Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Manuel Bandeira
Minha infância foi de uma simplicidade franciscana: colégio, igreja, futebol de botão, ouvir rádio e, tchan-tchan-tchan-tchan, tocar acordeon.
Realizei o curso primário no Grupo Escolar Pedro Américo e o ginásio no Ginásio Estadual Licínio Cardoso. Ambos funcionavam no mesmo prédio. Neste período morei com meus avós. Meu avô Antonio Fagundes mantinha a Barbearia União junto com uma banca de revistas. Hoje o local é sede de um grupo espírita.
O Grupo Escolar Pedro Américo possui um nome que dispensa apresentação. É de conhecimento geral que se trata do grande pintor brasileiro cuja principal obra foi o quadro O Grito do Ipiranga. Após a conclusão do primário prestava-se uma espécie de vestibular, o exame de admissão, para poder ser admitido no ginásio.
O nome em destaque no prédio:
Nos bancos escolares
A vida escolar de uma criança pode ser um caminho de percalços e terrores. Quando entrei na escola as palmatórias já estavam proscritas. As palmatórias eram feitas de madeira e serviam para aplicar corretivos nos meninos que recebiam castigo, sendo aplicada com força na palma da mão, daí seu nome. Mas não era só a ameaça de castigo físico que podia aterrorizar. Afinal, desde o berço as canções de ninar faziam ameaças explícitas: “Bicho papão / sai de cima do telhado / e deixa este menino / dormir sossegado”. Ou então: “Vaca da cara preta / não assusta este menino / que tem medo de careta”. Como toda criança, passei pela fase do medo do escuro. Normalmente é um medo não especificado, da escuridão como tal. Não me ocorria que nela pudesse estar escondida tal ou qual figura aterrorizadora. Talvez todas. Com certeza é um medo atávico, um medo do desconhecido, herança do homem das cavernas, que tinha todas as razões do mundo para ter medo do escuro.
Medos mais concretos vinham da própria escola. Matemática sempre infernizou a vida de muita gente, começando pela tabuada que devia ser decorada. Mas era mais uma dificuldade, algo que demandava muito esforço. Medo real vinha de outras matérias, como as lições sobre bactérias e outras ameaças assemelhadas, como os problemas provocados pela ingestão de carne de porco mal cozida e a formação de solitária no intestino. Mesmo não morando em zona rural, onde as condições eram mais favoráveis para este tipo de ocorrência, o assunto assustava, principalmente a possibilidade de contrair uma solitária. Da qual tinha um medo pânico. O Posto de Saúde da cidade ao invés de ajudar contribuía para fazer mais alarde: exibia cartazes demonstrativos tão explícitos que provocavam verdadeiro horror.
As lições de higiene e de cuidado com a saúde tinham um lado mais simpático. Lembro perfeitamente da recomendação de comer verduras e legumes, além de leite e ovos para uma alimentação saudável. Meu café da manhã, coisas do Sul, volta e meia tinha um bifinho, preparado em fogão de lenha, com dois ovos fritos. Tudo, portanto, uma sábia prática; atualmente o café da manhã é considerado como refeição da maior importância. E o lanche da tarde, com bolo, pão, essas coisas, era invariavelmente com café preto. As famílias costumavam entupir as crianças de Calcigenol, havia uma preocupação muito grande com a ingestão de cálcio. Nas aulas recebíamos ainda uma recomendação que hoje parece curiosa, a de dormir com a janela aberta, para que o ambiente ficasse constantemente ventilado. Quanto a isto, bons tempos.
Medo mesmo, aquele que o Houaiss define como “temor, ansiedade irracional ou fundamentada”, tinha das aulas de canto orfeônico e das de educação física. Enfim, uma “falta de tranquilidade, sensação de ameaça”, que se manifestava em tudo aquilo em que não tinha a menor habilidade. As aulas de educação física, por exemplo, provocavam um imenso desconforto. Pular obstáculos em altura deve ter me deixado com muitas noites de sono mal-dormido. Em canto orfeônico, o esforço para enfrentar as provas – o aluno era chamado para ficar na frente da turma e cantar, ou tentar -, talvez só fosse superado pelo esforço da professora em extrair do desastrado aluno pelo menos uma linha com certa afinação. O repertório era até simpático, como “Chuá-Chuá”, “Fiz a cama na varanda”.
Nesta época meu pai vivia cantarolando “Kalu”, do Humberto Teixeira: “Kalu, Kalu / Tira o verde desses óios di riba d’eu”... Esta música foi revivida em 2002, com o lançamento do disco-homenagem “O Doutor do Baião - Humberto Teixeira”, título que se deve à circunstância de que o consagrado letrista popular era formado em Direito e trabalhou a vida inteira como advogado. A regravação da música foi de Chico Buarque. Humberto Teixeira garimpava nomes pouco comuns. Outro exemplo encontra-se em “Baião de dois”, gravada no disco por Caetano Veloso: “Abdom que moda é essa / deixe a trempe e a cuié / home não vai na cozinha / que é lugá só de mulhé”.
O tipo de foto que todo mundo tem
Já mais grandinho
As lembranças do ginásio são mais cândidas. Algum tempo depois é que me dei conta de que a professora de geografia não conhecia pessoalmente todos aqueles locais e regiões que descrevia com tanta propriedade. Ela era, portanto, convincente e dava conta de sua tarefa com extrema competência.
Pelo resto da vida me arrependi por não ter sido aplicado nas águas de línguas, francês e latim. Francês, porque o professor era folclórico, cheio de ademanes, motivo de galhofas pela turma. Mas, nunca esqueci alguns bordões dos livros, como: “par la vue nous distinguons la forme et la couleur des objects”. Ao final do último ano de francês, na saída da escola para comemorar alguns colegas atiraram os livros para o alto, que ficaram aonde caíram. Também não me dediquei como devia ao Latim, influenciado pelos que achavam a matéria exorbitante. Estaria enterrado se arrependimento matasse. Tivesse estudado com afinco e hoje teria uma base extraordinariamente mais sólida para o conhecimento da língua portuguesa. Estes dois exemplos sugerem que nem sempre é conveniente seguir a manada, esta no bom sentido, como “mainstream”, grande tendência.
Licínio Cardoso, o nome do Ginásio Estadual, refere-se a um grande vulto da cidade. Nascido em Lavras, notabilizou-se no Rio de Janeiro como matemático, também com interesses no positivismo e em homeopatia. Para saber mais a seu respeito, consulte:
- Arquivo Zk: http://arquivozk.blogspot.com/2007/06/licnio-cardoso-um-mdico.html
- Blog da Dra. Darci – procure por “Licinio Cardoso o matemático homeopata”: http://glaciblog.blogspot.com/2009_03_01_archive.html
O hino do ginásio, que cantávamos, não era oficial. Segundo a Profa. Irma Barbosa, foi composto por uma ex-aluna, Leda Silveira, para ser executado em uma cerimônia do colégio, no ano de 1959. O hino era cantado com a música da canção italiana “Santa Lucía”.
Hino a Licínio Cardoso
(Autoria da letra: Leda Silveira)
A 2 de maio
Nasceu Cardoso
Em berço humilde
Nada mimoso
Lavrense sábio!
Grã raciocino!
Salve ó Licinio
Salve ó Licinio!
Somos honrados
Nós ginasianos
Em ser chamados
Os licinianos
Em ter teu nome
Nome tão digno
Salve ó Licinio
Salve ó Licinio
A garotada fazia algumas estripulias com o hino. A paródia mais conhecida transformava a primeira estrofe: “Há dois mil anos / nasceu Urbano / em berço humilde / feito de pano...” Urbano era sarará, um tipo popular entre a meninada. Vivia com Negucha – uma afrodescendente, como se deduz do seu apelido – que tinha um defeito nos pés, virados para dentro, e por isto andava de uma forma meio esquisita. Para sobreviver eram changueiros, isto é, faziam changas, pequenos serviços. Ela, se bem me lembro, lavava roupas. E Urbano, quando surgia a oportunidade, carregava malas para a Rodoviária para quem ia embarcar ou de quem estava chegando. Acompanhar a chegada dos ônibus intermunicipais, em especial os da linha Bagé-Porto Alegre, despertava muita curiosidade, era quase um programa social. Em Lavras e em qualquer outra cidade pequena do Rio Grande do Sul. Quanto a Urbano, nunca soube porque se chamava assim, se era nome ou apelido.
Atualmente os dois antigos níveis de ensino constituem um único estabelecimento, a Escola Estadual de Ensino Fundamental Licínio Cardoso. Uma visão geral do prédio:
Os créditos para quem merece:
Sra. Geny Maria Gómez Corrêa e Profa. Irma Barbosa da Silva, consultoras deste blog
3 comentários:
Adorei este post! Voltei àquele tempo tão bom de nossa infância e juventude:
As revistas em quadrinhos e palavras cruzadas lá do seu Antoninho; o Grupo Escolar Pedro Américo; medo muito grande do escuro; tabuada, rsrsrs; ao contrário de ti o que mais gostava eram as aulas de Canto Orfeônico e Educação Física (era a faculdade que eu queria fazer e não deixaram, porque as meninas ficavam mal vistas); a professora Verinha, de geografia, esposa do Prof. José Barbosa, meus vizinhos; prof. Irajá, padre André, profa. Irma, Leda, Urbano, Negucha; as fotos...(bem assim que eu lembrava de ti), meu Deus, fiquei emocionada! Hoje vou custar a dormir lembrando daquele tempo.
Obrigada, Raimundo.
Um abraço.
Essa me fez viajar no tempo e dar asas à imaginação. Sabe essa foto da escola, que todo mundo tem? Eu não tenho e tenho frustração por isso. As minhas irmãs têm... só eu que não! Não sei qual foi o motivo. Talvez eu tenha faltado ao colégio no dia ou talvez já tivesse "saído de moda" na minha época. Parece que as das minhas irmãs (e irmãos também!) foram tiradas quando eles faziam entre o 2º ou 3º ano primário. Essa lembrança infelizmente eu não tenho. Aquele globo e aquela flâmula do lado, me matam de inveja! Muito legal que muitas construções tenham sido preservadas na sua cidade. O passado fica mais presente e parece que as pessoas que já se foram estão bem ali, dentro de suas casas, escritórios e escolas, em suas atividades diárias. Ôps! Isso pode até ter soado meio sobrenatural, mas não é dessa forma que eu estou a imaginar.
Continue escrevendo...
Abraço.
Muito bom!Parabéns!
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