quarta-feira, 26 de outubro de 2011

UM ANO QUE CUSTOU A PASSAR (Porto Alegre – Parte III)

Tratar do ano de 1964 não é muito fácil. O ano que antecedeu minha entrada na universidade foi marcante na política brasileira. Aqui, ao lado das reminiscências pessoais, que constituem a espinha dorsal destes comentários, serão abordados de forma superficial alguns dos principais episódios do período. É provável que estes fatos não sejam do conhecimento vivencial de muitos dos leitores deste blog, que ou ainda não tinham nascido ou eram crianças quando dos acontecimentos. A intenção, porém, é dar uma idéia do contexto geral da época, sem nenhuma pretensão de ser exaustivo.

A queda do governo civil
Ainda trabalhava na ARCON quando caiu o governo João Goulart. Nos dias mais tensos, 31 de março e 1º de abril de 1964, trabalhamos com os portões fechados, pois havia rumores de que alguns sindicatos estavam forçando as empresas a suspender atividades. O ambiente estava pesado, naturalmente. Assisti ao último discurso de Brizola, na sacada da Prefeitura de Porto Alegre, dia 31 de março. Confirmada a queda do Governo, eu e outro colega resolvemos ir ao centro da cidade para ver o movimento. Chegamos em uma esquina da Borges de Medeiros e encontramos tudo deserto. Logo em seguida apareceu um soldado do exército, de fuzil na mão nos afastando dali: “olha o bolinho, olha o bolinho”. Bolinho era gíria para uma pequena aglomeração. Achamos prudente, portanto, dispersarmos nossa perigosa concentração de duas pessoas e fomos para casa.


Prefeitura de Porto Alegre

Brizola era idolatrado no RGS e sua fuga para não ser preso repercutiu muito. A população quer ver sangue, se este for dos seus mártires. A saída de cena, porém, foi o que possibilitou que anos depois Brizola voltasse e tornasse a ser político de influência. Meu pai era eleitor fiel de Brizola. Mesmo depois de ter passado dos 70 anos, quando não era mais obrigado a votar, ia às urnas apesar de todas as dificuldades, tinha um problema de circulação nas pernas que o acabou impedindo de andar, só para votar em Brizola. E depois me telefonava para saber se eu também já tinha votado nele.

Fui mesário de votação umas poucas vezes. É uma experiência muito interessante. A maioria das pessoas não tem idéia de como existem eleitores que votam com fé, com entusiasmo e fazem disto um evento de elevado patriotismo. Principalmente as pessoas mais velhas, que, como meu pai, poderiam ficar em casa mas fazem absoluta questão de exercerem o seu ato cívico com o maior orgulho.

Antecedentes da queda

Em março de 1964 o governo de João Goulart chegou ao seu paroxismo político. Tendo assumido a presidência, após a renúncia de Jânio Quadros, dentro do regime parlamentarista que reverteu em 1963, após plebiscito, Jango lutava para viabilizar politicamente sua plataforma das chamadas “reformas de base”, apresentadas no Plano Trienal elaborado por Celso Furtado: reforma agrária, reforma educacional (incluindo a reforma universitária, com abolição da cátedra vitalícia), reforma fiscal, reforma eleitoral, reforma urbana e reforma bancária. Seu último grande ato político foi o discurso de 13 de março na Central do Brasil, quando assinou decreto desapropriando para fins de reforma agrária as áreas rurais ao longo dos eixos rodoviários e ferroviários federais. E o seu último discurso foi na sede do Automóvel Clube do Brasil, em 30 de março, quando o golpe militar já estava articulado.

 Fragmento do discurso de Jango

Entre as propostas de Jango, duas, de menor peso político, eram bastante curiosas, as que tratavam do sapato popular e do tecido popular. Ambas mencionadas brevemente no discurso da Central do Brasil, mas já previstas desde 1962, pela Lei Delegada nº 4, de 26/09/62, que dispunha sobre a “intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo”. A criação do sapato popular, que não era objeto de contestações ideológicas, chegou um pouco mais longe. Foi objeto do Decreto nº 53.586, de 21/02/64, que instituía no Ministério da Indústria e Comércio o Grupo Executivo da Indústria de Calçados (GECAL) e estipulava a criação de três diferentes tipos de sapatos populares: o “colegial”, diferenciado segundo os sexos, o calçado “popular”, para homens, e o calçado “esporte”, para senhoras. O GECAL chegou a apresentar o custo para cada tipo, sendo que as fábricas de calçados ficariam com liberdade para criar seus próprios modelos. O governo caiu antes que a medida entrasse em execução. A fabricação do tecido popular também ficou apenas nos estudos preliminares. Felizmente. Sabe-se lá o que poderia ter sido o tal tecido popular.

O grupo dos onze

Antes da queda do governo de João Goulart, e antevendo uma grande disputa pelo poder, inclusive entre os partidos de esquerda, Brizola montou seu próprio esquema de sobrevivência política: os “grupos dos onze”, à semelhança de um time de futebol, que  iriam compor um Exército Popular de Libertação, e seriam organizados em todas as instâncias possíveis, prontos para uma mobilização e enfrentamento extremos.
Uma romance sobre o assunto, de 1969

Um dos comensais na pensão onde almoçava era um jovem afrodescendente muito risonho, que trabalhava em um banco. Sumiu depois dos acontecimentos políticos. Passado um bom tempo, algo por uns dois meses, ou pouco mais, retornou ao nosso convívio. Acabou contando sua história: era “sargento do batalhão bancário” em seu estabelecimento. Estoura o levante militar e ele convoca o grupo dos onze para se reunir em um lugar já previamente escolhido. Todo mundo lá, à espera de armas, munições e instruções para a resistência. O tempo passa e nada dos recursos prometidos. Aí um dos onze diz “tenho que ir em casa deixar um dinheiro para minha mulher, ela não tem nem como comprar pão e leite para as crianças; vou lá e já volto”;  outro alegou que a sogra estava doente, iria dar uma rápida assistência, etc. e tal. Quando se deu conta, o bravo sargento estava sozinho. Achou muito prudente deixar tudo aquilo de lado e ir para Santa Catarina, onde passou um tempo escondido na casa de parentes. Ao ver as coisas serenarem, voltou e teve a sorte de ser readmitido.

A Coleção História Nova

Ainda nos primeiros meses de 1964 o Ministério da Educação e Cultura (MEC) lançou uma coleção de textos didáticos destinados aos professores de ensino secundário: a “História Nova”.



A coleção foi organizada pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), coordenada por Nelson Werneck Sodré, e pretendia reinterpretar a história brasileira com o uso do método marxista. A organização dos volumes e a redação dos textos foi feita com a colaboração de professores da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. A Campanha de Assistência ao Estudante do MEC foi a responsável pela divulgação da coleção. A previsão era editar dez títulos, mas somente os cinco primeiros foram distribuídos gratuitamente aos professores secundários. Com a tomada do poder pelos militares a edição foi suspensa. No ano seguinte, em 1965, houve uma segunda edição, patrocinada pela Editora Brasiliense, que pretendia condensar os dez volumes em apenas seis. Mas, apenas dois volumes foram republicados. Os exemplares foram apreendidos nas livrarias e na própria editora, e os autores foram perseguidos e presos.

Apesar de todas estas vicissitudes, o projeto da História Nova, no entendimento de Lúcia M. Paschoal Guimarães (O parecer do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre a História Nova, s/d, mimeo): “representou um avanço na historiografia do livro didático. Um momento de ruptura, mesmo. A partir dali, as determinantes econômicas dos processos históricos seriam definitivamente incorporadas aos conteúdos dos compêndios escolares”.

Ouro para o Bem do Brasil
Esta história é impressionante. O governo militar encontrou o país com baixas reservas internacionais, cuja garantia era assegurada por depósitos em ouro. Era necessário descobrir um meio de conseguir “lastro” para reduzir nossa dívida externa. Surgiu a idéia de realizar-se uma campanha para angariar peças de ouro entre a população. A organização publicitária foi dos Diários Associados e operacionalizada pelo movimento dos “Legionários da Democracia”.  A idéia repetia iniciativa semelhante feita em São Paulo, em 1932, com o objetivo de angariar fundos para a chamada Revolução Constitucionalista.  
Foi realizada uma monumental campanha publicitária em todo o país. A coleta estendeu-se por todos os municípios brasileiros: nos postos de coleta eram recolhidos todos os tipos possíveis de peças de ouro, muitas delas heranças de família, como alianças, jóias, correntinhas, brincos, etc. As pessoas que doavam recebiam um anelzinho de latão com a inscrição “dei ouro para o bem do Brasil”.
 
Dei ouro para o bem do Brasil
Segundo a revista O Cruzeiro, só em São Paulo em duas semanas foram recolhidos mais de 400 quilos de ouro e cerca de meio bilhão de cruzeiros. Nunca se ficou conhecendo, ao certo, os resultados finais da campanha. Enfim, como até hoje somos uma nação de crédulos...
O Cruzeiro – 13 de junho de 1964

-oO)(Oo-

sábado, 15 de outubro de 2011

TRABALHANDO ARDUAMENTE NA CIDADE GRANDE (Porto Alegre – Parte II)

 

Nossa memória está repleta de monumentos
que não foram esculpidos na pedra nem fundidos no bronze.
Cada um tem os seus, aquela coleção das coisas e dos fatos
memoráveis, do que foi suprimido dos cenários e da vida, mas que
permanece gravado na mente e nas lembranças.
José de Souza Martins

Cidades e cidades

Minha primeira impressão ao chegar na capital foi a sensação do anonimato. Minha cidade natal, Lavras, era pequenininha. Bagé uma cidade média, mas facilmente administrável. Porto Alegre era uma metrópole. Imensa, com gente aos borbotões em qualquer canto. Percebi que naquela multidão era um anônimo. Luis Fernando Verissimo falava no tipo “popular”. Dizia que nas reportagens de jornal quando em alguma fotografia aparecia alguém não identificado era tratado por “popular”: “um popular olhando a cena...Mas descobri que aquele anonimato tinha uma certa vantagem, permitia o individualismo. Por exemplo, o sujeito podia se vestir de qualquer jeito que ninguém ligava a mínima. 

 

Mapa de Porto Alegre

 A vida em cidade pequena não é sempre idílica e romântica, como se costuma pensar. Agatha Christie, a grande escritora de livros policiais, dizia que era nas cidades pequenas que se cometiam os piores crimes. Normalmente cidade pequena é polarizada. Em Lavras, que me lembre, não havia, a rigor, maiores polarizações, apenas alguma rivalidade em função do grupo carnavalesco ou entre católicos e protestantes, mas só isto, portanto tudo amigável e numa boa. Em outras cidades, o problema é maior quando existem casos de polarização política entre a família de fulano e a família de beltrano. Então, só compra no mercadinho tal porque é de fulano, só abastece no posto de gasolina qual porque é de beltrano.

Além disto, em cidade pequena acontece uma superexposição. Para qualquer gesto do sujeito, até mesmo encostar em um poste, sempre tem alguém olhando, interpretando e dando opinião: “está bêbado”, “é um vagabundo”, “está escorando o poste para o poste não cair...” É impossível ser anônimo em cidade pequena. Por outro lado, “gente de fora” é sempre um estranho no sentido próprio da expressão. Uma ocasião, por conta de uma parada de ônibus um pouco mais prolongada do que o habitual, em uma cidadezinha no meio do trajeto entre Bagé e Pelotas, resolvi dar uma pequena caminhada pelas redondezas. No meio da tarde, as ruas estavam desertas. Cadê o pessoal? De repente, ao chegar em uma esquina, pressenti que alguém estava observando. Virei rapidamente, a tempo de ver várias pessoas me olhando pelas janelas. Que imediatamente se fecharam. 

Uma pequena urbe

Assim, se na cidade pequena há uma superexposição, na cidade grande o cidadão some no meio da multidão. Mas, se em um primeiro momento isto parece uma vantagem, como aos meus olhos de garoto tímido vindo do interior, a continuidade da inserção social leva à procura de mecanismos de integração com outras pessoas. Muitos anos adiante desta narrativa, indo a São Paulo e visitando Geraldo Müller, antigo colega de curso e que estava na ocasião realizando seu doutorado, ele contava algumas características da metrópole. Disse que uma menina lhe entregou em uma esquina um convite para uma festinha em sua casa, no bairro tal. Segundo explicou, como ela não possuía muitos relacionamentos pessoais diretos, achou por bem convidar ao acaso. Quem tivesse interesse iria, quem não tivesse não iria. É provável que a sua distribuição de convites não fosse tão aleatória assim. Passaria primeiramente pelo crivo da avaliação da outra pessoa, como naquele ditado popular que diz que “a primeira impressão é a que fica”. Depois, a identificação do bairro no convite já dava uma demonstração de seu nível social. Portanto, quem estivesse muito acima provavelmente não iria, e quem estivesse em um nível assemelhado provavelmente veria ali uma boa oportunidade para o estabelecimento de nova convívência.

Na atualidade, este convite ao acaso é utilizado como convocatória pela Internet para ações coletivas e é a base de relacionamentos virtuais em redes sociais. Porém, ter seis milhões de “amigos”, como no caso de Paulo Coelho, significa várias coisas, menos que seus seguidores possam ser considerados amigos no sentido etimológico.

Batalhando

Matriculei-me em curso noturno para ver se conseguia um jeito de ganhar algum. Trabalhei em dois escritórios, por curtos períodos. A atividade maior, que se prolongou durante o curso universitário, era em um cartório, onde não havia problema de horário e o ganho era por produção. Sem carteira assinada, óbvio. Nossa equipe de datilógrafos (homens e mulheres) transcrevia escrituras de compra e venda, cuja versão original era o registro manuscrito em uns livros imensos. Na primeira metade dos anos 60 ganhava alguma coisa tipo cinco cruzeiros por linha corrigida (talvez algo aproximado dos centavos atuais). Por linha corrigida, porque tinha uma funcionária cuja única função era identificar erros nas páginas datilografadas. Só após feitas as correções é que as linhas entravam para a nossa quota de ganho. Certa ocasião consegui datilografar uma escritura inteira, que sempre eram de várias páginas, sem um único erro. Pelo seu caráter especial, esta escritura ficou durante muito tempo exposta como exemplo de qualidade do trabalho dos funcionários. Mas, santo cartório! Foi, de certa forma, o que permitiu que este modesto blogueiro concluísse seu curso universitário. Não por todo o tempo, pois na reta final da faculdade passei a me manter com a aplicação de questionários das pesquisas de opinião.

Para datilografar com rapidez não se lê o texto no sentido cognitivo,
a tarefa se resume ao ato mecânico de visualizar o texto e reproduzi-lo

Dos escritórios, o mais interessante sob uma perspectiva antropológica foi o da ARCON, uma empresa que produzia aparelhos de ar condicionado. Suponho que os escritórios das fábricas inglesas pré-revolução industrial fossem daquele tipo. Embora fisicamente separado do chamado “chão de fábrica”, o escritório não tinha luxo nenhum. Fiquei lá os três meses considerados “de experiência”, portanto sem encargos sociais. Pedi para sair quando o período estava se encerrando senão teria que ser fichado, o que não me interessava.  O chefe do escritório era ranheta, mas, no fundo, muito no fundo, lá por profundidades do pré-sal, não era mau sujeito. Vivia estressado: “este escritório vai parar por falta de clips” (ah! bons tempos...). Outra feita, quando estava com a macaca, me chamou: - “Há quanto tempo estamos sem enviar correspondência para nosso representante comercial em São Paulo?” Disse o período. – “E por que não escrevemos?” Informei que não havia nenhum assunto comercial pendente. Não convenci. - “Mas temos que escrever. Ele precisa saber que estamos vivos”. Infelizmente não lembro em que termos redigi uma correspondência para informar que estávamos vivos.


Apesar de a questão ter sido colocada daquele jeito, não é necessário ler nenhum manual de administração para encontrar uma certa lógica. Considerada a distância entre as duas cidades, sem nada do que hoje se conhece por tempo real, vá que o representante em São Paulo recebesse notícias mais constantes de algum concorrente mais vivo em todos os sentidos.

Pois isto. Por enquanto.
-oO)(Oo-





sábado, 1 de outubro de 2011

PARALELO 30 BRASILEIRO (Porto Alegre - Parte I)

(Paralelo 30º S é a marca geodésica que corresponde a 30 graus sul no plano equatorial; é a latitude de Porto Alegre)

O ano da minha Idade Média

Fui para Porto Alegre em 1964, inicialmente para cursar o 3º ano do científico no Colégio Estadual “Júlio de Castilhos”, mais conhecido por “Julinho”. Antes, duas providências de ordem cartorial: tirei em Bagé a minha primeira identidade, confeccionada em uma espécie de caderninho, e em Lavras compareci ao alistamento militar, do qual foi dispensado por excesso de contingente, graças a providenciais contatos de meu pai. Pois sempre que lembrava dos primeiros tempos em Porto Alegre, tinha a idéia de que tinha sido uma espécie de Idade Média, um período algo sombrio. Basicamente por conta de dois fatores associados, ambos ligados ao Julinho: meu último ano em Bagé tinha sido de elevada agitação juvenil, agora estava matriculado em uma turma do curso noturno, onde eu era um dos mais novos e a grande maioria já trabalhava, portanto gente séria que buscava um rumo em sua vida; além disto, foi minha primeira (e única) experiência em curso noturno, em um colégio que na minha lembrança não era excepcionalmente iluminado. Tinha, assim, a lembrança de ter sido um período escuro.


No entanto, quando a gente começa a escarafunchar a memória, vê que não foi só isso, que muita coisa aconteceu. Assim também na Idade Média propriamente dita, que transcende a noção de ter sido apenas um período de pobreza e estagnação. O seu resgate cultural deve-se grandemente a Umberto Eco (parto do princípio que todo mundo conhece e sabe de quem se trata; senão, Google nele). Além de suas obras de ficção com enfoque medieval, como O Nome da Rosa, Umberto Eco ilumina o período em Arte e Beleza da Estética Medieval, onde mostra como o período pavimentou a passagem que leva ao Renascimento.

A nova vida

Estabeleci-me em Porto Alegre em uma casa de cômodos localizada na Rua Felipe Camarão, Bairro do Bom Fim. O bairro era predominantemente de judeus, assim como os proprietários da casa, um casal sem filhos, morando com a nora, e que, para reforço do orçamento, alugavam quartos. O terreno era comprido, onde foram construídos quartos de dois a dois, com um banheiro comum. Fiquei no quarto mais barato, de quatro camas. No quarto contíguo apenas duas camas. Em compensação o banheiro ficava no nosso quarto. Durante os meus sete anos de Porto Alegre fiquei neste mesmo lugar. Atualmente no local existe um prédio de apartamentos. O adensamento demográfico e o avanço imobiliário são inexoráveis. 

Rua Felipe Camarão

Alugávamos o pouso, as refeições ficavam por conta de cada um, naturalmente alhures. Todos éramos estudantes, com uma honrosa exceção, um colega que “se virava”, trabalhava como rádio-técnico e quantos outros expedientes pudesse, muito simpático e cheio de malandragens, razão pela qual ganhou de nós o apelido de “Picardia”.

Pois Picardia, com a finalidade de mostrar pontos interessantes da capital, me leva para conhecer o bairro Boa Vista, no final da avenida Carlos Gomes. Um bairro muito parecido com as cidades americanas que a gente vê no cinema: fora do burburinho central, relativamente pequeno, belissimamente arborizado e com casas espetaculares, na época com imensos jardins sem cercas em sua frente (os bairros de habitações individuais de Brasília, Lagos Sul e Norte, correspondem a este padrão). Fiquei encantado particularmente com a rua Raimundo Correa, por ser parte do meu nome. A homenagem era ao grande poeta parnasiano Raimundo da Mota de Azevedo Correia, nascido a bordo do navio São Luis, na baía de Mogúncia, ao largo do Maranhão. O bairro Boa Vista ficava em posição privilegiada e elevada, tal como a classe alta européia, que ocupa as posições superiores dos terrenos, e ao contrário do que acontece no Rio de Janeiro. Na parte de baixo, separadas pela avenida onde passava o ônibus, uma miríade de construções populares (uma favela, termo na época não utilizado no RGS). Diz Picardia: - “Este pessoal aí é todo mundo comunista”. Achei curioso: - “Mas por quê?”. E ele: - “Ora, o sujeito vive numa miséria destas, acorda, olha para cima e vê todo este luxo... só pode virar comunista”.

Rua Raimundo Correa

Outra do Picardia: aparece com uma vitrola que tinha consertado e um disco de música clássica. Colocaria para rodar quando fôssemos dormir, assim o sono viria embalado por uma música suave. Tudo combinado, luz apagada e o disco começa a tocar. Era a primeira vez em que todos nós escutávamos o Bolero, de Ravel. Como é sabido, o Bolero tem um tema que vai se repetindo várias vezes, sempre em um crescendo progressivo, cada vez com maior número de instrumentos até seu final literalmente estrondoso. Uma obra belíssima, mas inadequada ao que esperávamos, uma completa reversão de expectativas: quando terminou, ao invés de já estarmos na companhia de Morfeu, o deus grego dos sonhos, estávamos meio espantados, de olhos esbugalhados. Como tudo tem seu lado positivo, iniciávamos ali nossa bagagem cultural de música clássica. Bolero ficaria inesquecível, claro que depois do episódio por suas qualidades substantivas.

O bairro do Bom Fim

Vida tranqüila, o Bom Fim tinha igreja católica e sinagoga. Também um Círculo Social Israelita, aberto à população não-judia para algumas programações. Ali assisti a peças de teatro, conferências, debates culturais.

Não estava mais em Porto Alegre quando o Bom Fim virou animado “point”, com grande número de barzinhos freqüentados pela juventude. O bairro possui muitas referências culturais.
  •  Moacyr Scliar (1937-2011), um grandes escritores brasileiros, nasceu no Bom Fim, onde ambientou seu primeiro romande “A guerra no Bom Fim”, ficção sobre os tempos da Segunda Guerra Mundial. Moacyr Scliar era médico sanitarista e produziu uma obra extensa, boa parte referente à cultura judia. Em 2003 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
  •  Na música, a “tchurma do Bonfim”, em “Deu pra Ti”, de Kleiton e Kledir:


  • O bairro também ficou conhecido nacionalmente pelo personagem “Magro do Bonfa”, de Adão Nascimento, conhecido por sua participação na Escolinha do Professor Raimundo. A expressão “magro do Bonfa” causava alguma estranheza porque o humorista não era magro. É gíria, originalmente para designar os frequentadores dos barzinhos da Oswaldo Aranha, reduto da boemia: “magro do bonfa”, “magrinha do bonfa”. No comentário de Emílio Pacheco, “Nos anos 70, ‘magro’ ou ‘magrinho’ era como ‘bixo’ ou ‘cara’. ‘E aí, magro?’  Mas também se usava ‘magrinho’ para definir um tipo característico, o típico jovem modernoso, pra frente, malandro, falador de gírias, usando roupas transadíssimas”. Como este blog é lido em conventos, a explicação é suficiente. 

O Magro do Bonfa na Escolinha do Professor Raimundo
  • Existe até um blog dedicado ao bairro: “Nosso Bom Fim: o melhor e o pior sobre o bairro Bom Fim e arredores”: http://nossobomfim.blogspot.com/ .

Em 2010 a UFRGS organizou uma exposição sobre o Bom Fim com o título “Um Bairro, Muitas Histórias”. Em texto publicado na Zero Hora (provavelmente um de seus últimos), Moacyr Scliar encerra seu depoimento assim resumindo: “O Bom Fim: cadinho de culturas, sonhos, de esperanças, de idéias, de talentos”. No meu tempo participei destes sonhos e destas esperanças.

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