quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

OS OUVIDORES NA HISTÓRIA DO BRASIL

Durante o período do Brasil Colônia, que vai desde o descobrimento até a Independência, em 1822, a administração portuguesa contou com a figura do ouvidor. Em um primeiro momento, no regime das capitanias. Logo a seguir, durante a fase do Governo real para o Brasil, depois denominados Governos-Gerais.

Duas narrativas sobre o nascimento do país

(1) História da Capitania de São Vicente, Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777) – Edições do Senado Federal, v.25

Depois que se recolheu da Índia o primeiro descobridor dela Vasco da Gama, que chegou a Lisboa em 10 de julho do ano de1499, saiu para a Índia com segunda armada em 9 de março de 1500, Pedro Álvares Cabral, filho de Fernão Álvares Cabral, senhor de Azurara,alcaide-mor de Belmonte, e adiantado da Beira, que avistou as Canárias a 14 do dito mês de março: a 22 passou a ilha de S. Tiago, e obrigado de um temporal avistou a 24 de abril, última oitava da páscoa, terra que era oposta a costa da África e demandava a oeste, e reconhecida pelo mestre da capitania, que lá foi, mandou Cabral surgir a um porto, que por ser bom lhe ficou o nome de – Porto Seguro –, e se meteu por padrão uma cruz, e se chamou – Terra de Santa Cruz.1
1 João de Barros, Dec. 1ª, Livr. 5. Gaspar Fructuoso, Liv.1, Cap.1, D. Ant. Caetano de Sousa, Genealog. da Casa Real Port. Vid. d’El-Rey D. João II e D. Manoel.

(2) História do Brasil, Frei Vicente Salvador (1627)

A terra do Brasil, que está na América, uma das quatro partes do mundo, não se descobriu de propósito, e de principal intento; mas acaso indo Pedro Álvares Cabral, por mandado de el-rei d. Manuel, no ano de 1500 para as Índias, por capitão-mor de 12 naus, afastando-se da costa de Guiné, que já era descoberta ao Oriente, achou estoutra ao Ocidente, da qual não havia notícia alguma, foi costeando alguns dias com tormenta até chegar a um porto seguro, do qual a terra vizinha ficou com o mesmo nome.


Os ouvidores no Brasil Colônia

Para viabilizar a posse e colonização do Brasil, El-Rei D. João III instituiu o regime das capitanias. As cartas de doação, além da atribuição da propriedade territorial, investiam os beneficiários de poderes administrativos, entre os quais o monopólio de atribuir a investidura do cargo de “ouvidor, supremo funcionário judicial nas capitanias e por cujo intermédio atuavam os donatários nos âmbitos civil e penal” (LACERDA: 2008). O exercício do ouvidor era trienal e renovável, sujeito a exoneração por justo motivo ou sem ele. O primeiro ouvidor de que se tem notícia foi Antônio de Oliveira, “cavaleiro fidalgo da casa real” (LEME: 2004), nomeado em 1537 para a capitania de São Vicente, de Martim Afonso de Sousa.

Como o sistema de capitanias apresentou muitos problemas, para corrigi-los El-Rei decide instituir um Governo real para o Brasil, e nomeia, em 1549, Tomé de Sousa para o cargo de Governador Geral, tendo como principais auxiliares, um Capitão-mor, um Provedor-mor e um Ouvidor-Geral, Pêro Borges, cujas atribuições eram estabelecidas por regimentos.


A história não conservou o regimento do primeiro Ouvidor-Geral, sendo conhecido, porém, o que, em 1628, foi dado ao Ouvidor-Geral Paulo Leitão de Abreu. Algumas das atribuições constantes deste regimento:
• criminalmente julgava por ação nova escravos, gentios, peões cristãos e homens livres, efetuando o julgamento em parceria com o governador;
• com a assistência do governador-geral, processava os governadores das capitanias encontrados em culpa grave;
• informava-se da conduta geral dos capitães-governadores das capitanias, bem assim sobre a das câmaras e seus oficiais como do quanto mais conviesse à boa governança da terra; e
• exarava sentenças em nome do monarca, assinando-as e apondo-lhes o selo das armas reais.

Os ouvidores percebiam 600 réis de ordenados e 300 de propinas. As propinas eram quantias pagas ao Estado, uma espécie de complemento financeiro aos ordenados pagos aos oficiais da administração colonial.

O termo “ouvidor”, nesta acepção de magistrado, causa alguma estranheza se comparado com a atual concepção. Porém, Raphael Bluteau, em seu Vocabulario portuguez e latino (1712-1728), esclarece: “Ouvidor é o oficial de justiça, que ouve e despacha, conforme o Regime de sua Ouvidoria”. Porque em Portugal havia Ouvidor do crime, Ouvidor da alfândega, Ouvidor posto por El-Rei em algum lugar, etc. E conclui: “O nome e ofício de Ouvidor é muito próprio e particular dos Ministros de Justiça, porque tem a obrigação de ouvir”, acrescentando que para os antigos jurisconsultos latinos o nome de Ouvidor se confunde com o de Juiz.

O cargo de ouvidor foi um dos integrantes de nossa estrutura judiciária - que teve, entre outros, corregedores, provedores, juízes de fora, etc. -, persistindo até 1825, portanto, até o início do Império. O atual significado do termo ouvidor, tanto em órgãos públicos como em instituições privadas, segue o modelo conceitual do ombudsman sueco. O que já é outra história...


Bibliografia consultada:


AVELLAR, Hélio de Alcântara. História Administrativa e Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: FENAME/MEC, 1970.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino (1712-1728). Disponível em http://www.ieb.usp.br/online/index.asp.
LACERDA, Arthur Virmond de. As Ouvidorias do Brasil Colônia. Curitiba: Juruá Editora, 2008.
LEME, Pedro Taques de Almeida Pais, 1714-1777. História da Capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.
MELLO, Isabele de Matos Pereira de Mello. Administração, justiça e poder: os Ouvidores Gerais e suas correições na cidade do Rio de Janeiro (1624-1696). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2009.
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-1627). Curitiba: Juruá Editoria, 2007.

REGISTROS HISTÓRICOS SOBRE OS OUVIDORES

Presentes durante tanto tempo na história do Brasil, os ouvidores coloniais teriam necessariamente que receber menção na literatura da época. A seguir, dois exemplos.

Quando um Ouvidor é reivindicado


Em “A Escrita no Brasil Colônia”, de Vera Lúcia Costa Acioli (Recife: FUNDAJ, Editora Massangana; UFPE, Editora Universitária, 1994), encontra-se a transcrição da carta que Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, encaminhou a El-Rei Dom João III em 20 de dezembro de 1546. Em um trecho é solicitada a presença de um Ouvidor (grafia original):

E nestas terras de Pero Lopez de Souza, que Deus aja, que estão aqui jumto comiguo, mande Vossa Alteza que ponhão ahi ouvidor que saiba e emtenda ho que há de fazer, porque tem ahi quatro pesoas que milhor seria não estarem ahi, porque outra fazenda nem fruito não fazem senão fazer brasill d’armadores, e como quero castigar degradados vão se para llaa e fazem cousas por omde mereciam já todos ser enforcados.

Quando um Ouvidor tem sua reivindicação atendida


Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista, nasceu em 1756, na Bahia. Foi enviado para a região amazônica em 1783. Durante quatro anos exploraria a bacia amazônica, em especial os rios Negro e Branco. A grande quantidade de informações que produziu – levantamentos completos da natureza, do povoamento e dos aspectos econômicos - foi registrada em “Viagem Filosófica ao Rio Negro” (Belém: Museu Goeldi. Edição fac-similar da primeira edição, publicada em volumes pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, entre 1885 e 1888).

No diário de sua expedição, Alexandre Rodrigues Ferreira transcreve aviso de 22 de Janeiro de 1764, despachado por Sua Majestade para o Intendente do Rio Negro, Fernando da Costa d’Athaide Teive:

O ouvidor do Rio-Negro fez presente a sua Magestade, que não podia servir os seus logares de ouvidor, e intendente geral das povoações do seu distrito, sem que tivesse uma embarcação prompta para fazer as correições, e visita das mesmas povoções. E o mesmo senhor foi servido ordenar, que V.S. lhe mandasse fazer prompto um bote de cinco remos por banda, para o dito ministério o ter na capitania d’aquelle governo, e sahir promptamente e sem demora a todas as occasiões que se offerecerem do serviço de Sua Magestade; o que V.S. fará executar com a maior promptidão.

UMA CAMA PARA O OUVIDOR

A historinha a seguir é transcrita de “Seleções da História do Brasil e do Mundo”, fascículo nº 2, de autoria de Sergio Macedo e Renato Silva, série didática editada em 1956 pela Editora Conquista, do Rio de Janeiro. Na transcrição foi mantida a acentuação original.


1 – A vila de São Paulo agita-se extraordinariamente naquela enevoada manhã de agosto de 1620. É que o Ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho está a caminho para a regular visitação de aplicação das leis e verificação do exato cumprimento das Ordenações de El-Rei Nosso Senhor. Os homens importantes reúnem-se em conferência. A questão de acomodação está resolvida. O grande homem ficará na casa da Câmara, naturalmente. Mas onde dormirá a alta-personagem? E os homens bons da vila agitam-se e discutem. E o assunto passa a ser objeto das preocupações gerais.


2 – Sim, o problema é muito sério, porque São Paulo está a braços, então, com terrível falta de móveis. Não existem camas dignas dessa designação, mas humildes catres, onde, diz-se, não é possível deitar-se a imponente figura de um senhor Ouvidor. Alguém lembra, porém, que há uma cama, na pequena cidade. Seu proprietário é Gonçalo Pires. Respiram os influentes. Está solucionada a questão, pensam. Ninguém imagina que Gonçalo possa sequer pensar em opor dificuldades à solução do caso, tanto mais que seria uma honra concorrer para o conforto do senhor Ouvidor...


3 – Mas Gonçalo Pires é teimoso, caprichoso ao extremo. Procurado pelos vereadores recusa-se a qualquer negócio, mostra-se surdo a todos os argumentos, indiferente a todas as súplicas. Não quer emprestar o leito que possui. Não quer nada. Quer continuar dormindo no seu rico leito, única e exclusivamente. Que lhe importa o Ouvidor? Êle que recoste as banhas onde bem entender, é a resposta que dá aos homens da vereança. E que não lhe amolem a paciência, pois está disposto a defender com unhas e dentes o móvel onde repousa o corpo todas as noites.


4 – A questão torna-se muito séria. Os vereadores confabulam, discutem, sem encontrar uma solução para o caso. Desesperados, dirigem-se ao Juiz, que decide ser a atitude de Gonçalo Pires um ato de rebeldia contra El-Rei, na pessoa do senhor Ouvidor. Que se dirijam a Gonçalo Pires, portanto, os oficiais de justiça e apanhem a cama, de qualquer modo, nem que seja à fôrça. As ordens são prontamente cumpridas. Gonçalo tenta resistir e a cama lhe é arrancada pràticamente a muque, de nada valendo os protestos e as más palavras que profere no auge da indignação.


5 – Gonçalo Pires recorre à Justiça. O Ouvidor já partiu e querem devolver-lhe a cama e pagar-lhe um aluguel pelo móvel. Mas ele declara que o leito não está no estado em que lho tomaram. “Tem manchas”, afirma, diante do riso de uns e da indignação de outros. E recusa-se a receber de volta a cama, a “não ser no estado em que lha tiraram”. Durante sete anos discute-se a questão. A Câmara instando para que Gonçalo receba o leito; este se recusando a recebê-lo, acusando os vereadores. Afinal, Gonçalo Pires falece, dizem que de mágoa “diante do vexame que sofrera”...