Nossos inesquecíveis professores (4): os
professores de Ciência Política – José Antônio Giusti Tavares
Conforme já contei, prestei muita ajuda aos
professores na datilografia de textos. A situação que mais me atraía era quando
chamado pelo Prof. Tavares. Isto porque o convite sempre era acompanhado de um
almoço, um lanche ou um jantar, situações potencializadas pelas excepcionais qualidades culinárias de
sua esposa, Élida, chamada por ele carinhosamente de “Brotinho”. Tavares me
chamava para datilografar suas traduções do italiano e suas conferências. Mesmo não
sendo um especialista no ramo, traduzia do italiano excepcionalmente bem. Conseguira
algumas curiosidades, como long-plays com discursos de Benito Mussolini. No intervalo para descanso, após as refeições, colocava em sua vitrola discos de
música clássica. O que, naqueles tempos,
era uma
experiência um pouco trabalhosa pela necessidade de estar trocando os discos.
Certa feita, após o almoço colocou a Nona Sinfonia de Beethoven, que consistia de dois discos de vinil,
quatro lados portanto. Acostumado a
sestear, precisei de um esforço hercúIeo para ficar de olhos abertos e ouvidos
atentos. Esta sinfonia, a mais longa delas, com 74 minutos, serviu de parâmetro
para o desenvolvimento do CD, cuja dimensão (12 centímetros de diâmetro) foi
escolhida para poder comportar toda a Nona Sinfonia.
Tavares deve ter sido um dos nossos professores onde as
ambivalências e as perturbações do lado humano mais se sobressaíam. Na época em
que foi nosso professor, antes portanto de ter deslanchado sua formação
pós-graduada, vivia obcecado com a tentativa de formular uma hipótese inovadora
no campo da teoria política. Costumava me perguntar: “o que achas, caríssimo?”
Pobre de mim, não tinha bagagem suficiente para avaliar se a proposição era
algo inovador ou não. Sempre respondia que me parecia bom. No dia seguinte,
Tavares aparecia contrariado: “pensei que estava criando algo novo, depois me
dei conta de que isto estava em uma passagem do livro do Carl Friedrich”. Mas
ia em frente. Lembrava um personagem de Machado de Assis, o maestro Pestana (do
conto “Um Homem Célebre”) que passou a vida inteira tentando criar uma música
clássica que fosse inédita, mas só conseguia criar polcas, pelo menos todas de
grande aceitação popular; de vez em quando achava que estava no caminho certo,
até a esposa lembrar “isto é Chopin”. Assim foi até o fim da vida. Tavares teve
sorte distinta. Depois que deslanchou, após a pós-graduação, nunca mais precisou
compor polcas.
Tavares e eu - o mestre e o aprendiz (Caxambu - MG, 1995)
Ainda em começo de carreira, como professor assistente
de tempo parcial, Tavares precisava melhorar o orçamento com outras atividades
didáticas. Lecionava História em um colégio de segundo grau. Conhecendo seu
dia-a-dia, sua rotina, perguntei em que horário ele preparava aula para estas
turmas. Porque era evidente que ele não tinha esta preocupação. Contou-me que
ia pensando na aula enquanto dirigia. Ao chegar em classe, praticava o que
chamava de “terrorismo cultural”: propunha uma questão que chocasse pelo
inusitado. Depois desenvolvia o tema que já tinha esboçado. Uma estratégia assemelhada era utilizada pelo
Prof. Laudelino, de Sociologia. Velho mestre, não muito longe da aposentadoria,
não se preocupava em gastar mais tempo com o preparo das aulas. Já sabia tudo.
Só precisava se situar. Assim, todo começo de aula, ele andava de um lado para
outro e de repente apontava para um de nós e perguntava bem devagarinho,
escandindo as palavras: “De que matéria estivemos tratando na última aula?” Este
estratagema funcionava. Antes da aula a gente procurava relembrar o assunto anterior
para não ser pego de surpresa. Enquanto
o coitado do aluno tartamudeava sua resposta (no caso das sabichonas da
classe elas deitavam e rolavam), o Prof. Laudelino colocava as engrenagens para
funcionar e de imediato já sabia o que deveria desenvolver naquele dia.
Para os estudantes do segundo grau Tavares também não
se preocupava muito em gastar tempo atribuindo nota. Distribuía notas meio pelo
jeitão do aluno. Frequentemente ele atribuía a nota na hora de anunciar o
resultado, comunicando para toda a classe. Uma ocasião pisou em falso: anunciou
“fulano, nota oito”. Os outros alunos reclamaram: “professor, ele cancelou a disciplina no mês passado”.
Tavares não se deu por achado: “sei disso, apenas lembrei dele e quis lhe fazer
uma homenagem”.
As tarefas que mais cansam o professor são o preparo
das aulas e a avaliação dos alunos. O preparo das aulas é inescapável, não tem
jeito. Mas na hora de avaliar é complicado. Complicado nas áreas de ciências
humanas, com respostas discursivas; não é a mesma coisa que avaliar uma prova
de matemática ou estatística. Gasta-se muito tempo se a coisa for feita de
forma criteriosa, comentando respostas e dando orientações. De um modo geral, tem
quem avalie de modo mais frouxo e tem quem ache prazer em dissecar toda a prova
e criticar até um mau uso das vírgulas pelo aluno.
Estes registros referem-se apenas ao tempo de convívio durante o curso. Posteriormente ele obteve sua formação pós-graduada, conseguindo os títulos de Mestre em Ciência Política, pela Universidade Federal de Minas Gerais, e depois Doutor em Ciência Política. Foi Pesquisador Associado no Centre d’Études de Recherches Internationales, Fondation Nationale des Sciences Politiques, em Paris; Guest Scholar e Visiting Fellow do Helen Kellogg Institute for International Studies, Notre Dame University, em Indiana, Estados Unidos. Prolífico escritor, é autor de inúmeros artigos científicos e dos seguintes livros: “A Estrutura do Autoritarismo Brasileiro”, “Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas – Teoria, Instituições, Estratégia”, “Reforma Política e Retrocesso Democrático” e “Representação Política e Governo – J.F. de Assis Brasil Dialogando com os Pósteros”. Além disto, é organizador e coautor de “Totalitarismo Tardio – O Caso do PT”.
Estes registros referem-se apenas ao tempo de convívio durante o curso. Posteriormente ele obteve sua formação pós-graduada, conseguindo os títulos de Mestre em Ciência Política, pela Universidade Federal de Minas Gerais, e depois Doutor em Ciência Política. Foi Pesquisador Associado no Centre d’Études de Recherches Internationales, Fondation Nationale des Sciences Politiques, em Paris; Guest Scholar e Visiting Fellow do Helen Kellogg Institute for International Studies, Notre Dame University, em Indiana, Estados Unidos. Prolífico escritor, é autor de inúmeros artigos científicos e dos seguintes livros: “A Estrutura do Autoritarismo Brasileiro”, “Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas – Teoria, Instituições, Estratégia”, “Reforma Política e Retrocesso Democrático” e “Representação Política e Governo – J.F. de Assis Brasil Dialogando com os Pósteros”. Além disto, é organizador e coautor de “Totalitarismo Tardio – O Caso do PT”.
Uma foto supimpa
A partir da esquerda: Tavares, Sonia Guimarães, Anita Brumer,
Arabela Oliven,
Ruben Oliven, Ilse Scherer-Warren, Tanya Barcellos, Valmiria
Piccinini e eu
(Caxambu - MG, 1996)
A foto, registrada por ocasião do 20º Congresso Anual da ANPOCS –
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado em Caxambu – MG, em 1996, obedece
a uma simetria perfeita: homem – três mulheres – homem – três mulheres – homem.
Nela está representada boa parte da intelligentzia
gaúcha nas áreas de ciências humanas e sociais: Prof. Tavares (Ciência
Política), Sônia Guimarães e Anita Brumer (ambas de Sociologia), Arabela Oliven
(Educação), Ruben Oliven (Antropologia), Ilse Scherer-Warren (Sociologia da
Universidade Federal de Santa Catarina, mas graduada em Ciências Sociais pela
UFRGS), Tanya Barcellos (da FEE – Fundação de Economia e Estatística do RGS) e
Valmiria Piccinini (Administração). Compareci como representante do Ministério
da Ciência e Tecnologia, um dos financiadores do evento por meio de suas
agências de fomento.
Friedrich Nietzsche
Uma passagem de Friedrich Nietzsche diz que você pode não
ser capaz de resolver o seu problema, mas pode ajudar a resolver o problema dos
outros. Por razões insondáveis, havia quem achasse que eu tinha uma expressão
serena. O próprio Tavares, brilhante intelectualmente mas internamente bastante
agitado, me dizia que às vezes estava nervoso, angustiado, mas que quando via
meu rosto tranquilo já começava a se acalmar. Por situações certamente
parecidas é que vez por outra servi de conselheiro informal para os colegas de
pensão.
Um deles, bem apresentado, desde que veio do interior apresentava
uma trajetória peculiar: ele não namorava, noivava. Bom moço, estudioso, com
futuro brilhante, seguramente era visto como um noivo ideal. Enfim, conseguiu
se livrar daqui, dali, mas depois de dois noivados ultimamente estava se
sentindo meio encalacrado. Embora sem ter concluído o curso e, portanto, não
estar ainda ganhando seu próprio pão, era adorado pela família da noiva. Ele
também gostava muito da menina e não tinha coragem de terminar a relação. Mas
queria um pouco de sossego até sentar um pouco mais o pé na vida. Costumava me
consultar para uma coisa ou outra, até que me pediu um conselho sobre como
terminar aquele noivado que já estava lhe sufocando. Não sendo um expert no
assunto, resolvi dar um conselho meio na brincadeira para ver se ele procuraria
alguém com mais gabarito para opinar. Sugeri que ele tomasse uma bebedeira e
assim aparecesse na coisa da noiva. Não precisaria ensaiar nenhum discurso,
mesmo porque na hora ele não iria lembrar de nada e era melhor dizer o que lhe
desse na tela. O importante é que os pais da noiva iriam ficar chocados com a
cena e perceberiam que, afinal, ele não era a maravilha que estavam idealizando
e que era bom saber disso antes que as coisas fossem em frente. Dito isto, me
despreocupei, porque me pareceu uma idéia tão descabida que obviamente ele iria
descartar. Alguns dias depois veio me procurar todo contente para agradecer e
dizer que tudo tinha se passado como eu havia sugerido e que, agora, estava
finalmente livre. Que coisa...
De outra feita não tive muito êxito. Outro colega de pensão
me convidou para ir jantar fora às suas custas. Era o tipo do convite
alegremente aceito na hora. Mas, no restaurante, percebi que o colega estava
meio tenso, comendo pouco e insistindo para que eu pedisse mais bebida ainda
que não estivesse me acompanhando. Percebi que sua intenção era de que eu
ficasse meio alegrinho para poder me contar o que estava entalado na sua
garganta. Além de normalmente não ser de beber muito, acabei travando. Numa
situação daquelas não era possível beber com satisfação. O colega também travou
e acabou não me contando nada. Talvez não fosse uma questão de aconselhamento.
Ele estava querendo contar alguma coisa que lhe angustiava. Mas provavelmente não
tinha coragem de falar com alguém que prestasse atenção e que depois não
esquecesse do assunto. Aí ficou por isto mesmo. Mas, pelo resto da vida fiquei
imaginando que tipo de situação constrangedora estaria preocupando o colega. Enfim,
não se ganha sempre.
-oO)(Oo-