A saudade mata a gente, morena
A saudade é dor pungente
João de Barro (Braguinha)
Iniciado no Colégio Estadual de Bagé, meu curso científico foi posteriormente concluído no Colégio “Júlio de Castilhos”, em Porto Alegre. Foi em Bagé, no entanto, que vivi os anos mais expressivos deste nível de ensino. O Colégio Estadual de Bagé atualmente chama-se Escola Estadual de 2º Grau Dr. Carlos Antônio Kluwe (um ex-prefeito). O curso científico era indicado para os alunos que pretendessem seguir carreiras mais técnicas, como engenharia, medicina, etc. E o curso clássico para quem fosse para a área de humanidades. Embora em tese este último fosse o mais indicado para a minha, digamos, inclinação intelectual, escolhi o científico porque queria ter uma base de conhecimentos mais ampla. Queria conhecer um pouco mais de outras ciências, não apenas aquelas das áreas sociais. O que quase resultou em tragédia. Mas é outra história.
O palacete onde funcionava o Colégio Estadual de Bagé
Todos os meus estudos foram realizados em colégios públicos de classes mistas, no sentido convencional, isto é, de homens e mulheres. O nível médio em Bagé ainda era oferecido em outros dois estabelecimentos particulares, ambos confessionais: pelo Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, de padres salesianos, portanto com turmas exclusivamente masculinas, e no Colégio Franciscano Espírito Santo, das irmãs franciscanas, com turmas só femininas, e que era conhecido, obviamente, apenas como “colégio das freiras”. Curioso, ou não, é que o colégio dos padres tem em seu nome uma referência feminina e o das freiras uma referência masculina, isto de certa forma, porque o único gênero que se pode atribuir ao Espírito Santo é o gramatical.
A Igreja e o Colégio Espírito Santo
Uma das grandes atrações para os rapazes era ficar nos muros em frente ao colégio das freiras observando a saída das meninas. Afinal, os colégios de freiras sempre se caracterizaram por abrigar “as mais finas flores da sociedade”. Aqueles anjos de candura sabiam umas cantiguinhas maliciosas com pesadas insinuações sobre a madre superiora. Nada pessoal. Certamente as mesmas que seriam cantaroladas em todos os cantos do país onde houvesse um colégio de freiras com sua madre superiora.
Tavito: “ Rua Ramalhete”
Quem estudou sempre lembra de seus professores mais marcantes. Não foi diferente comigo. Tínhamos o solene prof. Frederico Petrucci, a simpática profa. Silvinha, sua esposa, o prof. Eduardo Contreiras Rodrigues, professor de espanhol e cultor de um bigode de grandes proporções, Terezinha Severo, professora de história, e o professor de química, José Avancini, matéria que se tornaria meu calo. Nosso professor de educação física, Naguinho (Wagner Previtalli), era idolatrado. Sempre com um cronômetro na mão costumava usar um bordão para nos manter em movimento: “correndo curtinho, para sair mais cedo”. Na época era técnico do Guarany de Bagé, motivo para nós de imenso orgulho. Acompanhávamos atentamente suas explicações sobre estratégia e os critérios para escalar a equipe. O principal jogador do Guarany era Max, o centro-avante, que até hoje detém o título de maior goleador da história do time. Outra estrela era Ivo Medeiros, comprado do Bangu, do Rio de Janeiro. Com um professor simpático, que prendia a atenção com suas histórias e que mais promovia partidas de futebol do que exercícios, a educação física do nosso curso científico era uma atividade extremamente agradável, muito diferente dos exercícios marciais praticados no Ginásio de Lavras do Sul. Sobre o Guarany, foi em seu estádio, o Estrela D’Alva, que assisti pela primeira vez, emocionado e com o coração querendo sair pela boca, uma partida com o Grêmio de Futebol Porto Alegrense. Saudoso time, com um ataque onde despontavam Gessy, Milton e Vi.
Mas foi no estádio do Grêmio Bagé, o de camisa jalde-negra, amarela e preta como a do Peñarol do Uruguai, que participei de um torneio início estudantil.
Alguns dos colegas:
Na foto, a única mulher é Déa, extravagante, exagerada e ótima companhia. Morava com a mãe. Suponho que volta e meia enfrentassem alguns problemas, pois quando seus fantasmas apareciam ela regredia nervosamente. No canto à esquerda Carlito, nosso decano, colega mais velho e dono de um coração imenso, ajudava todo mundo. Tinha uma loja de conserto de calçados e, embora nunca tenha casado, possuía um caso permanente com uma costureira; uma união, portanto, entre trabalhadores manuais.
O tempo, implacável, não deixa que todos os queridos colegas permaneçam na lembrança. Alguns sempre ficam, por uma ou por outra razão. Assim, por exemplo, Jesus, sempre sorridente, que se preparava para ser médico; Tânia Karam, com sua exuberância física; a simpática Francisquinha; Gilberto, um dos raros motorizados, com sua F-100; além de Vera, dirigente estudantil da mais alta expressão intelectual. O goleiro do time de nossa turma era afrodescendente. Recebeu o apelido de Terciopelo, veludo em espanhol, por alusão a Veludo, goleiro da Seleção Brasileira de 1954. Das quadras para a sala de aula, o apelido lhe acompanhou pelo resto do curso. Sebastião Barbosa, vindo do interior, gordinho de rosto rosado, fez parte da diretoria da União Bageense de Estudantes. Além de sua simpatia, marcava pelo seu espanto diante da cidade grande. Ao ouvir a buzina de uma motoneta pela primeira vez achou parecida com o som de um cincerro (chocalho colocado nos bois). Outra ocasião, quando conversávamos com uma colega estrábica, ele ficou muito intrigado, pois nunca tinha visto alguém assim: “ela olhava para mim, mas ao mesmo tempo parecia que também olhava para ti”. Aliás, os avanços da oftalmologia reduziram a quase zero a chance de atualmente se encontrar um estrábico.
Avenida Sete de Setembro
Minha turma aprontou muito. Éramos um pouco agitadinhos. Pelo menos isto aconteceu na adolescência, a época certa. Algumas de nossas brincadeiras não eram bem calibradas. Certa vez, entre os rapazes, talvez só por farra talvez por estarmos meio enciumados com o desprezo das mais bonitinhas, resolvemos promover uma campanha para eleger, pelo voto direto, nossa colega menos apetrechada fisicamente para ser a Rainha de nossa turma. Ela era meio rechonchudinha. E o fizemos... Mas foi aí que descobrimos que tudo tinha sua conseqüência, e não podíamos prever que depois de eleita, nossa colega tenha se entusiasmado e pegado o pião na unha (pensávamos que ela iria desistir, sabe-se lá por qual raciocínio mais equivocado). As mais bonitinhas ficaram mordidas e arrependidas por terem se ausentado da campanha. Quem menos gostou foi o galã da turma, que teve que dançar com nossa Rainha no baile do colégio. A menina estava até que bem arrumada e é provável que tenha realizado algum sonho oculto. Enfim, nossa armação acabou sendo uma escrita certa obtida por linhas tortas.
Muro do prédio em restauração do Colégio Estadual
Por bobagem fomos suspensos coletivamente, os rapazes. Deixamos só as meninas dentro da sala de aula e fomos para o lado de fora jogar um monte de bombinhas de São João para assustá-las. Mulher já faz um alarido em qualquer situação, imagine-se nesta. Uma ou outra brincadeira resultava até instrutiva. Uma ocasião afrouxamos as lâmpadas da sala de aula para que não tivéssemos atividade naquele dia; muitas salas de aula eram no térreo e com baixa iluminação natural. Fomos miseravelmente humilhados. O diretor do Colégio, já então o mencionado Prof. Avancini, em substituição ao Prof. Petrucci, nos explicou que aquilo era muita inocência, qualquer bedel torceria a lâmpada de novo e a luz seria restabelecida. Para que a coisa tivesse mais veracidade, tínhamos que colocar um isolante dentro do bocal da lâmpada, a exemplo do papel laminado que vinha nas carteiras de cigarro. Depois disto, não tínhamos mais clima para fazer nova tentativa porque aí já estaríamos manjados. O professor ainda colaborou conosco com propósitos, se é que se pode chamar assim, educacionais. Explicou que se esquentássemos a ponta de um giz, ele passaria por um processo químico que faria perder suas características e não serviria mais para riscar no quadro negro. E fez isto em plena aula. Nossa participação foi indicar a mais CDF da turma para ser chamada ao quadro e tentar, ruborizada, escrever alguma coisa com o giz preparado. Aí ele explicou para todo mundo o que tinha ocorrido. Mas, de tudo o que aprontamos, o mais inocente foi no dia em que resolvemos matar a aula coletivamente. Por azar, logo ao sairmos pelo portão do colégio encontramos o pai de Terciopelo, militar linha dura, que esculhambou com o filho e foi fazer queixa ao diretor. Resultado: nova suspensão, desta vez para todo mundo.
O prédio em restauração: salas de aula no térreo
Há um lado interessante nisto. Quando fui professor na Universidade Federal do Piauí, esta experiência juvenil acabou me ajudando muito. Professor tem que ser muito mais esperto do que os alunos para não ser enrolado, tem que conhecer todas as manhas e todos os expedientes. Inclusive saber lidar com o chororô nas provas escritas: “minha vida depende disto, senão vou ser reprovado no último ano”, ”estou tão nervosa que minha letra está tremendo”... Bueno, nem por isto algum aluno encomendou um bonequinho de vodu com a minha cara. Quer dizer, pelo menos que eu tenha tomado conhecimento. Enfim, vida que segue...
Milton Nascimento: “Coração de Estudante”
-oO)(Oo-