No disco “Berro”, de 1976, duas músicas do cantor Ednardo possuem referências literárias: “Padaria Espiritual” e “Artigo 26”. Trechinho de “Padaria Espiritual”:
Nessa nova padaria espiritual / nessa nova palavra de ordem geral / eu faço o pão do espírito / e você cuida do delito / de comer, de comer. Padaria Espiritual foi uma confraria literária cearense que existiu no período de 1892 a 1898. Era uma
“sociedade de rapazes de Letras e Artes [com a finalidade de] fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos em geral”. O “pão de espírito” consistia no jornalzinho “O Pão”.
Em “Artigo 26” (que trata do direito à instrução na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU) Ednardo descreve o processo de distribuição do jornalzinho:
Lá vai o padeiro / entregando o pão / de casa em casa / naquela não. “Naquela não” porque certamente os rapazes da Padaria Espiritual teriam muitos desafetos.
Segundo o artigo 2º do Estatuto da Padaria Espiritual:
“A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mór (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de padeiros”.

Como todo bom tema cultural, a Padaria Espiritual é objeto de produção acadêmica. De forma não exaustiva podem ser citados:
“O pão... da padaria espiritual”, dissertação de mestrado da Regina Cláudia Pamplona Diniz, apresentada à UFRJ;
“O Pão... da Padaria Espiritual e sua produção crítica”, dissertação de mestrado, UNESP;
“A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará”, tese de doutorado de Rafael Sânzio de Azevedo, UFRJ; além do livro
“Padaria Espiritual: biscoito fino e travoso”, de Gleudson Passos Cardoso.
Entre os colaboradores de “O Pão” o “eminente poeta e querido consócio” Raimundo Correia. Além de crônicas, o poeta nele publicou poesia dedicada a uma Anarda, musa de ocasião. Não teve ter sido fácil encontrar inspiração com um nome desses.
Em 1982, em uma iniciativa admirável, a Universidade Federal do Ceará conseguiu localizar todos os exemplares da coleção de “O Pão” e os publicou em uma edição fac-similar. O Reitor era o Prof. Paulo Elpídio de Menezes Neto. Se mais não tivesse feito, só por isto merecerá,
oportuno tempore, um conjunto de benefícios:
green card celestial, de validade eterna, asas tamanho GG e um harpa americana da Lyon & Healy, consideradas as melhores do mundo (deste).
Paulo Elpídio recentemente publicou “inconfidências@indeletáveis.com.br - os deslizes dos outros (e os nossos também)”. Editado em Fortaleza: Imprece/Oficina da Palavra. Segundo o próprio autor, as histórias do livro
“mais se assemelham a uma escuta clandestina (...), de cujas revelações desfrutará o leitor o prazer de compartilhar comentários e insinuações indiscretas, malévolas, até, sobre tudo e todos”. Muito melhor do que qualquer Big Brother. Apresentando a obra, Lustosa da Costa dá conta de que, com testemunho fotográfico, lançou exemplar do “Anuário do Ceará”, de que era um dos editores, ao rio Sena para que os conterrâneos soubessem do primeiro lançamento de um livro seu em Paris.
Portanto, reitero a recomendação: ouça o disco, leia o livro. Que livro? Bem, qualquer um é melhor do que nenhum. Não encontrou o do reitor? Então leia Emanuel Medeiros Vieira. Possui cerca de 20 títulos, entre livros de contos e de poesia. Finalizando: este blog não é imparcial. Aos amigos, tudo. Aos inimigos, o rigor das críticas literárias.