos bois). Outra ocasião, quando conversávamos com uma colega estrábica, ele ficou muito intrigado, pois nunca tinha visto alguém assim: “ela olhava para mim, mas ao mesmo tempo parecia que também olhava para ti”. Aliás, os avanços da oftalmologia reduziram a quase zero a chance de atualmente se encontrar um estrábico.

Avenida Sete de Setembro

Minha turma aprontou muito. Éramos um pouco agitadinhos. Pelo menos isto aconteceu na adolescência, a época certa. Algumas de nossas brincadeiras não eram bem calibradas. Certa vez, entre os rapazes, talvez só por farra talvez por estarmos meio enciumados com o desprezo das mais bonitinhas, resolvemos promover uma campanha para eleger, pelo voto direto, nossa colega menos apetrechada fisicamente para ser a Rainha de nossa turma. Ela era meio rechonchudinha. E o fizemos... Mas foi aí que descobrimos que tudo tinha sua conseqüência, e não podíamos prever que depois de eleita, nossa colega tenha se entusiasmado e pegado o pião na unha (pensávamos que ela iria desistir, sabe-se lá por qual raciocínio mais equivocado). As mais bonitinhas ficaram mordidas e arrependidas por terem se ausentado da campanha. Quem menos gostou foi o galã da turma, que teve que dançar com nossa Rainha no baile do colégio. A menina estava até que bem arrumada e é provável que tenha realizado algum sonho oculto. Enfim, nossa armação acabou sendo uma escrita certa obtida por linhas tortas.

Muro do prédio em restauração do Colégio Estadual 

Por bobagem fomos suspensos coletivamente, os rapazes. Deixamos só as meninas dentro da sala de aula e fomos para o lado de fora jogar um monte de bombinhas de São João para assustá-las. Mulher já faz um alarido em qualquer situação, imagine-se nesta. Uma ou outra brincadeira resultava até instrutiva. Uma ocasião afrouxamos as lâmpadas da sala de aula para que não tivéssemos atividade naquele dia; muitas salas de aula eram no térreo e com baixa iluminação natural. Fomos miseravelmente humilhados. O diretor do Colégio, já então o mencionado Prof. Avancini, em substituição ao Prof. Petrucci, nos explicou que aquilo era muita inocência, qualquer bedel torceria a lâmpada de novo e a luz seria restabelecida. Para que a coisa tivesse mais veracidade, tínhamos que colocar um isolante dentro do bocal da lâmpada, a exemplo do papel laminado que vinha nas carteiras de cigarro. Depois disto, não tínhamos mais clima para fazer nova tentativa porque aí já estaríamos manjados. O professor ainda colaborou conosco com propósitos, se é que se pode chamar assim, educacionais. Explicou que se esquentássemos a ponta de um giz, ele passaria por um processo químico que faria perder suas características e não serviria mais para riscar no quadro negro. E fez isto em plena aula. Nossa participação foi indicar a mais CDF da turma para ser chamada ao quadro e tentar, ruborizada, escrever alguma coisa com o giz preparado. Aí ele explicou para todo mundo o que tinha ocorrido. Mas, de tudo o que aprontamos, o mais inocente foi no dia em que resolvemos matar a aula coletivamente. Por azar, logo ao sairmos pelo portão do colégio encontramos o pai de Terciopelo, militar linha dura, que esculhambou com o filho e foi fazer queixa ao diretor. Resultado: nova suspensão, desta vez para todo mundo.

O prédio em restauração: salas de aula no térreo

Há um lado interessante nisto. Quando fui professor na Universidade Federal do Piauí, esta experiência juvenil acabou me ajudando muito. Professor tem que ser muito mais esperto do que os alunos para não ser enrolado, tem que conhecer todas as manhas e todos os expedientes. Inclusive saber lidar com o chororô nas provas escritas: “minha vida depende disto, senão vou ser reprovado no último ano”, ”estou tão nervosa que minha letra está tremendo”... Bueno, nem por isto algum aluno encomendou um bonequinho de vodu com a minha cara. Quer dizer, pelo menos que eu tenha tomado conhecimento. Enfim, vida que segue...


Milton Nascimento: “Coração de Estudante”


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sábado, 20 de agosto de 2011

CAMPEREANDO PELA “RAINHA DA FRONTEIRA” (Parte II)



Meu segundo paradeiro em Bagé, também em casa de outros parentes distantes, ficava mais para dentro da cidade, digamos assim, mas igualmente distante do Colégio. Infelizmente não durou tempo suficiente para que conseguisse absorver toda a sabedoria existencial de meus primos pândegos. Eram dois e um pouco mais velhos do que eu. Também pensavam em mulher 90% do tempo. Acho que eu tinha uma certa propensão a me relacionar com tipos obcecados. Eles possuíam uma alta sagacidade inata. Sem cabedal pecuniário, utilizavam os mais variados expedientes para conviver em meio social um patamar acima. Seus conselhos, para que me iniciasse naquela vida onde só importava o relacionamento com as garotas, eram ora da maior praticidade ora próximos do cômico. Assim, um deles me dizia: “procura namorar com fulana, não é muito bonita mas no cinema deixa beijar na boca”. Este tipo de informação privilegiada sempre foi muito utilizado no mundo masculino; ademais, não é necessário enfatizar que naqueles tempos de imensas dificuldades o referido predicado era altamente valorizado. Depois vinha um conselho que querendo ser malandragem tinha muito de inocência: “tens que ter um chaveiro vistoso, pois as meninas vão pensar que tens automóvel”

 
Acessório obrigatório era o pente, marca Flamengo, colocado no bolso de trás da calça. Havia também um eventual canivete, mas este é um capítulo meio complicado. Embora nesta época não fumasse, aprendi a importância de sempre andar um isqueiro. Vez por outra haveria uma garota querendo fumar seu cigarrinho, ocasião em que o jovem tinha que se antecipar e prontamente oferecer “fogo”. Este recurso sempre foi um velho expediente masculino. Nem sempre funcionando conforme o esperado. Uma ocasião, voltando de Ouro Preto, em Minas Gerais, para Belo Horizonte, à noite, de ônibus, na fileira ao lado da minha, junto à janela, estava uma jovem com muitos predicados. Ao seu lado, um rapaz na maior expectativa, pronto para o bote na primeira oportunidade. De canto de olho vi quando a menina levou um objeto branco à boca e, antes mesmo de encostá-lo nos lábios o cowboy mais rápido do Oeste já estava com seu isqueiro acesso. Ela caiu na risada e cortou o barato do ansioso pelo resto da viagem: o suposto cigarro era um simples canudinho de papel enrolado.

Perdida a convivência com os primos, simpáticos gurus da vida social, daí por diante meu terceiro e último paradeiro na cidade foi em uma pensão. Muita gente morou em pensão, estabelecimentos que costumavam ter uma qualificação no nome: “pensão familiar”. Quando passei um ano em Cachoeira do Sul, meus pais moravam em uma pensão. Em Porto Alegre, onde todos os meus seis anos foram passados em pensão, encontrei um ex-professor de ginásio também morando em pensão. Esta era e continua sendo a alternativa possível para orçamentos modestos. Claro que daria literatura. Um clássico, Aluizio de Azevedo, é autor de “Casa de Pensão”. Aqui neste espaço já mencionei José Condé, “Pensão Riso da Noite”.

A pensão onde morei em Bagé ficava a meio caminho da Vila Nova, mas já era muita coisa: metade do trajeto era bem melhor do que o trajeto inteiro. Foi por conta das idas e vindas ao Colégio que passei a ter a companhia de Wendy Ivete, a mocinha da foto aí embaixo. Wendy era, por assim dizer, minha vizinha. Morava na Vila Ferroviária, que hoje não existe mais, próxima à minha pensão. Próxima em termos de GPS, porque entre um endereço e outro havia uma ladeira tão íngreme que passar por ela hoje seria considerado esporte radical.


O que está dito no verso da foto seguramente diz muito do fato de que o homem amadurece bem depois da mulher. Embora alguns analistas sejam reticentes sobre se esta possibilidade possa algum dia realmente se concretizar. Resumindo: Wendy era uma santa, uma Madre Teresa de Calcutá.


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Nota explicativa:

A arte cemiterial

Como na última postagem o que mais chamou a atenção foi a referência ao Cemitério de Bagé, acrescento algumas breves informações complementares. Veja-se, por exemplo, o que diz um site sobre os cemitérios de Porto Alegre: Arte Cemiterial - Cemitérios são museus ao ar livre. Ali estão obras de grandes artistas, mas também peças de artesãos anônimos. Algumas vieram da Europa, outras foram confeccionadas por artistas locais. Os principais cemitérios de Porto Alegre reúnem mais de 300 obras ornamentando capelas, mausoléus, jazigos, monumentos e túmulos, produzidas em especial entre 1900/1940. Elas relatam histórias e adornam a eternidade de personalidades, algumas conhecidas, outras anônimas. Quanto mais luxuosos os jazigos, mais ricas eram as famílias. As figuras ornamentais simbolizam a Fé, a Esperança, a Caridade, a Justiça Divina, o Juízo Final, a Ressurreição, e os sentimentos humanos diante da morte.

No site “Arte Cemiterial”, voltado para os cemitérios de São Paulo, encontra-se uma abordagem um pouco mais extensa sobre o assunto, com indicações históricas sobre sua evolução no caso brasileiro. Ver:


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sábado, 13 de agosto de 2011

CAMPEREANDO PELA “RAINHA DA FRONTEIRA” (Parte I)


Morando aqui e acolá

Em Bagé, a Rainha da Fronteira, onde fui cursar o científico, atual 2º grau, morei em três lugares. Bagé fica próxima de Lavras do Sul, a pouco mais de 80 km por estrada de terra, hoje em dia quase intransitável. O asfalto para Caçapava do Sul, cidade ainda mais perto, 60 km, deslocou o eixo de influência, inclusive educacional. Mas, em minha época, Bagé ainda era o mais próximo grande destino para quem necessitasse sair da terrinha.

Morei primeiro na casa de um parente no bairro de Vila Nova. Cheguei num sábado e no domingo seguinte meu anfitrião me levou para conhecer o cemitério local. Poderia parecer algo lúgubre, mas tinha sua razão: a entrada era de graça, o local distante, o que permitia até chegar lá ter uma visão geral da cidade, e, afinal tratava-se de uma iniciativa com fundo antropológico, ou seja, para mostrar uma produção cultural específica, belíssimos túmulos e jazigos ornamentados com esculturas também belíssimas. Era um turismo cultural “avant-la-lettre”, isto é, quando ninguém tinha pensado nisto. Nos dias de hoje, para dar um exemplo, os turistas que vão a Buenos Aires visitam o cemitério da Recoleta.

Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé (instalado em 1858)

Como o local da minha morada ficava muito distante do Colégio Estadual e o suado dinheiro da minha manutenção não incluía ônibus ida-e-volta diariamente, além de ser muito longe para ir e voltar a pé, minha estada durou pouco. O suficiente para me iniciar de forma amadorística na crítica literária.

Um dos vizinhos era um jovem talentoso cujo sonho de consumo era minha prima. Produzia uma poesia atrás da outra, no estilo de J.G. de Araújo Jorge, poeta romântico muito popular nos anos 60 e seu ídolo declarado. As poesias do jovem eram bem razoáveis. Ouvia seus originais em primeira mão, para opinar. O azar do coitado é que nesta época as mulheres já eram muito materialistas, racionais e difíceis de conquistar pelo ouvido. Além do quê, no caso específico havia uma muralha quase intransponível por conta de questões de cor. Este meu colega pensava em mulher 90% do seu tempo. Estranho, não? No que ele pensaria durante os 10% restantes? E usava um anel extravagante por conta de uma história em que acreditou: alguém, parente de não sei quem, por sua vez vizinho de não sei quem mais, etc., usava um anel daqueles para ser identificado pela namorada. O referido entrava no quarto da menina noite escura e, para não acordar seus pais com palavras e sussurros, era reconhecido pelo anel.  Hoje isto seria considerado como lenda urbana, mas, pelo sim pelo não, meu colega já usava o anel para a hipótese de não desperdiçar uma oportunidade eventual.  Não sei que fim ele levou, mas tinha condições de se estabelecer no ramo da produção literária.

Seduzir pela poesia era um paradoxo. Em Bagé, terra de índio grosso, barbaridade, que só não é mais grosso por falta de espaço, a solução esperada seria tipo homem das cavernas: uma porretada na cabeça e carregar o troféu puxando pelos cabelos. Mas, embora nem sempre reconhecido, o gaúcho é muito tímido para questões amorosas. Veja-se a letra de “Guri”, música que é um dos hinos riograndenses, composição de João Batista Machado e Júlio Machado da Silva Filho: “Vou aprender a fazer contas e algum bilhete escrever / Pra que a filha do seu Bento saiba que ela é meu bem querer / E se não for por escrito eu não me animo a dizer”.

“Guri”, com Renato Borghetti e Cesar Passarinho

A campereada vai continuar.

sábado, 6 de agosto de 2011

A MATUNGONA PARADA... DE OLHO NA MINHA ALMA

(Nota explicativa: matungona é termo depreciativo para morte. Matungo significa cavalo ruim, imprestável.)

“Infierno por infierno, prefiero el de la frontera”.
Martin Fierro
Em postagens anteriores abordei, primeiro, o tema do gaúcho que mata os outros, em “O lado negro da força”; depois, o gaúcho que se mata, em “Às vezes nem maçanilha tira esse amargo da vida”. Agora, vamos tratar, da forma mais lúdica e musical possível, do gaúcho que enfrenta a morte de forma desabrida, quando o sujeito se atira de peito aberto contra a morte em uma situação qualquer, até mesmo sem um propósito claro. Exemplo emblemático deste comportamento está em uma charge de autoria do cartunista Laerte, que reproduz uma cena parecida com a do Grito da independência. Um caudilho, empunhando a espada, clama por uma posição política dos seus cavalarianos:
 
- “Chega de Federação!”
- “Chega”.
- “Aqui tem macho!!”
- “Pois tem!!”
Então:
- “INDEPENDÊNCIA OU MORTE!”
- “MORTE!!” Respondem todos, em coro.
- “Por que não independência?”
- “Porque aqui tem macho! ... Que foi? ... Te borraste? / ... Te fresqueia!!”.


Analisando o episódio, Marcos Silva, no artigo “Laerte encontra Henfil (Ascensão e Queda das Ditaduras)”, publicado em Projeto História, São Paulo, (29) tomo 1, p. 125-138, dez. 2004, revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, diz: “O machismo [gaúcho] é brilhantemente sintetizado, sob o signo da crítica, na pulsão de morte revelada pelo coro de cavaleiros. Ao invés da coerência com o lema do combate à federação, escolhe-se a morte para melhor exibir força, capacidade de luta, virilidade. Laerte constrói um paradoxo fascinante: esses valores podem existir fora da vida? A resposta do riso é: eles existem contra a vida”.

Gravura de Molina Campos

Outro caso interessante é relatado em “Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez”, de Tabajara Ruas (Rio de Janeiro, Editora Record, 2003). Juvêncio Gutierrez era contrabandista e de extensa folha corrida. Procurado pela polícia. Sabia que se voltasse a Uruguaiana seria morto. Mesmo assim, lá pelas tantas anunciou que deixaria a Argentina onde estava exilado e voltaria. O delegado, seu inimigo mortal e rival, armou todos os milicianos para esperá-lo na estação do trem. Juvêncio Gutierrez escapa em um primeiro momento, mas é perseguido, cercado e morto. Porque voltou, que razões tinha, ninguém ficou sabendo. Mas ele sabia que voltaria para ser morto.

O ímpeto para enfrentar a morte se atirando de peito aberto possui bons exemplos no disco “Ramilonga”, do Vitor Ramil. Aliás, se alguém só puder levar um disco nativista para uma ilha deserta leve este. Das onze faixas do disco três trazem referência à morte: Causo Farrapo, Gaudério e Último Pedido.
Em “Causo Farrapo”, http://www.youtube.com/watch?v=EHjqVlx4Wz4, a letra de Vitor Ramil relata uma briga com a própria morte:

“Numa peleja das braba
topei co’ a morte de cara 
a matungona parada 
de olho na minha alma 
Eu le pedi: sai da frente 
ou te levanto na espada
eu sei que a morte eu não mato
mas deixo toda lanhada”.


Em “Gaudério”, http://www.youtube.com/watch?v=GbNKIh_dPdI&feature=related, com letra de João da Cunha Vargas, poeta gaúcho de origem campeira que nunca escreveu seus versos, conservando-os apenas na memória, as intenções são muito claras:

“Não quero morrer de doença
nem com a vela na mão  
eu quero guasquear no chão
com um balaço bem na testa
e que seja em dia de festa
de carreira ou marcação”

E peço, quando eu morrer
não me por em cemitério
existe muito mistério
prefiro um lugar deserto   
e que o zaino paste perto
cuidando os restos gaudério”.


“Último Pedido”, também tem letra de João da Cunha Vargas: 

“Se um dia a morte maleva
me dá um pealo de cucharra
numa saída de farra
me faça torcer o alcatre  
me ajeitem bem sobre um catre  
me tirem os laço das garra

Me enterrem num campo aberto
que eu sinta o vento pampeiro  
em vez de vela, um candeeiro  
ao pé da cruz falquejada  
que eu possa enxergar a estrada  
por onde passa o tropeiro”.  

A reivindicação final homenageia outro grande poeta gaúcho, Aureliano de Figueiredo Pinto:
“Vou viver na estância grande  
deste patrão soberano  
levar comigo o minuano
pro rancho de algum posteiro  
e pedir pra ficar lindeiro  
com o imortal Aureliano”.

Lindeiro, para quem não é do RGS, significa vizinho de cerca.


Quadro de Marciano Schmitz 

Pois então, apesar de todo o folclore estabelecido sobre a rudeza do gaúcho, que resultou em um estereótipo caricatural, não é um tipo fácil de entender. Em uma tentativa de buscar contribuições que ajudassem a refletir sobre a condição de ser gaúcho, a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul publicou dois livros:  “Nós, os gaúchos” (1992) e “Nós, os gaúchos 2” (1994). A série acabou tendo desdobramentos: “Nós, os teuto-gaúchos” (1996), “Nós, os ítalo-gaúchos” (1998) e “Nós, os afro-gaúchos” (1998), mas aí já é outra história.

 “Milonga de Manoel Flores”, Vitor Ramil com letra de Jorge Luis Borges

De onde vem tanta tragédia?  

Conforme já visto, a cultura gaúcha está impregnada da idéia de morte. O Rio Grande tradicional, do “gaucho” sem acento, possui raízes espanholas antes do que portuguesas. As Missões jesuíticas foram pioneiras na ocupação do território. A “alma”, portanto, teria uma primeira influência cultural espanhola, precedendo a açoriana. E este legado parece ser o do sentimento de tragédia, conforme “Del Sentimiento Trágico de la Vida”, de Miguel de Unamuno, ou o poeta Quevedo: “al derredor todo lo que veía era la muerte”. Mesmo a discutida descrição da poesia de Ascêncio Ferreira, do gaúcho se pilchando, pegando o cavalo e saindo em desabalada carreira – para nada! –, parece semelhante à desatinada investida de Don Quixote de La Mancha contra os moinhos de vento. Consciente uma, sem objetivos. Insana outra, com propósito bem definido, ainda que desfocado.
De Portugal ganhamos o tempero do sentimento de nostalgia, da saudade. Como o fado, que cultua o lamento: o sujeito em frente ao mar sangrando de saudade... É assim no Madredeus, um grupo musical contemporâneo, que canta o amor perdido. A nostalgia está em Camões e Fernando Pessoa, que celebram as grandes conquistas, a navegação, enfim, o passado. Um autor português contemporâneo, Eduardo Lourenço, debruçou-se sobre o tema: primeiro com “O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português” (1978), depois com “Mitologia da Saudade” (1999). Este último apresenta ensaios como “Melancolia e Saudade”, “Da Saudade como Melancolia Feliz”, “Romantismo, Camões e a Saudade”, “Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa”. Na orelha do livro, diz Saramago: “Tudo o que o autor escreveu até hoje obedece a uma imperiosa necessidade de ver e compreender o que há por trás dos véus em que parecem esconder-se, mais do que Portugal, os portugueses. Por isso creio poder interpretar a visão de Lourenço como duplamente crepuscular. Há um crepúsculo da tarde que precede a noite e há um crepúsculo da manhã que anuncia o sol. É neste que Eduardo Lourenço profundamente aposta, ainda que algumas vezes desesperado”.

Esta herança toda a gente carrega vida afora. É brabo! Enfim, o aprofundamento do que acima foi toscamente alinhavado certamente poderia iluminar um pouco mais nosso conhecimento sobre os elementos de formação da alma gaúcha.

 “Deixando o Pago”, Vitor Ramil com letra de João da Cunha Vargas

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