sábado, 11 de agosto de 2012

UM PROFESSOR SUPERLATIVO (Porto Alegre – Parte XIV)


Nossos inesquecíveis professores (5): os professores de Ciência Política – Helgio Trindade

O curriculum vitae de Helgio Trindade é dos mais expressivos. Alguns dos aspectos mais relevantes: Doutor em Ciência Política pela Université Paris 1 (Panthéon –Sorbonne), Pós-Doutorado na Fondation Nationale des Sciences Politiques, no Centre d’Études e de Recherches Internationales, na L’École des Hautes Études en Sciences Sociales e na Stanford University, Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992-1996), Presidente da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior (2004-2006), integrante do Conselho Nacional de Educação – Câmara de Educação Superior (2006-2009), membro da Academia Brasileira de Ciências (desde 2006) e  atualmente Reitor da UNILA – Universidade Federal de Integração Latino-Americana, com sede em Foz do Iguaçu, Paraná. Em 2005 foi agraciado com a comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico, do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Quando foi nosso professor, Helgio vinha de uma especialização na França, realizada no Institut d’Études Politiques. A sua formação acadêmica francesa, por ele valorizada pela ênfase no rigor metodológico, de certa forma representava uma novidade, pois a Ciência Política no Brasil constitui-se basicamente a partir dos docentes formados nos Estados Unidos.

Nossa turma assistiu suas primeiras aulas. Com a atenção concentrada não no assunto, mas na peregrinação de Helgio no estrado, onde, talvez por alguma timidez inicial, ia de um lado para o outro olhando para o chão e fazendo um rangido constante provavelmente por alguma tábua meio solta onde ele pisava no seu ir-e-vir. Este registro é de cunho afetivo e serve apenas para registrar o início de uma carreira que depois se revelou brilhante.

Um parêntesis francês

Durante o nosso curso, Helgio trouxe a Porto Alegre um professor francês, Jean Ranger, que ministrou na UFRGS alguns cursos de curta duração. Fora das atividades acadêmicas, Helgio cumpria uma rotina de anfitrião, levando o professor a conhecer os principais pontos da cidade. De vez em quando eu participava como carona destes passeios. Por conta desta vivência, observei que todos os dias o professor francês vestia o mesmo casaco, um axadrezado Príncipe de Gales, se estou bem lembrado. Comentei o fato com Helgio: “ele não troca o casaco, será que não tem outro?” Helgio riu e contou: “o pior é que na França ele também usa sempre este casaco”.

A produção do livro sobre o movimento integralista

 
Helgio Trindade com as insígnias de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico
 (Brasília, 2005)

Durante o período em que foi nosso professor Helgio dedicava-se à pesquisa que resultaria em sua tese de doutorado: o movimento integralista. Apresentada na Universidade de Paris, em 1971, a tese foi publicada em português: “Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30”, co-edição entre a Difusão Européia do Livro e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, São Paulo, 1974. A apresentação do livro é de Georges Lavau, que fez parte da banca examinadora. Apesar de que as opções ideológicas tenham colocado os dois em campos opostos, o livro de Helgio integrou a Coleção Corpo e Alma do Brasil, dirigida por Fernando Henrique Cardoso.

Poucos anos depois, Helgio apresentaria detalhes metodológicos e comentaria como estruturou o seu trabalho no artigo “Tentativa de Reconstituição Empírica de um Movimento Político Radical”, publicado em “A Aventura Sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social”, organizado por Edson de Oliveira Nunes. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978.

Nas conversas informais Helgio contava alguma coisa a respeito da pesquisa. Seu trabalho como pesquisador levou a que alguns ex-integralistas acreditassem que se tratava de alguma iniciativa para recuperar e reativar o movimento. Ele ganhou muitos mimos: publicações, faixas, bottons, etc. Por outro lado, encontrou também alguns percalços, quer dos que se recusavam terminantemente a participar da entrevista, quer dos que cuja participação na pesquisa era vetada pela esposa. Em um destes casos, conta Helgio que, já tendo marcado a entrevista, dirigiu-se na hora marcada para a casa do cidadão. Foi recebido pela esposa que o colocou porta afora, gritando que ele não iria novamente levar o seu marido para outra aventura política. Helgio retirou-se conformado, mas, antes de chegar à primeira esquina, o cidadão que seria entrevistado veio correndo atrás dele e marcou horário em um local onde não pudesse ser importunado pela esposa.

Havia uma alta carga emocional nesta tarefa de entrevistar ex-dirigentes e ex-integrantes do movimento. Cheguei a vivenciar alguns exemplos. Pouco tempo depois de ter concluído o curso de graduação, fui para Belo Horizonte, selecionado para o curso de mestrado em Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais. Neste momento Helgio já estava com seu trabalho praticamente concluído. Nada obstante, solicitou-me que realizasse algumas entrevistas de controle com ex-integrantes do movimento, a partir de uma lista de nomes que ele conseguiu. Fui atendido em todas as solicitações de entrevista, mesmo tendo, na ocasião, um biótipo desfavorável: era jovem, usava cabelo razoavelmente comprido, e possuía um carregado sotaque sulista. Pois, apesar da dificuldade de um estranho entrar na casa de uma família mineira, sempre fui bem recebido. Um caso, porém, foi marcante. Marquei dia e horário para a entrevista, que seria à noite. Na parte da manhã telefonei para confirmar e ninguém atendeu. Pelo sim pelo não compareci no horário combinado. A esposa do cidadão recebeu-me à porta e me convidou imediatamente a entrar e esperar na biblioteca. Aí ele apareceu visivelmente abatido. Perguntei se ele gostaria de manter a entrevista. Disse que sim, que gostaria de falar sobre o movimento, porque isto contribuiria para ele esquecer um pouco o seu drama pessoal: seu pai havia falecido na véspera e durante o dia ele estava ocupado encarregado das exéquias. Constrangido, aventei a possibilidade de deixar a entrevista para outra ocasião ou mesmo suspendê-la. Ele fez questão de manter o compromisso, que foi denso pela situação emocional em que fez seu depoimento. Acho que isto demonstra o fervor e a dedicação que aqueles homens ainda tinham com o movimento integralista.

O trabalho como pesquisador de campo


 Durante a parte final do curso de graduação meu sustento vinha do trabalho como pesquisador de campo, aplicando questionários de pesquisas de opinião. No período, metade final dos anos de 1960, muitas oportunidades eram oferecidas: pesquisas de interesse de planos de saúde, de fabricantes de refrigerantes, etc. Era uma ocupação ideal para estudantes, pois ganhava-se por questionário aplicado e aprovado, com horário definido pelo próprio pesquisador. Além do mais, este tipo de atividade também propiciava a oportunidade de conhecer e interagir com os mais diversos tipos de pessoas, como abordá-las e ganhar sua confiança. Outro aspecto era a possibilidade de conhecer melhor a cidade, pois qualquer amostragem contemplava os mais diversos bairros da capital. A economia estava em processo de decolagem e pipocavam estas oportunidades. Um colega, porém, desistiu da oferta quando telefonou para uma empresa e perguntou se havia limite de idade. Responderam entusiasticamente que não, que a empresa acreditava que as pessoas eram como o vinho, quanto mais velhas melhores. Ele disse que não tinha se expressado direito, queria saber se havia um limite mínimo. Nova resposta efusiva: também não, pois a empresa acreditava que as pessoas eram como as árvores, quanto mais novas melhores os frutos. Aí ele achou que era relativismo demais e desistiu.

A tarefa de pesquisador de campo exigia algum planejamento, qualquer descuido e tudo ia água abaixo. Uma vez, para ir a um determinado bairro um pouco distante, precisei ir para o centro da cidade e de lá pegar um ônibus. Fi-lo. Depois de estar rodando um certo tempo, desconfiei do entorno que via pela janela e resolvi perguntar para onde estava indo. Havia me enganado de ônibus e o destino não era o que eu precisava. Até voltar para o centro foi-se a maior parte da manhã e a perda do turno de trabalho.

Como é sabido pelo pessoal da área, a possibilidade de ser bem recebido era maior nos bairros de classe mais baixa. Nos de classe alta a própria receptividade era muito pequena e difícil (isto naqueles tempos, imagine-se hoje). Foi em um deles que tive um único percalço, o de ter sido atacado por um cachorro. Sem danos, contudo. Mas foi de uma pesquisa sobre hábitos de consumo, patrocinada pela Fundação Getúlio Vargas, que guardo as melhores lembranças. Conto duas, ambas situadas em bairros da periferia.



A pesquisa era chatíssima, indagava-se quantos quilos de arroz a família tinha comprado na semana, quantos de feijão, o preço de cada produto e o que aquilo representava no orçamento doméstico, etc. e tal. Em algumas das amostragens era aplicado um questionário mais completo, aborrecidíssimo. Enfim... Em um bairro paupérrimo, em uma residência idem, onde, com muita gentileza, me indicaram para sentar um banquinho de madeira, um dos raros móveis da casa, terminada a entrevista a dona da casa me ofereceu um café com uma merenda, uns doces variados até que muito bem apresentados. Mas, quando ela ofereceu e viu que eu estava com uma certa relutância, resolveu me tranquilizar: “moço, não se preocupe, é tudo de boa procedência, meu marido trabalha como motorista do carro de entrega de uma padaria”.

De outra feita, vou também a uma residência pouco mais do que um barraco. A moradora era uma velhinha encarquilhada. Cheguei e apresentei minha cantilena sobre a pesquisa. Aí ela me disse: “moço, não entendi nadinha do que o senhor falou, mas o senhor falou em Getúlio Vargas, ele foi um presidente muito bom para os pobres, eu gostava muito dele e por isso vou lhe atender e o senhor pode me perguntar o que quiser”.
Brasil, zil, zil.

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