Nossa memória está repleta de monumentos
que não foram esculpidos na pedra nem fundidos no bronze.
Cada um tem os seus, aquela coleção das coisas e dos fatos
memoráveis, do que foi suprimido dos cenários e da vida, mas que
permanece gravado na mente e nas lembranças.
José de Souza Martins
Cidades e cidades
Minha primeira impressão ao chegar na capital foi a sensação do anonimato. Minha cidade natal, Lavras, era pequenininha. Bagé uma cidade média, mas facilmente administrável. Porto Alegre era uma metrópole. Imensa, com gente aos borbotões em qualquer canto. Percebi que naquela multidão era um anônimo. Luis Fernando Verissimo falava no tipo “popular”. Dizia que nas reportagens de jornal quando em alguma fotografia aparecia alguém não identificado era tratado por “popular”: “um popular olhando a cena...” Mas descobri que aquele anonimato tinha uma certa vantagem, permitia o individualismo. Por exemplo, o sujeito podia se vestir de qualquer jeito que ninguém ligava a mínima.
Mapa de Porto Alegre
A vida em cidade pequena não é sempre idílica e romântica, como se costuma pensar. Agatha Christie, a grande escritora de livros policiais, dizia que era nas cidades pequenas que se cometiam os piores crimes. Normalmente cidade pequena é polarizada. Em Lavras, que me lembre, não havia, a rigor, maiores polarizações, apenas alguma rivalidade em função do grupo carnavalesco ou entre católicos e protestantes, mas só isto, portanto tudo amigável e numa boa. Em outras cidades, o problema é maior quando existem casos de polarização política entre a família de fulano e a família de beltrano. Então, só compra no mercadinho tal porque é de fulano, só abastece no posto de gasolina qual porque é de beltrano.
Além disto, em cidade pequena acontece uma superexposição. Para qualquer gesto do sujeito, até mesmo encostar em um poste, sempre tem alguém olhando, interpretando e dando opinião: “está bêbado”, “é um vagabundo”, “está escorando o poste para o poste não cair...” É impossível ser anônimo em cidade pequena. Por outro lado, “gente de fora” é sempre um estranho no sentido próprio da expressão. Uma ocasião, por conta de uma parada de ônibus um pouco mais prolongada do que o habitual, em uma cidadezinha no meio do trajeto entre Bagé e Pelotas, resolvi dar uma pequena caminhada pelas redondezas. No meio da tarde, as ruas estavam desertas. Cadê o pessoal? De repente, ao chegar em uma esquina, pressenti que alguém estava observando. Virei rapidamente, a tempo de ver várias pessoas me olhando pelas janelas. Que imediatamente se fecharam.
Uma pequena urbe
Assim, se na cidade pequena há uma superexposição, na cidade grande o cidadão some no meio da multidão. Mas, se em um primeiro momento isto parece uma vantagem, como aos meus olhos de garoto tímido vindo do interior, a continuidade da inserção social leva à procura de mecanismos de integração com outras pessoas. Muitos anos adiante desta narrativa, indo a São Paulo e visitando Geraldo Müller, antigo colega de curso e que estava na ocasião realizando seu doutorado, ele contava algumas características da metrópole. Disse que uma menina lhe entregou em uma esquina um convite para uma festinha em sua casa, no bairro tal. Segundo explicou, como ela não possuía muitos relacionamentos pessoais diretos, achou por bem convidar ao acaso. Quem tivesse interesse iria, quem não tivesse não iria. É provável que a sua distribuição de convites não fosse tão aleatória assim. Passaria primeiramente pelo crivo da avaliação da outra pessoa, como naquele ditado popular que diz que “a primeira impressão é a que fica”. Depois, a identificação do bairro no convite já dava uma demonstração de seu nível social. Portanto, quem estivesse muito acima provavelmente não iria, e quem estivesse em um nível assemelhado provavelmente veria ali uma boa oportunidade para o estabelecimento de nova convívência.
Na atualidade, este convite ao acaso é utilizado como convocatória pela Internet para ações coletivas e é a base de relacionamentos virtuais em redes sociais. Porém, ter seis milhões de “amigos”, como no caso de Paulo Coelho, significa várias coisas, menos que seus seguidores possam ser considerados amigos no sentido etimológico.
Batalhando
Matriculei-me em curso noturno para ver se conseguia um jeito de ganhar algum. Trabalhei em dois escritórios, por curtos períodos. A atividade maior, que se prolongou durante o curso universitário, era em um cartório, onde não havia problema de horário e o ganho era por produção. Sem carteira assinada, óbvio. Nossa equipe de datilógrafos (homens e mulheres) transcrevia escrituras de compra e venda, cuja versão original era o registro manuscrito em uns livros imensos. Na primeira metade dos anos 60 ganhava alguma coisa tipo cinco cruzeiros por linha corrigida (talvez algo aproximado dos centavos atuais). Por linha corrigida, porque tinha uma funcionária cuja única função era identificar erros nas páginas datilografadas. Só após feitas as correções é que as linhas entravam para a nossa quota de ganho. Certa ocasião consegui datilografar uma escritura inteira, que sempre eram de várias páginas, sem um único erro. Pelo seu caráter especial, esta escritura ficou durante muito tempo exposta como exemplo de qualidade do trabalho dos funcionários. Mas, santo cartório! Foi, de certa forma, o que permitiu que este modesto blogueiro concluísse seu curso universitário. Não por todo o tempo, pois na reta final da faculdade passei a me manter com a aplicação de questionários das pesquisas de opinião.
Para datilografar com rapidez não se lê o texto no sentido cognitivo,
a tarefa se resume ao ato mecânico de visualizar o texto e reproduzi-lo
Dos escritórios, o mais interessante sob uma perspectiva antropológica foi o da ARCON, uma empresa que produzia aparelhos de ar condicionado. Suponho que os escritórios das fábricas inglesas pré-revolução industrial fossem daquele tipo. Embora fisicamente separado do chamado “chão de fábrica”, o escritório não tinha luxo nenhum. Fiquei lá os três meses considerados “de experiência”, portanto sem encargos sociais. Pedi para sair quando o período estava se encerrando senão teria que ser fichado, o que não me interessava. O chefe do escritório era ranheta, mas, no fundo, muito no fundo, lá por profundidades do pré-sal, não era mau sujeito. Vivia estressado: “este escritório vai parar por falta de clips” (ah! bons tempos...). Outra feita, quando estava com a macaca, me chamou: - “Há quanto tempo estamos sem enviar correspondência para nosso representante comercial em São Paulo?” Disse o período. – “E por que não escrevemos?” Informei que não havia nenhum assunto comercial pendente. Não convenci. - “Mas temos que escrever. Ele precisa saber que estamos vivos”. Infelizmente não lembro em que termos redigi uma correspondência para informar que estávamos vivos.
Apesar de a questão ter sido colocada daquele jeito, não é necessário ler nenhum manual de administração para encontrar uma certa lógica. Considerada a distância entre as duas cidades, sem nada do que hoje se conhece por tempo real, vá que o representante em São Paulo recebesse notícias mais constantes de algum concorrente mais vivo em todos os sentidos.
Pois isto. Por enquanto.
-oO)(Oo-
2 comentários:
Gostei do que falaste sobre as diferenças entre uma cidade pequena, como a tua e a minha, e uma cidade como Porto Alegre. Como achava tudo diferente quando fui para POA! Sentia saudades de Montenegro, dos amigos mas, é como dizes, tem as suas vantagens.
Não me admirei de teres escrito todo um texto sem erros. Sempre foste "Muito bom" em português.
Entendi perfeitamente quando falaste na sensação de anonimato, embora Santa Maria seja bem menor do que Porto Alegre, tive o mesmo sentimento.
Eu sabia que serias vitorioso na profissão que escolhesses, pois além de esforçado sempre te destacaste pela inteligência.
Um abraço.
Postar um comentário