terça-feira, 20 de outubro de 2009

UM BLOG DO SÉCULO XIX

Raimundo Tadeu Corrêa

Como todo mundo sabe, ou já esqueceu de tanto saber, os blogs surgiram como diários postados na Internet: os web logs, i.é, o lugar de alguém na rede. Em sua fase inicial nossos blogs foram o grande meio de expressão dos adolescentes, de idade ou de espírito. Eram descrições literais do que o sujeito estava fazendo, tipo “um passarinho pousou na minha janela”, ‘hoje acordei de mau humor”, etc. Visto de uma perspectiva etária algumas décadas acima, pareceriam trivialidades que só poderiam atrair leitores por alguma razão inexplicável. Nem tanto, porém. Por estas mesmas razões de curiosidade atávica é que os programas de televisão tipo Big Brother são um sucesso estrondoso . Uma amiga de minha mulher, entusiasta ardorosa desta, digamos, modalidade de entretenimento, usa como argumento a seguinte pergunta: “vocês não gostariam de saber o que se passa no apartamento do vizinho?” Bueno, pode ser que sim, desde que se fosse vizinho da Família Adams, do Ozzy Osbourne, ou de qualquer outro núcleo familiar que pudesse, pelo exotismo, despertar curiosidade.

Com a diversificação temática, hoje os blogs abordam de tudo: notícias, opiniões políticas, crítica de arte, poesias, crônicas, até expressões libertárias, como o blog da cubana Yaoni Sánchez, que acaba de receber o prêmio Maria Moors Cabot de Excelência Jornalística para a América Latina e Caribe, concedido pela Escola de Jornalismo da Columbia University, Estados Unidos.

Até bem pouco tempo, os antecessores dos blogs eram os famosos diários. Toda adolescente tinha um. O que poderia até levar à imortalidade literária, como “O Diário de Anne Frank”. Outro exemplo clássico é a belíssima edição “Joaquim Nabuco Diários”, Volume 1 (1873-1888) e Volume 2 (1889-1910), publicação da Bem Te Vi Produções Literárias e da Editora Massangana. A coordenação da obra, elaboração de prefácios e notas, foi de Evaldo Cabral de Mello. Abaixo encontram-se transcritas algumas anotações de Joaquim Nabuco, diplomata e abolicionista:

Como o cérebro tem afinidade para certos venenos, o coração tem-na para certas tristezas. As afinidades eletivas são tão químicas como morais. (03/01/1877)

O inferno, o pandemonium, a região dos fantasmas e dos pesadelos, o círculo eterno do desejo e do sofrimento, o demônio e a tentação, o veneno que torna louco, tudo isso chama-se o eu, quando ele quer sair fora de si mesmo. O eu, o sentimento continuado de si mesmo, o eu formando o centro de tudo, o fim de tudo, é de todas as doenças a pior e infelizmente a mais incurável. O suicídio, a loucura, ou a devassidão é o termo a que ela leva o homem. Os possessos desse demônio são os mais infelizes de todos. O único meio de aliviar o sofrimento dessa melancolia, agitada em suas aspirações, impotente em sua saciedade, sombria como as trevas visíveis do espírito, é esquecer-se, e nenhum narcótico pode ser condenado como imoral porque nesse caso o sono ou a morte é melhor do que a consciência. (15/01/1877)

Um estudo sobre as galerias de New York, e se possível dos Estados Unidos, não deixaria de ser curioso. O que distingue essas galerias é o mau gosto e a confusão. Os bons quadros parecem esconder-se com vergonha do maior número. As exposições de pintura aqui são mais freqüentadas à noite. Os americanos apreciam melhor os quadros à luz do gás. (03/03/1877)

Teoria do casamento com estrangeiras
Eu tenho desenvolvido a teoria de que o amor, sendo em grande parte a sede do desconhecido, a mulher que mais longe está de nós, pela raça, pela língua, pelo nascimento (em certas classes envolvendo sempre a aspiração da ambição) é a que mais nos convém. É preciso porém que esse homem e essa mulher tenham de comum entre si esse amor absoluto um do outro, sem o qual todas essas diferenças tornam-se inconciliáveis e perdem todo o interesse, e são antes obstáculos do que estímulos.
A inocência é a poesia da força. Nada devia ser mais agradável aos heróis do que serem levados ao banho pelas virgens e perfumados e vestidos por elas. (27/05/1877)

- Ela sabe esconder muito bem os seus sentimentos, e não é uma pessoa de quem se possa saber o que sente, me dizia Miss O. falando de Miss Work. “Realmente, ela os esconde tão bem que ela mesma não os acha”, respondi-lhe. (22/06/1877)

O homem sociável pode ser muito diverso do homem solitário? Posso eu no fundo ser inteiramente outro do que pareço quando na sociedade? A minha natureza pode ser melancólica sem que os que vivem comigo o saibam pelo simples fato que a presença deles afugenta o homem solitário. Meses e meses eu não penso em religião nem em poesia, mas quando volto a elas, o prazer que sinto revela-me que a tristeza do pensamento solitário é a pedra-de-toque de minha natureza. (07/09/1877)

Em Petrópolis, Taunay nos conta a história do coronel gaúcho que disse ao conde d’Eu que a mulher dele era como a princesa, machorra.
- O que quer dizer machorra?
- É como se chama em minha terra a égua que não pare.

Há muito que eu sofro cada dia, e receio. De ora em diante, tomo a vida como ração. Deus não me dá a vida mais aos anos, mas aos dias, dia a dia, e assim talvez venha ser melhor mais tarde... Em todo o caso, sinto-me viver no dia-a-dia e não mais ilimitadamente, a prazos longos, sine die. (29/11/1901)

Os dois maiores amores são o de Deus e o de si mesmo (amar ao próximo como a si mesmo, Jesus sabia o que dizia), pois são os únicos cujo objeto não pode morrer para o homem. A todos os outros amores, ele pode sobreviver. (08/12/1902)

Começo hoje a minha nova devoção da Boa Morte. Entro mentalmente no período preparatório. Quando Deus soprar a minha vida, como se sopra uma vela, que o faça com um sopro brando e sem desprezo da sua pobre criatura. (05/10/1903)

Exemplo de um dia meu agora: acordo às 9h30, rezo, tomo o meu café (dois ovos, duas xícaras de café com leite, quatro toasts grandes com manteiga) seguido de bismuto, da trinitina e da estricnina às 10 h. Sem descanso leio logo os cinco jornais da manhã; escrevo duas cartas, uma a Mrs. Fish (esta antes do almoço), outra ao Silvio Romero, agradecendo-lhe o último livro. Escrevo longa carta a Mr. Rowe, agradecendo a que me escreveu, recebida hoje. Deito-me uma meia hora para descansar. Depois ao “gabinete”. Faço a barba sentado, depois venho ler a Vida de Gladstone, por Morley. Escrevo ao Bassett Moore. Almoço canja à 1h45. Descanso uns vinte minutos deitado. Depois arrumo papéis e às 5 h, massagem. Depois da massagem, brincando com os meninos no quarto de Evelina até a hora do banho. Em seguida, às 8h, o jantar. Depois conversando e arrumando papéis no gabinete até às 11h. Às 11h30 deito-me. (17/12/1906)

Deus seja louvado por não poder eu ver uma bela cena, um belo dia, sem que a primeira tecla ferida em meu espírito seja a do reconhecimento da criatura pela bondade do seu Criador, que lhe oferece mais esse espetáculo. E, assim, toda impressão de beleza, física ou moral e, por assim dizer, cada respiração dos que me são caros, cada alegria deles. (27/09/1909)

Um comentário:

Rosamaria disse...

Gostei muito deste teu post, Raimundo. Sem dúvidas o Joaquim Nabuco nos deixou uma idéia de seus sentimentos que talvez não estejam em livros escritos por ele.

Um abraço.