quarta-feira, 28 de outubro de 2009

ESPECIALISTA EM SEGUNDO ESCALÃO

Raimundo Tadeu Corrêa

Como nas fábulas, tudo começou quando presenteei um colega com a fita do Elomar, “Das barrancas do Rio Gavião”. Isto foi lá pelo final dos anos 70. O camarada, que conhecia bem nosso panorama musical, tendo mantido no exterior um programa de rádio a respeito, fez um estardalhaço: “que coisa fantástica, como tinha descoberto aquele disco?” Mais do que lisonjeado, fiquei surpreso. Tinha lido alguma coisa a respeito em algum lugar. A receita era simples: para encontrar boas coisas é preciso consultar boas fontes. Aparentemente muitos não seguem a regrinha. À época existia uma cobertura ampla dos lançamentos de discos, como a da revista Somtrês. Atualmente a melhor aposta tem sido por meio dos jornais. O Estadão, por exemplo, é excelente na cobertura de lançamentos.

Até algum momento da década de 80 era relativamente fácil encontrar discos de jovens artistas. Foi quando comprei discos de Cláudio Popó, “Vendedor de vidas”, e Rogério do Maranhão, “Patíbulo” e “Santo de Casa”. Alguém já ouviu falar? A indústria fonográfica apostava em novos talentos de uma forma inimaginável hoje em dia.

Assim, comprando um aqui outro acolá, desenvolvi o gosto pelas novidades e acalentei um sonho que não se concretizou: ter lançamentos de todos os cantos do país, o que foi realizado de forma admirável pelas coletâneas de Marcus Pereira: Música Popular do Sul, Música Popular do Nordeste e Música Popular do Centro-Oeste/Sudeste. Meu projeto, que incluía discos e livros do mesmo Estado, ficou só na intenção.

Apesar de a Internet ter facilitado muita coisa, existe um mercado que está fora da rede, principalmente as manifestações culturais regionais. No processo de busca pelas novidades tive a sorte de contar com várias colaborações. O que me permitiu conseguir, por exemplo, Grupo Acaba - Os Canta-dores do Pantanal, de Mato Grosso do Sul, João Bá, da Bahia, Socorro Lira, de Campina Grande, Elino Julião, do Rio Grande do Norte, e Giovanna Farias, filha de Vital Farias, atualmente em João Pessoa da Paraíba. Ganha-se, afinal, algum conhecimento no ramo.

Quando Roberto Amaral foi Ministro da Ciência e Tecnologia, tive a oportunidade de conviver com José Belizário Nunes, um dos seus assessores. Belizário era o principal redator dos discursos do ministro. Nesta tarefa era de uma tão grande concentração que ignoraria até alguma hecatombe nuclear porventura ocorrida no prédio vizinho. No entanto, nas horas de distensão, de relaxamento, era um sujeito de uma cordialidade extraordinária. Conhecia quase todo o território brasileiro, além de possuir uma boa discoteca e uma invejável coleção de livros de poesia, cronista e poeta bissexto que era. Graças aos seus hobbies consegui, entre inúmeros outros títulos, um grande disco de Chet Baker, “Let’s Get Lost” . Tive também a oportunidade de ler e até mesmo conhecer vários livros dos nossos poetas, como José Chagas, do Maranhão, e Mauro Mota, de Pernambuco: “Ó prematuras mulheres, / fostes, na velocidade / dos jeeps, às garçonnières / da Praia da Piedade” (“Boletim Sentimental da Guerra no Recife”, in “Elegias”, de 1975). Belizário enriquecia o empréstimo com comentários literários, além de relatos da convivência que teve com um e outro. Costumava dizer que a cultura inútil era muito útil para animar reuniões sociais.

De sua parte, gostava de meus “causos” e da movimentação que fazia para conseguir discos daqueles artistas desconhecidos. Um belo dia resumiu tudo em uma exclamação: “mas você é um especialista em segundo escalão”!
A amizade perdurou, mesmo após sua saída do MCT. Grande contador de histórias, Belizário foi finalmente chamado pelo Altíssimo. Certamente para ajudar a entreter aqueles espíritos pios que, em meio a constantes louvores ao Senhor, ainda têm uma eternidade pela frente.

Por ocasião da missa de 7º dia em sua memória, a família distribuiu um folhetinho que reproduzia , de um dos seus textos, um legado comportamental:

Ao amigo camarada: que tenha muitos natais, viva cinco ou seis mil anos – se puder, um pouco mais; vote em muitas eleições, brinque muitos carnavais, acampe em claras planícies e vales imperiais; tenha roçado e fazenda, muitas frutas tropicais, armada, cavalaria, castelos medievais, dezenas de anéis nos dedos, de variados metais, muito dinheiro no bolso e objetos pessoais, seu retrato nas revistas, entrevistas nos jornais; que tenha uma sogra só, pois uma já é demais; brigue em briga de boteco, porém, na guerra, jamais; que tenha sortes constantes e azares eventuais, pois é próprio deste tempo ter os dias desiguais; que implante mil plataformas em mares fundamentais; curta bem sua poesia, sua paz, sua alegria, seus recursos naturais.

Belizário falou e disse.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Saint Exupéry - Aviador por profissão, escritor por vocação (e devoção)

Emanuel Medeiros Vieira

Saint Éxupery

Antoine de Saint Exupéry (1900-1944) deve estar no vasto Mediterrâneo. Nunca acharam o corpo deste aviador por profissão e escritor por vocação (e devoção).
Não importa. Ele é do mar e de todos nós.
O grande Antoine um dia desceu na nossa ilha, no Campeche (felizmente, antes de sua favelização).
Não, não é, como muitos pensam, um escritor das misses que, com suas curtas massas encefálicas, nunca o entenderam. É maior. Leiam só o final de “Terra dos Homens”, na tradução de Braga.

Traduzi trechos do livro de Saint Éxupery.
Mas a versão do maior cronista brasileiro de todos os tempos é perfeita.
Leiam: “O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.
Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o homem.”

ARTHUR RIMBAUD

Tive a ousadia de fazer uma tradução de “O Barco Bêbado”, de Arthur Rimbaud (1854-1891), um dos mais belos poemas de todos os tempos.
Algumas fontes informam que ele escreveu essa obra-prima aos 17 anos.
Ele nasceu na cidade francesa de Charleville.
Foi um aluno brilhante, e aos 15 anos já havia ganho vários prêmios por composições em latim.
Em 1871, escreve vários poemas, que envia ao já célebre poeta Paulo Verlaine (1844-1896).
No mesmo ano, vai para Paris, onde Verlaine o introduz à comunidade literária.
Resumindo: Verlaine abandona a mulher e o filho por sua causa.
Em 1872, os dois vão até Londres e Bruxelas.

Jean-Nicola Arthur Rimbaud

No ano seguinte, em meio a uma briga, Verlaine atira duas vezes no amante, e é condenado a dois anos de prisão.
Rimbaud volta a Charleville e termina o livro “Une saison en enfer” (“Uma temporada no inferno”).
Esta obra inspirou o cineasta Jean Luc Godard (1930) na construção de um de seus mais importantes e belos filmes: “O Demônio das Onze Horas” (“Pierrot le Fou”), de 1965.
Em 1874, Rimbaud retorna a Londres e conclui “Illuminations” (“Iluminações”).
Aos 21 anos pára de escrever.
Sim, desiste da poesia na casa dos 20 anos.
Decide trabalhar, viaja muito, vive “relacionamentos amorosos com exóticas nativas e ganhando a vida como traficante e comerciante de armas.” (Paulo Hecker Filho).
Volta à França em 1871 e tem a perna amputada.
Morre em Marselha, em novembro de 1891, aos 37 anos.

Vinícius de Moraes (que leu tudo) confessou a Paulo Hecker Filho: “O maior de todos é Rimbaud.”
Henry Miller afirmou: “A última palavra do desespero, da audácia, da maldição. A poesia tudo deve a Rimbaud. Até agora ninguém o superou em audácia e imaginação.”

POESIA

Os poetas, como os cegos, enxergam na escuridão.
Hoelderlin já nos ensinava: “O que permanece, fundam-no os poetas.”
Alphonsus de Guimaraens Filho escreveu: “Se não for pela poesia/como crer
na eternidade?”
Numa mensagem, meu amigo Ronaldo Cagiano, confessa: “Um minuto no túmulo de Balzac, uma tarde à beira do Sena ou um café n’A Brasileira, onde sentou Pessoa, me ensinam mais que todas as religiões e filosofias.”
Kafka já dizia: tudo o que não é literatura me aborrece.
Complementa Cagiano, o colega escritor: Não tenho medo de andar contra a corrente. A vida não é feita de adesões ao política, estética e culturalmente correto, mas ao que tem dimensão onírica, humana e solitária. E isso não dá votos, nem resenhas na Folha.”

Me perguntaram numa escola aqui em Brasília: “Como se faz um bom livro?”
Eu sorri, sala cheia, jovens de 20 anos.
Sabia de cor a resposta de Somerset Maugham: “Há três regras para se escrever um bom livro. Infelizmente, ninguém sabe quais são.”
Dia de citações, não é? Meus perdões.
Porque escrever não tem receita. Tem inspiração sim. Mas tem muito trabalho. “Transpiração”, disciplina. Há que começar a faina diária mal rompe a aurora.
Todos os dias, todos.
E ler, muito. Reler. Ler mais. Sempre. Até o último suspiro.
Se paramos de ler, vamos morrer.
O aprendizado da escrita é misterioso.
“O processo de aprender a escrever é desanimador porque é inexplicável”, afirma Alberto Manguel.
Ele complementa: “A leitura é uma atividade pela qual os governos sempre manifestaram um limitado entusiasmo”
É claro. A leitura abre os espíritos.
A literatura “revela”.
A verdade liberta. Com ela no seu coração, você não votaria mais por ter recebido uma esmola, um saco de cimento, umas telhas ou uma bolsa-família.
Ler sempre incomoda os ditadores, os napoleões tupiniquins, desagrada os poderosos, os idiotas e medíocres de plantão.
E, no geral, eles estão nos órgãos ditos culturais, com o seu vasto número de funcionários entediados, seus burocratas mesquinhos e seus lanches vespertinos, suas panelinhas burlescas, que querem camuflar o seu enorme vazio com roupas chics ou retóricas e preciosismos. Não enganam. Não adianta. São figuras que merecem a piedade. Serão varridos por qualquer vento sul. Podem receber prebendas, se acham “sérios”, às vezes assinam colunas diárias.

Mas serão sempre figuras menores: aquelas que morrerão sem a solidariedade de si mesmas.
Manguel lembra que Pinochet proibiu “Dom Quixote”, de Cervantes.
Lógico, o leitor lendo Quixote descobriria a alma nazista do facínora sanguinário que foi o ditador chileno, uma besta do Apocalipse sul-americano.
Penso no que disse um republicano espanhol (pai de um escritor) que passou muitos anos numa prisão política:
“Até na cadeia vocês serão mais felizes de gostarem de ler.”
É verdade!
O que me salvou nos meses de prisão política no DOPS foi a leitura (na OBAN não permitiam: lá era só porrada).

LEMBRANDO PRESTES

Agildo Barata estava numa cela com Luiz Carlos Prestes, em 1945. Notou um opúsculo de capa verde. Na capa: “Pensamentos de Augusto Comte”. No interior: aforismas estóicos, que Prestes traduzia do grego para passar o tempo. E dizia que como a capa era de Comte, os milicos não iriam tomá-la.
Conclusão de Barata: quando penso em Prestes, penso sempre num livro de máximas estóicas e de capa positivista.
“Que sacada, hein”, interpreta o meu velho amigo Flávio Aguiar (desde 1962, no Colégio Anchieta, em Porto Alegre), editor do “Carta Maior”, e que agora vive em Berlim.
Essa cidade sempre me emociona, pois lá varei noites conversando com Luiz Travassos, tomando todo o vinho alemão existente, a gente caminhando até perto do Muro.
Ele lá exilado. Eu fugido da “ditabranda”, segundo a Folha.
Voltando ao líder comunista: quando penso em Prestes penso mais num pensamento granítico e positivista de um homem íntegro, profundamente digno (às vezes equivocado, mas nunca desonroso).

Luis Carlos Prestes

Por exemplo: sua aliança (“Constituinte com Getúlio”) com Vargas (que o deixaria muitos anos preso nas mãos do perverso Filinto Miller) foi um erro ou uma necessidade naquele momento, em função de um projeto político maior?
Em termos éticos não se justifica. Foi Filinto quem entregou Olga, a mulher de Prestes, para a Gestapo.
Prestes era mais positivista que comunista. Estou equivocado?
David Nasser escreveu um livro chamado “Falta Alguém em Nuremberg”.
Esse alguém era Filinto “carrasco” Miller, que foi presidente da ARENA, o “maior partido do Ocidente”, segundo o inesquecível Francelino Pereira.
Francelino foi quem fez a nunca respondida indagação: “Que país é esse?”
Lembrando: a polícia política do Estado Novo (1937-1945), chefiada por Filinto Miller, arrancou com torquês um dente de Carlos Marighella.
Marighella, segundo o juízo insuspeito de Jarbas Passarinho (que fez a célebre proclamação no dia da promulgação do AI-5, 13 de dezembro de 1968: “às favas com os escrúpulos, senhor presidente”), teria sido o homem mais corajoso que existiu no Brasil no enfrentamento da tortura.


TRANSPOSIÇÃO


Grais, o momento mais emblemático e dramático do meu romance “Olhos Azuis – Ao Sul do Efêmero” (sua gestação durou 12 anos).
A personagem Júlia amava demais aquele rio e queria morrer perto dele.
Amo tanto e conheço um pouco a sua “vida” (para não parecer imodesto). Conheço o velho Francisco em Minas, em Sergipe, na Bahia...
O rio está morrendo. E a transposição não o salvará.
A quem serve a transposição? Às empreiteiras, às oligarquias nordestinas, às empresas do agro e do hidronegócio, aos políticos fisiológicos dos partidos hegemônicos, aos prefeitos e vereadores corruptos, à vocação megalomaníaca de Lula, que na avaliação de muitos é uma espécie de Médici do populismo.
A transposição serve ainda a outros interesses menores.
Não ajuda às populações ribeirinhas. E só deveria servir a elas.
Quem diz isso não é o DEM ou PSDB, não é gente de “direita”: é a Comissão Pastoral da Terra.
Rubem Siqueira, sociólogo desta comissão, diz que a “vistosa” obra da transposição é um “achado”do ponto de vista do marketing da costura política e econômica.
Para ele e para nós, a obra “não só cabala votos, mas encanta as oligarquias nordestinas e atrai abastados doadores de campanha como as empresas envolvidas na construção e no usufruto do projeto público, poderosas empreiteiras e aquelas não menos poderosas do agro e do hidronegócio.”
Ruben Siqueira lembra que os “Pais da Pátria”, os que buscam unanimidade servil sempre acabam virando ditadores.
Pena que a Ilha natal esteja tão longe do Rio São Francisco.
Pois quem conhece um pouco a situação, como algumas pessoas de bem do Nordeste e de outras regiões, estão cientes de como é equivocada (meu coração gostaria de chamá-la de criminosa) a chamada transposição do Rio São Francisco.
É de uma crueldade inqualificável o que estão fazendo com as populações ribeirinhas.
E com o rio.
Pobre Francisco, que já foi o rio de nossa unidade.
Belo Francisco!
Quem assistiu a um por-do-sol em Três Marias, MG, sabe do que estou falando. Falo de sua beleza.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

UM BLOG DO SÉCULO XIX

Raimundo Tadeu Corrêa

Como todo mundo sabe, ou já esqueceu de tanto saber, os blogs surgiram como diários postados na Internet: os web logs, i.é, o lugar de alguém na rede. Em sua fase inicial nossos blogs foram o grande meio de expressão dos adolescentes, de idade ou de espírito. Eram descrições literais do que o sujeito estava fazendo, tipo “um passarinho pousou na minha janela”, ‘hoje acordei de mau humor”, etc. Visto de uma perspectiva etária algumas décadas acima, pareceriam trivialidades que só poderiam atrair leitores por alguma razão inexplicável. Nem tanto, porém. Por estas mesmas razões de curiosidade atávica é que os programas de televisão tipo Big Brother são um sucesso estrondoso . Uma amiga de minha mulher, entusiasta ardorosa desta, digamos, modalidade de entretenimento, usa como argumento a seguinte pergunta: “vocês não gostariam de saber o que se passa no apartamento do vizinho?” Bueno, pode ser que sim, desde que se fosse vizinho da Família Adams, do Ozzy Osbourne, ou de qualquer outro núcleo familiar que pudesse, pelo exotismo, despertar curiosidade.

Com a diversificação temática, hoje os blogs abordam de tudo: notícias, opiniões políticas, crítica de arte, poesias, crônicas, até expressões libertárias, como o blog da cubana Yaoni Sánchez, que acaba de receber o prêmio Maria Moors Cabot de Excelência Jornalística para a América Latina e Caribe, concedido pela Escola de Jornalismo da Columbia University, Estados Unidos.

Até bem pouco tempo, os antecessores dos blogs eram os famosos diários. Toda adolescente tinha um. O que poderia até levar à imortalidade literária, como “O Diário de Anne Frank”. Outro exemplo clássico é a belíssima edição “Joaquim Nabuco Diários”, Volume 1 (1873-1888) e Volume 2 (1889-1910), publicação da Bem Te Vi Produções Literárias e da Editora Massangana. A coordenação da obra, elaboração de prefácios e notas, foi de Evaldo Cabral de Mello. Abaixo encontram-se transcritas algumas anotações de Joaquim Nabuco, diplomata e abolicionista:

Como o cérebro tem afinidade para certos venenos, o coração tem-na para certas tristezas. As afinidades eletivas são tão químicas como morais. (03/01/1877)

O inferno, o pandemonium, a região dos fantasmas e dos pesadelos, o círculo eterno do desejo e do sofrimento, o demônio e a tentação, o veneno que torna louco, tudo isso chama-se o eu, quando ele quer sair fora de si mesmo. O eu, o sentimento continuado de si mesmo, o eu formando o centro de tudo, o fim de tudo, é de todas as doenças a pior e infelizmente a mais incurável. O suicídio, a loucura, ou a devassidão é o termo a que ela leva o homem. Os possessos desse demônio são os mais infelizes de todos. O único meio de aliviar o sofrimento dessa melancolia, agitada em suas aspirações, impotente em sua saciedade, sombria como as trevas visíveis do espírito, é esquecer-se, e nenhum narcótico pode ser condenado como imoral porque nesse caso o sono ou a morte é melhor do que a consciência. (15/01/1877)

Um estudo sobre as galerias de New York, e se possível dos Estados Unidos, não deixaria de ser curioso. O que distingue essas galerias é o mau gosto e a confusão. Os bons quadros parecem esconder-se com vergonha do maior número. As exposições de pintura aqui são mais freqüentadas à noite. Os americanos apreciam melhor os quadros à luz do gás. (03/03/1877)

Teoria do casamento com estrangeiras
Eu tenho desenvolvido a teoria de que o amor, sendo em grande parte a sede do desconhecido, a mulher que mais longe está de nós, pela raça, pela língua, pelo nascimento (em certas classes envolvendo sempre a aspiração da ambição) é a que mais nos convém. É preciso porém que esse homem e essa mulher tenham de comum entre si esse amor absoluto um do outro, sem o qual todas essas diferenças tornam-se inconciliáveis e perdem todo o interesse, e são antes obstáculos do que estímulos.
A inocência é a poesia da força. Nada devia ser mais agradável aos heróis do que serem levados ao banho pelas virgens e perfumados e vestidos por elas. (27/05/1877)

- Ela sabe esconder muito bem os seus sentimentos, e não é uma pessoa de quem se possa saber o que sente, me dizia Miss O. falando de Miss Work. “Realmente, ela os esconde tão bem que ela mesma não os acha”, respondi-lhe. (22/06/1877)

O homem sociável pode ser muito diverso do homem solitário? Posso eu no fundo ser inteiramente outro do que pareço quando na sociedade? A minha natureza pode ser melancólica sem que os que vivem comigo o saibam pelo simples fato que a presença deles afugenta o homem solitário. Meses e meses eu não penso em religião nem em poesia, mas quando volto a elas, o prazer que sinto revela-me que a tristeza do pensamento solitário é a pedra-de-toque de minha natureza. (07/09/1877)

Em Petrópolis, Taunay nos conta a história do coronel gaúcho que disse ao conde d’Eu que a mulher dele era como a princesa, machorra.
- O que quer dizer machorra?
- É como se chama em minha terra a égua que não pare.

Há muito que eu sofro cada dia, e receio. De ora em diante, tomo a vida como ração. Deus não me dá a vida mais aos anos, mas aos dias, dia a dia, e assim talvez venha ser melhor mais tarde... Em todo o caso, sinto-me viver no dia-a-dia e não mais ilimitadamente, a prazos longos, sine die. (29/11/1901)

Os dois maiores amores são o de Deus e o de si mesmo (amar ao próximo como a si mesmo, Jesus sabia o que dizia), pois são os únicos cujo objeto não pode morrer para o homem. A todos os outros amores, ele pode sobreviver. (08/12/1902)

Começo hoje a minha nova devoção da Boa Morte. Entro mentalmente no período preparatório. Quando Deus soprar a minha vida, como se sopra uma vela, que o faça com um sopro brando e sem desprezo da sua pobre criatura. (05/10/1903)

Exemplo de um dia meu agora: acordo às 9h30, rezo, tomo o meu café (dois ovos, duas xícaras de café com leite, quatro toasts grandes com manteiga) seguido de bismuto, da trinitina e da estricnina às 10 h. Sem descanso leio logo os cinco jornais da manhã; escrevo duas cartas, uma a Mrs. Fish (esta antes do almoço), outra ao Silvio Romero, agradecendo-lhe o último livro. Escrevo longa carta a Mr. Rowe, agradecendo a que me escreveu, recebida hoje. Deito-me uma meia hora para descansar. Depois ao “gabinete”. Faço a barba sentado, depois venho ler a Vida de Gladstone, por Morley. Escrevo ao Bassett Moore. Almoço canja à 1h45. Descanso uns vinte minutos deitado. Depois arrumo papéis e às 5 h, massagem. Depois da massagem, brincando com os meninos no quarto de Evelina até a hora do banho. Em seguida, às 8h, o jantar. Depois conversando e arrumando papéis no gabinete até às 11h. Às 11h30 deito-me. (17/12/1906)

Deus seja louvado por não poder eu ver uma bela cena, um belo dia, sem que a primeira tecla ferida em meu espírito seja a do reconhecimento da criatura pela bondade do seu Criador, que lhe oferece mais esse espetáculo. E, assim, toda impressão de beleza, física ou moral e, por assim dizer, cada respiração dos que me são caros, cada alegria deles. (27/09/1909)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

FILOSOFANDO COM SÊNECA E NIETZSCHE

Emanuel Medeiros Vieira

Em “O Nascimento da Tragédia (1872), Friedrich Nietzsche (1844-1900), define os conceitos de apolíneo e dionisíaco.
Da maneira mais sumária, apolíneo seria a representação das regras e dos limites individuais.
Dionisíaco: a liberação do impulso, a libertação, dos instintos.
A classificação é mais usada para artistas e filósofos.
Mas por que não usar para seres humanos?
Desde que sejam pessoas de bem, sensíveis, nutridoras e não vampirizadoras (essa classificação é minha).
É um desafio.
Exemplo: da minha “Santíssima Trindade Literária”, Dostoievski é um dionisíaco. Camus, apolíneo . E Kafka?
O estilo cartorário, até “clássico”, seria apolíneo. Mas a alma, o espírito premonitório, aquele tipo de “mediunidade” que perpassa seus textos? Seria, nesse caso, dionisíaco.
Quero dizer, às vezes os dois se embutem.
No Brasil, Cruz e Sousa, Lima Barreto, Glauber Rocha, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Raul Seixas, são dionisíacos.
Em Portugal, Fernando Pessoa, entre outros.

Apolíneos? Olavo Bilac, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral.
Em terras lusas, Eça de Queiroz.
No caso de Guimarães Rosa, creio, os dois conceitos se embutem.
Nos trópicos (falo dos artistas) parece que os dionisíacos preponderam. Já na vida...
Para sobreviver num mundo tão áspero e como mecanismo de defesa, externamente, os seres humanos procuram ser mais apolíneos.
Muitas vezes, só na casca, não na essência.
E Machado de Assis?
Nele, os dois se embutem, apesar de à primeira vista ser claramente um apolíneo.
A busca de um estatuto de respeito por ser mulato numa sociedade preconceituosa e racista , forjada na escravidão, faz de Machado um crítico sutil da moral de seu tempo.
Cria a Academia Brasileira de Letras que, no fundo, significa um busca de legitimação estatuária e oficial, em termos de sociedade.
Meu amigo e colega de ofício Lourenço Cazarré, com humor, diz que ele era portador da “síndrome de Michael Jackson”, pela obsessão de ser branco...
Nele, os dois conceitos se embutem.
E Euclides da Cunha? O barroquismo do texto faz pendê-lo para o dionisíaco.
João Guimarães Rosa?
Nele os dois conceitos, creio, se embutem.
No futebol, Garrincha e Maradona são dionisíacos, e Zidane, um apolíneo.
O próprio Nietzsche seria um dionisíaco.
Cada leitor poderia fazer a experiência interna de se classificar.
Eu sei, somos muitas vezes os dois.

Insisto: filosofar é fundamental.
Na reforma de ensino, retiraram a filosofia da grade curricular. Tiraram no fundo, uma oportunidade rara para o brasileiro pensar.
Sinceramente, quem não conhece um pouco de filosofia perde uma grande oportunidade de crescer no tempo de sua existência.
A filosofia pode nos ensina a viver.
Nos últimos 200 anos, a despeito de todos os sofrimentos, o mundo ocidental viveu sob o domínio de uma crença no progresso, baseada em realizações científicas e empresariais extraordinárias.
Tivemos guerras sem fim, o holocausto, sofrimentos, golpes, exploração: esse otimismo “público” seria uma grande anomalia.
Porque na verdade, os seres humanos passaram os séculos esperando o pior.
No Ocidente, as lições sobre o pessimismo derivam de duas fontes: os filósofos estóicos romanos e o cristianismo.
“Talvez seja a hora de revisitar esses ensinamentos para aliviar nossos pesares”, ensina Alain de Botton.
Sêneca (I a.C. – 65 d.C.) seria um filósofo perfeito para o nosso momento histórico.
Vivendo numa época de tremenda inquietação política (Nero ocupava o trono imperial), Sêneca interpretava a filosofia como uma disciplina que servia para nos manter calmos diante de um panorama de constante perigo.
Sêneca lembrava no ano 62 que desastres naturais ou de causa humana serão sempre parte de nossas vidas, por mais sofisticados e seguros que acreditemos nos termos tornado.
O filósofo escreve que “não existe nada que a fortuna não ouse”, mas lembra que devemos ter em mente o tempo toda a possibilidade dos mais devastadores eventos.
Recordemos: tivemos duas guerras mundiais.
Basta lembrar o sofrimento que elas causaram.
Sêneca diz mais: “Nada nos deveria ser inesperado. O que é o homem? Um vaso que ao menor tremor, ao menor impacto, pode quebrar.”
Reli há pouco o belíssimo “Sobre a Brevidade da Vida”, deste filósofo
Em 62 d.C., Sêneca pede permissão para retirar-se da vida pública. Nero recusa. O filósofo vive então numa semi-reclusão e escreve suas melhores obras.
Em 65 d.C., é acusado de estar implicado numa conspiração contra o imperador. Nero ordena que se suicide.
“Assim termina a carreira daquele que, por quase dez anos, governou de fato o Império Romano”.
Com ele, como observa William Li, pela primeira vez a filosofia estóica teve a experiência do poder.
Não há espaço (agora) para meditar sobre a posição do cristianismo nesse assunto.

Correndo o risco de me tornar superficial para não ficar cansativo, queria lembrar a importância dos aforismos na obra de Nietzsche.
“Além do Bem e do Mal” (1886) é das suas obras mais importantes, retomando os temas mais decisivos de “Humano, demasiadamente humano” (1878-80).
Resumindo: para o filósofo alemão, o homem aspira à imortalidade, mas isso não significa – nem importa – nada, já que a realidade se repete a si mesma num devir renitente, que constitui o eterno retorno.
Para ele, como observou Marcelo Bakes, o homem só se salva pela aceitação da finitude, pois assim se converte em dono do seu destino, se liberta do desespero para afirmar-se soberanamente no gozo e na dor de existir, ultrapassando os limites da sua condição.
Seu pensamento foi tremendamente deturpado e manipulado por muitos, como por sua irmã Elisabeth e pelos nazistas.
Por exemplo: o conceito de conceito de “super-homem”.
Foi tremendamente desfigurado. Nada tem a ver com os carrascos nazistas, nem com os heróis que veríamos depois nos quadrinhos ou no cinema, ou com gente que malha em academia.
Pelo contrário, o filósofo consideraria esses tipos os mais obtusos.
No fundo, ele fala dos seres maiores que ultrapassariam a mediocridade, a indolência, a autopiedade, o sentimentalismo reles (como as telenovelas de hoje em dia), que conseguem sair do rebanho pela sua força interior, pela sua determinação, pela sua audácia, pela sua bravura, pela sua grandeza.

E o aforismo?
Ele viveu sempre entre a fronteira entre a poesia e a filosofia.
“É um estilhaço de pensamento, uma máxima espirituosa de fôlego curto e sabedoria imensa”.
A tradição do aforismo é antiga. Hipócrates foi o primeiro escritor de aforismos, já por volta de 400 a.C.
O procedimento aforístico também marcou a obra de Heráclito, a especulação moral de Sêneca, a observação histórica de Plutarco, as cartas de Marco Aurélio, a ética de Confúcio e as sentenças de Salomão.
A importância do aforismo na obra de Nietzsche é imensa, como já era em parte no caso e Schopenhauer e, mais ainda no de Blaise Pascal e Nicolas Chamfort.

Dois exemplo de aforismos no filósofo alemão: “Muito pavão esconde aos olhos de todos a sua cauda de pavão – e chama isso de seu orgulho.”
O segundo: “A mulher aprende a odiar na medida em que desaprende a – enfeitiçar”.
Filosofemos, amigos. Filosofemos!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Catarse e testemunho existencial

Ronaldo Cagiano (*)

Das muitas leituras que podemos fazer de uma trajetória de vida ou de uma obra literária, a que melhor pode refletir o homem ou definir o escritor é o sentimento de indignação. Refiro-me àquele que nasce do espírito e da consciência de quem, ao olhar o mundo, é capaz de extrair dessa mirada a sua permanente visão crítica, como farol para seu posicionamento diante das questões que afetam o homem, o mundo e as instituições.

A vida e a literatura de Emanuel Medeiros Vieira, autor de cerca de duas dezenas de livros, é ressonância de sua imensa preocupação com o homem e sua transitoriedade. No conto, na poesia, no romance, na crônica ou nas intervenções jornalísticas, percebe-se um escritor mergulhado profundamente nas questões cruciais que dizem respeito ao ser e seu lugar no mundo.

Herdeiro de uma tradição literária humanista, Emanuel vem construindo sua bibliografia dentro de uma perspectiva crítico-filsófica em que a problemática existencial é tema recorrente em sua obra. A passagem do tempo, a morte, o sucateamento dos valores éticos e morais, o enterro das utopias, a incomunicabilidade do homem contemporâneo na sociedade globalizada (seduzido pelos fetiches do deus-mercado) e seu consequente isolamento num tempo de coisificação e etiqueta vêm sendo mapeadas pelo autor desde seus primeiros trabalhos poéticos e ficcionais.

Ainda há pouco, Emanuel experimentou uma prova de fogo em sua caminhada. Vitimado por uma infecção que afetou todo seu metabolismo, viveu seu apartheid psicológico num leito de hospital por algumas semanas. Nesse período, considerado um divisor de águas em sua vida, escreveu um obra tão pungente quanto arrebatadora, em que passou em revis(i)ta à sua trajetória pessoal e intelectual, legando um testemunho literário emocionante, inventário e balanço dessa terrível travessia. Cerrado desterro (Ed. Thesaurus, DF, 20008), primeiro volume de uma obra de cunho memorialístico e intimista, mas sem o vezo da autocomiseração ou sentimentalismo, abriga densa e (in)tensa indagação existencial. Vieira nos dá a conhecer a sua terrível experiência da enfermidade, ao mesmo tempo em que faz um meticuloso e introspectivo encontro de contas com o passado (tanto o pessoal como o político). Nesse texto candente, rememora suas lutas, discute temas hoje tão negligenciados na literatura e na arte, percorre os tempos difíceis da ditadura (quando colocou sua palavra a serviço da luta e da esperança), relembra os amigos, os livros de cabeceira, os autores que influenciaram sua formação moral, espiritual e filosófica e as relações afetivas e culturais. Nesse trânsito entre o passado e o presente, flertando com a realidade, a invenção e a memória, expõe a coerência dos propósitos que não morrem, sem envergonhar-se das ilusões que ainda alimentam sua alma, porque, apesar das contradições e dicotomias da era moderna, ainda crê na vida e faz da literatura sua catarse, seu salto dialético, sua ponte sobre os escombros da própria civilização.

Todo o trabalho de Emanuel, desde seus primórdios como estudante em Florianópolis ou Porto Alegre até radicar-se em Brasília, onde desde 1979 exerce a assessoria de imprensa na Câmara dos Deputados, é um testemunho de seu inesgotável “sentimento do mundo”. Em seus livros, o poema ou a narrativa não se esgotam num simples projeto editorial ou mercadológico, é uma confissão íntima, uma declaração e uma confiança no trabalho criativo como êmulo de sua razão de ser e viver. Como Alfredo Bosi, que entende que “só a arte é capaz de tirar o homem de sua total imbecilidade”, ou Fernando Pessoa, para quem “toda literatura é sempre uma expedição à verdade”, Emanuel concebe seus livros como instrumento para se entender o mundo, para vencer a solidão, para compreender nossas fraquezas e limitações e, acima de tudo, para ir fundo, cada vez mais fundo, doa o que doer – e a quem doer – naquilo que incomoda, avilta, humilha e nos apequena, seja na vida, na literatura, na política ou na história das instituições. Seus livros, como um rio, como um mosaico, são vertentes e repositório de seu fluxo onírico, são expansões de seu aguçado senso de observação, são contundentes e vulcânicas extrapolações de um inconsciente que vasculha os escuros da alma, os infernos da vida e as mazelas da morte.

Com sua prosa visceralmente inquieta (e inquietante), Medeiros Vieira deixa uma valiosa contribuição, como autor e como homem, à inteligência e à bibliografia nacional, embora injustamente negligenciado pela lógica editorial do hegemônico e monopolista eixo Rio-SP. Seus livros são um repositório de idéias, sonhos, posições e preocupações com o nosso destino, o que mais uma vez se confirma no recém-lançado romance Olhos azuis, ao sul do efêmero (Ed. Thesaurus, DF, 2009), quando retoma a sua inesgotável capacidade ficcional e fabulatória, sem deixar de lado nas suas histórias o viés que sempre deve marcar a passagem do homem pela Terra, que é jamais perder sua disposição para se indignar diante das injustiças, do caos, do fracasso das ideologias e da derrocada dos valores. Como Borges, o autor catarinense também entende que “A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo.”

(*) Autor de Canção dentro da noite (poesia) e Dezembro indigesto (contos), dentre outros. Vive em São Paulo.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Memória e Linguagem

Emanuel Medeiros Vieira

Quero falar da memória não como algo mecânico, mas como base de toda a identidade.
Memória como instrumento de justiça e de misericórdia.
Não por acaso, na mitologia grega, Mnemosina, a memória, é a mãe das Musas, ou seja, de todas as artes, do que dá forma e sentido à vida.
Sim, ela protege a vida do nada e do esquecimento.
A literatura não deixa de ser (também) um instrumento de transfiguração de um momento (eternizar a memória).
Uma busca de perenizar o instante para convertê-lo em sempre.
O ato da lembrança é ao mesmo tempo caridade e justiça para as vítimas do mal e do esquecimento.
Muitas vezes, indivíduos e povos desapareceram no silêncio e na escuridão.
Muitos devem se lembrar das ditaduras que, apagando as fotografias dos banidos querem, em verdade, apagar a sua memória.
A memória é resistência a um tipo de violência: àquela infligida às vítimas do esquecimento.
A memória é o fundamento de toda identidade, individual e coletiva.
Guardiã e testemunha, a memória é também garantia da liberdade.

A linguagem é edificada para a construção dos textos que querem eternizar nossa brevidade, a nossa finitude.
Como observa a filósofa e historiadora, Regina Schöpke, “quanto mais inconsciente ou subliminar é a linguagem, mais fortemente ela age sobre nós, mais ela nos domina e nos dirige.”
Os filósofos e filólogos sabem disso.
Estes últimos, veem nela não apenas uma ferramenta da razão para dar conta do mundo, mas, sobretudo, uma segunda natureza.
“Algo que, de certa forma, produz o mundo, e não apenas o representa”, como observa a autora citada.
Os gregos já enfrentavam a questão.
Nietzsche – que além de filósofo era também filólogo – chamava esse universo da linguagem de “duplo afastamento do real”, de “segunda metáfora”.
Porque aí os homens lidavam com conceitos e não apenas com o mundo em si.
A linguagem pode ser instrumento de dominação, estimulando um preconceito racial, como fizeram os nazistas, alimentando o fanatismo e o preconceito, gerando um horror como raramente (ou nunca) se viu na História.
Todo sistema com ambições totalitárias, como detectou a pensadora, tem necessidade de produzir um discurso, uma mitologia e palavras de ordem.
O que é a publicidade que só pensa em vender, sem nenhum compromisso ético?
É um exercício mental doloroso, mas assim a gente pode entender como uma cultura que produziu tanta beleza com Goethe, Beethoven, Nietzsche, Hegel, Wagner e outros, tenha mergulhado, com o nazismo, na mais profunda irracionalidade, onde o Mal apareceu com toda a sua força, ou melhor, em toda a sua plenitude.

Tento meditar sobre esses assuntos, entre outras razões, porque a falta do estudo da filosofia para quem tem menos de 60 anos, criou um tremendo vácuo cultural.
Fundou-se o universo utilitário, da posse imediata. Só vale o que tem valor contábil.
Faço minha a proclamação de Michel Foucault: “Não se apaixone pelo poder.”

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Homenageando Paulo Leminski, nos 20 Anos de sua morte:
“me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão”
(Poema “para a liberdade e luta”, do livro “Polonaises”)