segunda-feira, 2 de maio de 2011

O SENHOR ESTEJA CONVOSCO


Fui coroinha por muitos anos. Neste particular tive um precedente ilustre. Machado de Assis ajudava nas missas de domingo da Igreja de Nossa Senhora da Lampedusa, no Rio de Janeiro. Consta que o expediente lhe facultou aprender a ler e a escrever com o padre.

As atividades de um coroinha são as triviais do ramo: ajudar na missa, tocar o sino – então isto não significava perturbação do sossego público -, passar a sacolinha para recolher donativos, estas coisas. Além disto, fui encarregado de cuidar do funcionamento do serviço de alto-falantes da igreja. O que implicava lidar com a “pick-up” (toca-discos). Os discos de 78 rotações eram pesados e a pick-up (cujo nome mais propriamente identificava o braço do toca-discos) utilizava umas agulhas pequenas, muito parecidas com agulhas de costura gordinhas, que gastavam com uma facilidade enorme. Eram baratíssimas e compradas em quantidades industriais. Às seis da tarde, os alto-falantes da igreja transmitiam a Ave-Maria de Gounod. 

 

Uma ocasião, o padre estando fora da cidade, me baixou um santo depois de tocar a Ave-Maria. Continuei a colocar outras músicas sacras e entrava na locução com todo tipo de comentário religioso. Até que alguém se deu conta de que aquela transmissão estava muito estranha e foram me resgatar das aparelhagens. Não tivessem cortado meu arroubo juvenil teria seguido noite adentro como um DJ religioso.

O interior da Igreja de Santo Antonio das Lavras 

O entorno da vida religiosa era muito interessante e bonito: as missas em latim, a pompa da liturgia e o canto gregoriano, paramentos, o uso do turíbulo (para queimar o incenso), cerimônias e cores da semana Santa... Além das preces, como o Responsório de Santo Antônio:Se milagres desejais, / Recorrei a Santo Antônio; / Vereis fugir o demônio / E as tentações infernais. / Recupera-se o perdido, / Rompe-se a dura prisão / E no auge do furacão / Cede o mar embravecido”.

Meu interesse na carreira eclesiástica foi fortemente reforçado com a visita do Bispo Dom Antonio Zattera. Nesta época, anos 50, Lavras do Sul ainda pertencia à Arquidiocese de Pelotas.  Desde 1960 pertence à Diocese de Bagé, criada neste ano pelo Papa João XXIII. O bispo usava carro importado, daqueles americanos enormes e de suspensão macia, e seus atavios eram de fazer inveja: meias grená, faixa de seda na cintura, barrete (o chapeuzinho dobrável), anel. Merecedor de toda reverência e beija-mão, que no caso é beija-anel. 

 O exercício da função parecia uma barbada. Como na época ainda não conhecia os Sermões do Padre Antonio Vieira, achava facílimo estruturar uma prédica, hoje chamada de homilia: uma saudação inicial - “Caríssimos irmãos” -, uma citação dos Evangelhos, um pequeno desdobramento do seu significado, uma peroração contra a decadência dos costumes - eles estão sempre em decadência -, eventualmente um alerta sobre o fogo dos infernos e, finalmente, uma exortação a uma vida pia e correta para alcançar as benesses da Vida Eterna.

 
A tarefa era facilitada pelas instruções da Igreja. Atualmente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil edita um “Diretório da Liturgia”, onde indica tudo o que deve ser observado em cada dia do ano: intenções do mês, leituras das Escrituras, cor dos paramentos na missa, etc. Na época aqui relatada havia documento semelhante, o que facilitava a vida do padre, que tinha todas as suas obrigações e encargos já pautados. 

 

Além da salvação da alma, os religiosos dispunham de recompensas mais terrestres. Aos domingos o pároco costumava almoçar na casa de uma alguma paroquiana piedosa. Quando era na casa de minha avó o prato era galinhada. Na época, a galinha era prato de domingo, o diferencial em uma cultura centrada na carne de gado.  

A galinha era criada em casa ou comprada viva. Não existiam supermercados. Meu avô matava a calinha segurando pela cabeça e lhe dando um revolteio para quebrar seu pescoço. Aí, a galinha era pendurada pelos pés para o sangue descer. O pescoço gordinho de sangue ficava especial de bueno. Mas, além de suas expressões domésticas e eclesiásticas, a galinha tinha também uma expressão política.

Alberto Silva, engenheiro e político piauiense, Governador por duas vezes e Senador da República, só comia galinha quando em campanha política. Era uma estratégia para evitar maiores riscos em sua integridade digestiva, pois candidato recebia convites para experimentar de tudo, especialmente os pratos pesados da culinária regional. Mas, em tudo há controvérsias. Segundo nota da coluna Contraponto, da Folha de São Paulo de 28/09/94, Antonio Britto, quando candidato ao Governo do RGS, esteve em Lavras do Sul fazendo campanha. No dia estava ocorrendo um concurso de gastronomia. Foi convidado a ser jurado da competição. Deveria experimentar os dois pratos finalistas e escolher o vitorioso. A primeira concorrente colocou diante dele um belo prato à base de galinha. Britto olhou a comida, mas teve que explicar: desde criança não conseguia comer galinha. Desculpou-se e pediu o prato seguinte. Constrangida, a segunda cozinheira aproximou-se com seu prato. À base de galinha. Britto deixou a cidade certo de que perdera alguns votos.

O pároco da cidade vivia na Casa Paroquial junto com sua mãe, que se ocupava de todas as tarefas domésticas. Durante um curto período Lavras contou com dois padres: o titular, Pe. André Gomez Munhoz, e o Pe. Hilário. Uma ocasião escutei um diálogo revelador: conversavam eles, descuidados, comentando sobre a vida tranqüila que levavam, sem a necessidade de se preocupar com mulher ou com filhos. Pois então.


A vida de padre tinha lá os seus percalços. Entre os católicos, ao contrário dos pentecostais e atualmente também dos carismáticos, nunca foi levado muito a sério o preceito do dízimo, isto é, a contribuição à Igreja de dez por cento sobre os ganhos do fiel. As oferendas durante a missa costumavam ser do mesmo nível das esmolas. Os padres seculares, hoje chamados diocesanos, ou seja, os ligados à Diocese e não a uma congregação ou ordem, precisavam literalmente se virar para garantir sua subsistência, principalmente em uma paróquia pequena. Necessário, então, assegurar uma ocupação remunerada, normalmente um encargo de professor. Para quem não associa uma coisa à outra, “baixo clero”, termo muito usado para designar políticos ainda sem expressão, é isto aí.

Apesar disto, as famílias que não tinham condições financeiras muito favoráveis procuravam encaminhar seus filhos para instituições que lhes assegurassem uma boa formação: Igreja e Forças Armadas, notadamente. O envio de filhos para o seminário foi mais comum na Região Nordeste, enquanto que no RGS o Exército era o preferido. Razão pela qual até o presente o Exército continua tendo muitos oficiais gaúchos. No Nordeste, alguns dos jovens prosseguiam estudos até quase o estágio final, normalmente em Roma, e desistiam da ordenação na última hora. Se a Igreja não ganhou, a região foi favorecida: boa parte da elite nordestina obteve sólida formação intelectual em seminários.

Belisquei as duas possibilidades. Descartada a ida para seminário, minha família me encaminhou para prestar exames no Colégio Militar de Porto Alegre. 

 
Colégio Militar de Porto Alegre

No entanto, se encontrava alguns atrativos na formação eclesiástica, não vislumbrava nenhum na carreira militar. Assim, previdentemente procurei não me preparar para as provas, que, aliás, eram muito difíceis. Mas, sabe-se lá, de repente o camarada podia passar. Era um risco a evitar. Meu pai me levou para Porto Alegre, junto com outro colega e o respectivo pai. Coincidentemente, meu colega também não estava muito entusiasmado. Mas procuramos fazer nossa parte, afinal os pais estavam gastando com nosso deslocamento, eram três dias de provas. Findo o primeiro dia, ao voltarmos para a pensão onde estávamos hospedados, meu pai, que tinha percebido a situação, perguntou se já podia marcar a passagem de volta. Bueno, aquilo tirou um peso dos nossos ombros, já que não era mais necessário pelo menos parecer interessado na aprovação. Completamos os dias de provas e aproveitamos para conhecer a capital.

Obviamente, estes comentários são pedestres e refletem um momento na vida. Seguir a carreira sacerdotal é algo muito sério que exige vocação e acima de tudo fé. Faltaram-me predicados. Mas que não seja por isto:

 



3 comentários:

Jose carlos disse...

Gostaria de ter esta facilidade em escrever bem. Sempre comento com amigos sobre o Prof. Tadeu que ao mesmo tempor que datilografava (com muita rapidez) e conversava ao mesmo tempo.Esse é o meu padrinho de casamento! Grande abraço.

ilma disse...

Querido Tadeu,

Fabuloso como tudo o que você escreve. Sou sua fã.
Um grande beijo
Ilma

Rosamaria disse...

Também estou entre as tuas fãs, Raimundo. Acho muito legal tudo o que escreves, principalmente sobre Lavras e o tempo de nossa infância e juventude.
Abrs.