sábado, 1 de outubro de 2011

PARALELO 30 BRASILEIRO (Porto Alegre - Parte I)

(Paralelo 30º S é a marca geodésica que corresponde a 30 graus sul no plano equatorial; é a latitude de Porto Alegre)

O ano da minha Idade Média

Fui para Porto Alegre em 1964, inicialmente para cursar o 3º ano do científico no Colégio Estadual “Júlio de Castilhos”, mais conhecido por “Julinho”. Antes, duas providências de ordem cartorial: tirei em Bagé a minha primeira identidade, confeccionada em uma espécie de caderninho, e em Lavras compareci ao alistamento militar, do qual foi dispensado por excesso de contingente, graças a providenciais contatos de meu pai. Pois sempre que lembrava dos primeiros tempos em Porto Alegre, tinha a idéia de que tinha sido uma espécie de Idade Média, um período algo sombrio. Basicamente por conta de dois fatores associados, ambos ligados ao Julinho: meu último ano em Bagé tinha sido de elevada agitação juvenil, agora estava matriculado em uma turma do curso noturno, onde eu era um dos mais novos e a grande maioria já trabalhava, portanto gente séria que buscava um rumo em sua vida; além disto, foi minha primeira (e única) experiência em curso noturno, em um colégio que na minha lembrança não era excepcionalmente iluminado. Tinha, assim, a lembrança de ter sido um período escuro.


No entanto, quando a gente começa a escarafunchar a memória, vê que não foi só isso, que muita coisa aconteceu. Assim também na Idade Média propriamente dita, que transcende a noção de ter sido apenas um período de pobreza e estagnação. O seu resgate cultural deve-se grandemente a Umberto Eco (parto do princípio que todo mundo conhece e sabe de quem se trata; senão, Google nele). Além de suas obras de ficção com enfoque medieval, como O Nome da Rosa, Umberto Eco ilumina o período em Arte e Beleza da Estética Medieval, onde mostra como o período pavimentou a passagem que leva ao Renascimento.

A nova vida

Estabeleci-me em Porto Alegre em uma casa de cômodos localizada na Rua Felipe Camarão, Bairro do Bom Fim. O bairro era predominantemente de judeus, assim como os proprietários da casa, um casal sem filhos, morando com a nora, e que, para reforço do orçamento, alugavam quartos. O terreno era comprido, onde foram construídos quartos de dois a dois, com um banheiro comum. Fiquei no quarto mais barato, de quatro camas. No quarto contíguo apenas duas camas. Em compensação o banheiro ficava no nosso quarto. Durante os meus sete anos de Porto Alegre fiquei neste mesmo lugar. Atualmente no local existe um prédio de apartamentos. O adensamento demográfico e o avanço imobiliário são inexoráveis. 

Rua Felipe Camarão

Alugávamos o pouso, as refeições ficavam por conta de cada um, naturalmente alhures. Todos éramos estudantes, com uma honrosa exceção, um colega que “se virava”, trabalhava como rádio-técnico e quantos outros expedientes pudesse, muito simpático e cheio de malandragens, razão pela qual ganhou de nós o apelido de “Picardia”.

Pois Picardia, com a finalidade de mostrar pontos interessantes da capital, me leva para conhecer o bairro Boa Vista, no final da avenida Carlos Gomes. Um bairro muito parecido com as cidades americanas que a gente vê no cinema: fora do burburinho central, relativamente pequeno, belissimamente arborizado e com casas espetaculares, na época com imensos jardins sem cercas em sua frente (os bairros de habitações individuais de Brasília, Lagos Sul e Norte, correspondem a este padrão). Fiquei encantado particularmente com a rua Raimundo Correa, por ser parte do meu nome. A homenagem era ao grande poeta parnasiano Raimundo da Mota de Azevedo Correia, nascido a bordo do navio São Luis, na baía de Mogúncia, ao largo do Maranhão. O bairro Boa Vista ficava em posição privilegiada e elevada, tal como a classe alta européia, que ocupa as posições superiores dos terrenos, e ao contrário do que acontece no Rio de Janeiro. Na parte de baixo, separadas pela avenida onde passava o ônibus, uma miríade de construções populares (uma favela, termo na época não utilizado no RGS). Diz Picardia: - “Este pessoal aí é todo mundo comunista”. Achei curioso: - “Mas por quê?”. E ele: - “Ora, o sujeito vive numa miséria destas, acorda, olha para cima e vê todo este luxo... só pode virar comunista”.

Rua Raimundo Correa

Outra do Picardia: aparece com uma vitrola que tinha consertado e um disco de música clássica. Colocaria para rodar quando fôssemos dormir, assim o sono viria embalado por uma música suave. Tudo combinado, luz apagada e o disco começa a tocar. Era a primeira vez em que todos nós escutávamos o Bolero, de Ravel. Como é sabido, o Bolero tem um tema que vai se repetindo várias vezes, sempre em um crescendo progressivo, cada vez com maior número de instrumentos até seu final literalmente estrondoso. Uma obra belíssima, mas inadequada ao que esperávamos, uma completa reversão de expectativas: quando terminou, ao invés de já estarmos na companhia de Morfeu, o deus grego dos sonhos, estávamos meio espantados, de olhos esbugalhados. Como tudo tem seu lado positivo, iniciávamos ali nossa bagagem cultural de música clássica. Bolero ficaria inesquecível, claro que depois do episódio por suas qualidades substantivas.

O bairro do Bom Fim

Vida tranqüila, o Bom Fim tinha igreja católica e sinagoga. Também um Círculo Social Israelita, aberto à população não-judia para algumas programações. Ali assisti a peças de teatro, conferências, debates culturais.

Não estava mais em Porto Alegre quando o Bom Fim virou animado “point”, com grande número de barzinhos freqüentados pela juventude. O bairro possui muitas referências culturais.
  •  Moacyr Scliar (1937-2011), um grandes escritores brasileiros, nasceu no Bom Fim, onde ambientou seu primeiro romande “A guerra no Bom Fim”, ficção sobre os tempos da Segunda Guerra Mundial. Moacyr Scliar era médico sanitarista e produziu uma obra extensa, boa parte referente à cultura judia. Em 2003 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
  •  Na música, a “tchurma do Bonfim”, em “Deu pra Ti”, de Kleiton e Kledir:


  • O bairro também ficou conhecido nacionalmente pelo personagem “Magro do Bonfa”, de Adão Nascimento, conhecido por sua participação na Escolinha do Professor Raimundo. A expressão “magro do Bonfa” causava alguma estranheza porque o humorista não era magro. É gíria, originalmente para designar os frequentadores dos barzinhos da Oswaldo Aranha, reduto da boemia: “magro do bonfa”, “magrinha do bonfa”. No comentário de Emílio Pacheco, “Nos anos 70, ‘magro’ ou ‘magrinho’ era como ‘bixo’ ou ‘cara’. ‘E aí, magro?’  Mas também se usava ‘magrinho’ para definir um tipo característico, o típico jovem modernoso, pra frente, malandro, falador de gírias, usando roupas transadíssimas”. Como este blog é lido em conventos, a explicação é suficiente. 

O Magro do Bonfa na Escolinha do Professor Raimundo
  • Existe até um blog dedicado ao bairro: “Nosso Bom Fim: o melhor e o pior sobre o bairro Bom Fim e arredores”: http://nossobomfim.blogspot.com/ .

Em 2010 a UFRGS organizou uma exposição sobre o Bom Fim com o título “Um Bairro, Muitas Histórias”. Em texto publicado na Zero Hora (provavelmente um de seus últimos), Moacyr Scliar encerra seu depoimento assim resumindo: “O Bom Fim: cadinho de culturas, sonhos, de esperanças, de idéias, de talentos”. No meu tempo participei destes sonhos e destas esperanças.

-oO)(Oo-

2 comentários:

Andrea Leal disse...

Ehhh, Bomfim... o bairro da UFRGS! Era onde a gentre trilhava durante o dia, no caminho entre o prédio da Medicina e do Hosp. de Clínicas; e fazia a festa nos botecos depois do dia inteiro em aula... Saudades!!!

Andrea Leal disse...

Ehhh, Bomfim... o bairro da UFRGS! Era onde a gentre trilhava durante o dia, no caminho entre o prédio da Medicina e do Hosp. de Clínicas; e fazia a festa nos botecos depois do dia inteiro em aula... Saudades!!!