sábado, 28 de abril de 2012

UMA RECEPÇÃO DE GALA (Porto Alegre – Parte VI)


Uma Explicação

Nesta matéria vou tratar da cerimônia que marcou meu ingresso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, após ter sido aprovado no vestibular para o Curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia. Pretendo, nas próximas duas ou três, apresentar algumas impressões sobre os professores, alguma coisa sobre os colegas e uma ou outra historinha de nosso cotidiano universitário. A abordagem vai retomar um memorialismo pontuado aqui e ali por comentários pessoais. No entanto, existe um blog que já tratou de assuntos semelhantes, em um sentido mais de informações, mais jornalístico. É o Blog da Marina, http://marinalimaleal.blogspot.com.br/, onde ela postou um apanhado geral sobre nossos professores, dos quais conseguiu recuperar o nome da maioria, além de diversas matérias sobre o contexto político e cultural da época. Marina Lima Leal foi minha colega de curso no regime de créditos, portanto, nossa trajetória escolar não terá sido sempre idêntica, nossas lembranças idem. Além disto, trato aqui da cerimônia de ingresso na universidade, de que Marina não participou, e ela tratou de nossa formatura, que, desta vez, quem não participou fui eu.
Atualmente, como é sabido, são cometidas verdadeiras atrocidades e barbaridades a título de “trote”, muitas das quais acabam frequentando as páginas policiais. Acho que isto ocorre em grande parte por conta da leniência das autoridades universitárias, que alegam que os fatos ocorreram fora do campus, o que nem sempre é verdade. De outra parte, é possível que alguns dos calouros aceitem tarefas absurdas com a expectativa de que no próximo ano será a vez deles protagonizarem as brincadeiras pesadas. Estabelece-se, portanto, um ciclo vicioso.
Nem sempre foi assim. Como será visto a seguir, a recepção que a UFRGS preparou para os “bixos” de 1965 foi algo tão civilizado e tão bem programado que, à luz do que acontece hoje em dia, parece ter sido organizada pelo cerimonial do Palácio de Buckingham, da casa real britânica.
Como se costuma dizer que uma fotografia vale por mil palavras, serão elas que a seguir vão contar a história.
A recepção

A parte principal da comemoração constou de uma gincana realizada no Clube Cantegril, de Porto Alegre, em 20/03/1965. Um ônibus da universidade nos levou até lá.

     Em cima, no lado direito, em pé, Mario Riedl (veterano na época e posteriormente docente da UFRGS). Em baixo, também no lado direito, André Forster (veterano e depois líder estudantil e político, já falecido)

Fila de entrada no Clube, quando já estávamos identificados como calouros 

 
Kit de recepção: cada calouro recebia um cartãozinho com uma frasezinha de estímulo no estilo auto-ajuda (desenhado e escrito à mão; veja-se a trabalheira que deu)

 
O bonezinho da Faculdade de Filosofia era outro componente do kit distribuído aos calouros

 
O tempo é cruel e inexorável (I): o bonezinho continua o mesmo. Mas, só o bonezinho... A primeira foto é de 1965 e a segunda de 2011

 
 O tempo é cruel e inexorável (II): o cartaz de identificação dos calouros mencionava o nome de um cientista social que seria seu patrono intelectual. Coube a mim a antropóloga Margaret Mead. 

 
Nas dependências do Cantegril. Do meu lado o colega Geraldo Müller. Tentei ser um visionário antecipando em algumas décadas o prestígio que teriam os descamisados atores globais. Não deu certo.
 
Final da festa
Ainda teve mais

As cerimônias de recepção aos calouros envolviam outras atividades sociais, a exemplo dos torneios de futebol com as demais faculdades.
 Nossa equipe de futebol society. Estou na posição de ponta-esquerda. Em cima, ao lado do goleiro, um de nossos colegas que era padre jesuíta (que, como bom soldado da Companhia de Jesus, batia firme).
Equipe de futebol de campo. O local era o Estádio da Montanha, do Cruzeiro, que muitos anos depois foi vendido pelo clube e transformado em um cemitério vertical. Estou na fila de baixo, abraçado ao técnico do time.

Pois isto! Rever estas fotos é lembrar com carinho de uma época que foi muito importante em nossas vidas.

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sábado, 21 de abril de 2012

FITAS CASSETE, DA FASE DE ESPLENDOR E GLÓRIA ATÉ OS DIAS ATUAIS


A fita cassete foi lançada pela Phillips em 1962. Em 2012 completa, portanto, 50 anos. E ainda não morreu. O jornal O Globo, do Rio de Janeiro, publicou, em 27/03/2012, reportagem com o título “Rebobine, por favor – A fita cassete faz 50 anos resistindo à era digital através de pequenos selos, aplicativos e produtos de consumo pop”.  Em resumo, alguns grupos norte-americanos ainda colocam no mercado versões em fita cassete de seus álbuns. O grupo Oil Montreal, por exemplo, lançou recentemente uma caixa contendo dez discos da banda em versão cassete. No Brasil, o lançamento inicial do grupo Los Hermanos foi feito em cassete, em 1999, com fitas produzidas em um tape-deck caseiro, do tipo double-deck (com dois compartimentos: no segundo vai a fita a ser copiada do primeiro). Em Juiz de Fora foi criada uma gravadora, em 2010, a Pug Records, especializada em lançamentos no formato cassete. Reportagem da CNN mostra que no Zimbábue a fita cassete ainda é o formato dominante. E a sobrevida das fitas cassete foi objeto de reportagens recentes dos jornais “Washington Post” e “Guardian”, e das revistas “Spin” e “Rolling Stone”. No campo das novidades, há um aplicativo para computador, o Setereolizer, que simula um rack de gravação em cassete.


Stereolizer, aplicativo para iPads

O Stereolizer permite ao IPad sintonizar rádios e gravar a transmissão usando os controles como se fosse uma fita cassete. Depois é só selecionar o arquivo de preferência e colocá-lo para tocar.

O passado risonho e franco

Para muitas pessoas a fita cassete evoca lembranças agradáveis. Em mais de um blog encontrei depoimentos saudosos dos tempos da fita cassete, enaltecendo sua praticidade, a facilidade com que se fazia uma gravação, muitas das vezes como forma de presentear uma dama com segundas ou terceiras intenções. É ótimo que se tenha guardado deste tempo as boas lembranças. Porque, na verdade, gravar uma fita cassete com um mínimo de qualidade era literalmente uma pedreira.

Quando cheguei ao Piauí, em 1972, as fitas cassetes (ou K-7) estavam no seu auge, o que iria persistir por mais de uma década. Nesta época elas conviviam com os long-plays, um disco era lançado em vinil e simultaneamente em fita cassete e o cidadão escolhia qual o formato que mais lhe convinha. Apesar de que as fitas cassete sempre tivessem uma qualidade fonográfica inferior, o seu tamanho apresentava algumas vantagens, principalmente pela sua portabilidade e pela possibilidade de uso nos aparelhos de reprodução do carro. Aliás, atualmente a audição no carro tem representado uma situação privilegiada, principalmente porque a maioria não tem mais disponibilidade de tempo para ouvir de forma relaxada um disco no aparelho doméstico. Este fenômeno não é somente brasileiro, mesmo expoentes do mundo artístico nos Estados Unidos confessam que só conseguem tempo para ouvir músicas no seu carro.  

 
A cartela de uma fita cassete comercial (pré-gravada)

No começo da década de 70, além das fitas cassete e dos long-plays, ainda era possível encontrar discos no formato compacto, que eram discos de vinil pequenos, normalmente com duas músicas de cada lado (compacto duplo), ou então com apenas uma no lado A e outra no lado B (compacto simples). Este lado B tempos depois passou a ser reverenciado. Servia também para apresentar um artista novo; cabendo o lado A para o artista mais conhecido e que servia de “isca” para a compra do disquinho. Os primeiros compactos possuíam 45 rotações por minuto (rpm), posteriormente passaram a ter a mesma rotação dos LPs: 33 rpm, mais exatamente 33 e 1/3.

Os primeiros auto-rádios, os aparelhos de carro, possuíam apenas a recepção de rádios que transmitiam em amplitude modulada (AM) e em ondas curtas. A transmissão em FM ainda demoraria um pouco. Os aparelhos mais caros chegavam a ter 10 faixas, o que, no dia-a-dia, era rigorosamente inútil. Em ondas médias e curtas recepção boa mesmo só se encontrava em regiões rurais, afastadas das interferências do ambiente urbano. À noite recebia-se o sinal de inúmeras rádios que durante o dia era impossível sintonizar. Aí era uma festa. Os rádios portáteis domésticos também possuíam utilidade, apesar de que já era possível comprar aparelhagens domésticas de altíssima qualidade com rádio integrado, aí chamado de sintonizador. Estes aparelhos costumavam ficar na sala da casa. Em lugar nobre. Mas, no meu quarto de casal mantinha um rádio portátil à cabeceira. Nas noites de Teresina procurava, sempre que possível, sintonizar a rádio Globo do Rio de Janeiro, ou então a rádio Jornal do Brasil, a primeira pelos programas de variedades e humorísticos, a segunda pela sua programação musical impecável.

Características das fitas cassete

Além da sua qualidade de reprodução inferior, principalmente por conta do chamado “ruído de fundo” (um chiado em baixa frequência – os bons aparelhos domésticos possuíam um sistema de “noise reduction”, isto é, redução de ruídos), as fitas cassete também possuíam uma “expectativa de vida” bem menor do que as dos LPs. Nada obstante, bem conservadas duram muito. Ainda são audíveis minhas fitas da época. A qualidade das fitas cassete era definida pelo composto da sua fita magnética: dióxido de ferro (a “normal”), cromo e metal (ferro puro), estas últimas as melhores. Quanto melhor a fita, mais pura a qualidade da gravação e menor o ruído de fundo. As fitas comerciais, de música popular, eram de dióxido de ferros. As únicas fitas comerciais de maior qualidade e, portanto, de maior preço, eram as fitas alemãs para música clássica, de cromo, da Deutsche Grammophon.

Um modelo de fita cassete

As fitas virgens podiam ser compradas no seu formato mais comum, de 60 minutos (trinta para cada lado), ou então, de 45 minutos ou de 90 ou 120 minutos. Como o invólucro das fitas era o mesmo, quanto maior o seu tempo de gravação, mais fininha era sua camada magnética. Portanto, fitas de 90 eram potencialmente mais frágeis do que as de 60. As de 120 minutos, de alto risco, eram rarissimamente utilizadas. Além disto, as fitas com maior capacidade de tempo para gravação eram também mais pesadas. Afinal, a fita tocava puxada por tração. Quanto mais pesada, mais força o aparelho tinha que fazer. Se isto não fazia diferença para aparelhos domésticos, podia ser um problema para os toca-fitas de carro.

Uma das características da fita cassete que mais dava trabalho era o fato de que, mesmo no caso de uma fita comercial pré-gravada, o tempo da gravação de um lado dificilmente coincidia com o tempo da gravação do outro lado, ou seja, o lado A terminava ao final de uma música, enquanto o lado B frequentemente tinha um tempo de gravação menor. O que acarretava o fato de que a fita, após o término da última música, ficava rodando só com o barulho de fundo até o seu final. Esta particularidade era o grande drama para as gravações domésticas, quando se pretendiam que fossem bem feitas.

Lembro que em meus primeiros dias de Piauí, conversando com meninas de nosso relacionamento, o assunto direcionou-se para as fitas cassete. Uma delas contou que colocava um disco para gravar e deixava tocando até o lado da fita terminar. Por curiosidade, perguntei como ela fazia para continuar a gravação. Ela me disse, com a maior candidez, que suspendia o braço do toca-discos, virava a fita para gravação do outro lado e simplesmente baixava de novo a pick-up. Era, evidentemente, um barbarismo. Em uma situação dessas, o correto seria desgravar a música inconclusa e recomeçar a gravá-la, na íntegra, no outro lado da fita.

Gravando... Ufa!!

Uma boa gravação era algo que exigia tantos cuidados que chegava a ser até estressante. Para gravar-se um disco, ou uma coletânea de músicas, a primeira providência era saber qual o tempo total de execução dessas músicas para ver se era possível acomodá-las na fita. O que às vezes levava a se fazer alguma “ginástica”, normalmente com a eliminação de algumas músicas que ultrapassassem o tempo de gravação disponível. Alguns discos traziam em sua ficha técnica o tempo de duração de cada música e isto facilitava o trabalho. Mas nem todos. Quando não havia esta informação era necessário obtê-la de forma empírica, isto é, cronometrando cada música. Para isto, o melhor era utilizar um cronômetro. Comprava-se um bom cronômetro, portanto. Era também importante considerar que sempre existem alguns pouquíssimos segundos a separar uma música de outra. Quando um LP é convertido em arquivo de áudio por meio de um computador, é preciso ter um programa próprio que identifique estes momentos sem gravação e que faça a separação entre as músicas; caso contrário, o computador lê todo o lado de um disco como sendo uma única faixa. 

 
Toca-discos

Assim, o extenuado cidadão que queria fazer uma gravação direitinha encarava uma trabalheira dos infernos. Depois de cronometradas as músicas de seu interesse, o que implicava em ouvir atentamente cada execução para poder marcar o tempo certo, era necessário somar o tempo de cada música para obter o tempo total. O que é uma barbada, desde que se tenha a lembrança de que não se somam diretamente os minutos e segundos de uma música com o tempo de outra: a cada 60 segundos, como é evidente, tem-se um minuto a ser transportado para os outros minutos remanescentes. Depois de tudo isto era preciso fazer a programação: que músicas seriam gravadas de um lado da fita, que músicas seriam gravadas no outro, procurando-se otimizar de alguma forma os tempos dos dois lados. Gravar um único disco era uma tranquilidade. Gravar músicas de diferentes discos, além do trabalho físico, tira um disco, põe o outro, etc. e tal, implicava em mais um cuidado: a equalização das faixas, pois alguns discos seriam gravados com músicas, digamos, “mais altas”. Uma equalização “pedestre”, a dos comuns mortais, era monitorada pelos “VUs meters” do aparelho de gravação; os ponteiros dos VUs indicavam a frequência das músicas e a faixa em que elas podiam entrar em distorção. Calibravam-se as diversas faixas na melhor medida do possível. No entanto, podia acontecer de ser necessário colocar uma última música cujo tempo ultrapasse o disponível para gravação. Neste caso, diante de tanto trabalho, para o cidadão que não quisesse mais arrancar seus últimos fios de cabelo havia o recurso de se “encurtar” a última faixa pelo processo chamado de “fading out”, isto é, na mão ia se baixando gradativamente o volume da música de forma a antecipar o seu final.

Modelo de tape-deck

Outro recurso extremo era cortar a fita, para editá-la. Quando depois de gravada a fita ficava muito espaço sobrando, utilizava-se uma técnica proveniente das antigas edições de películas de cinema: cortava-se o pedaço da fita que estava  em branco e tornava-se a colar a parte gravada. Claro que isto podia ser feito de forma rústica, com tesoura e meio na raça. Para um bom trabalho era necessário, porém, um aparelhinho especial que possuía uma trilha onde ficava acomodada a fita a ser cortada e que também tinha um gabarito em diagonal para o corte, com estilete ou gilete. Uma fita adesiva especial colava a fita pela parte de trás, a que não era gravada. Não podia ser fita adesiva comum, durex, porque ela com o tempo endurecia e até podia descolar. Estes aparelhinhos não eram tão triviais. O meu veio era alemão (desaparecido após uma reforma no apartamento). Este processo também podia ser aplicado quando uma fita acidentalmente se rompia. Se o corte coincidisse com uma faixa gravada, dificilmente o remendo ficaria perfeito.

Depois de tudo isto, ainda havia um cuidado adicional: os aparelhos de reprodução podiam ficar magnetizados depois de certo tempo de uso. Era preciso, então, usar um desmagnetizador, um aparelho especial ligado à energia, em que entre suas duas pinças (veja a figura abaixo) se formava um campo elétrico, que era aproximado lentamente, aos círculos, das cabeças magnéticas do toca-fitas. Aproximava-se o mais perto possível, sem encostar, e depois se afastava o magnetizador do mesmo modo. O procedimento parecia coisa cabalística.

Desmagnetizador Akai

Finalmente o acabamento: datilografar o rótulo com o nome da fita, o que podia também ser feito com letra set (colando-se uma por uma), e datilografar o conteúdo de cada lado da fita, o que necessitava também de alguma dose de imaginação quando as informações eram em grande número. As máquinas de escrever, como devem estar lembrados, não possuíam os recursos dos computadores de diminuir o tamanho das fontes. 

Assim, o que na lembrança de alguns era apenas uma doce troca de mimos entre namorados e simpatizantes, ao pé da letra significava um trabalho árduo que envolvia muito sangue, suor e lágrimas.

A luta continua

Com tantos admiradores ao longo dos tempos, a fita cassete tem recebido algumas adaptações para renovar o interesse do mercado. Abaixo são mostrados alguns exemplos, cujo título descreve a finalidade do gadget, isto é, do produto.

Conversor de fita cassete para MP3

 
 MP3 no formato de fita cassete

 
Adaptador no formato de fita cassete para ouvir iPod no carro

Além disso, o formato da fita pode servir de capa para celular, para abrigar um pen-drive ou até para servir como modelo de hub, dispositivo que serve para multiplicar as entradas USB.

Enfim, “o mundo gira e a Lusitana roda”.

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sábado, 14 de abril de 2012

UM BLOGUEIRO DAS ANTIGAS

Como até agora resisti a participar das redes sociais, tenho a impressão de que a atividade de blogueiro é cada vez mais o exercício de um lobo solitário. Suponho que uma das vantagens desta atitude seja a liberdade de não necessitar estar conectado permanentemente. Isto na contramão da história, até mesmo de Paulo Coelho, que em entrevista recente conta que é fã do Twitter e que posta diariamente no Facebook: “São plataformas muito importantes para mim, para exercer a arte de escrever. Acho que isso tudo é literatura. As pessoas acham que literatura é só o que está em livros, mas não. Literatura é a arte de transformar em palavras um sentimento e uma emoção. Então, faço isso não somente no livro, eu exerço a arte de escrever através de blogs, Twitter e Facebook”. Este depoimento foi publicado no “Almanaque” da Livraria Saraiva, edição de abril de 2012.  
Na mesma linha de raciocínio, pode-se dizer que o blog é um formato atual que serve também para divulgar mensagens que já foram publicadas de outra forma. Aqui mesmo mostrei um exemplo: em 20/10/2009 postei “Um blog do século XIX”, onde apresentava algumas passagens que havia selecionado dos diários de Joaquim Nabuco, as quais poderiam perfeitamente fazer parte de um blog contemporâneo.
Michel de Montaigne

O caderno Eu & Fim de Semana, de 30/03/2012, do jornal Valor Econômico, publicou “Faça como Montaigne”, matéria onde Marcelo Rezende analisa o livro “Como Viver – Uma Biografia de Montaigne em Uma Pergunta e Vinte Tentativas de Resposta”, da escritora inglesa Sarah Bakewell. Segundo a autora, Montaigne, filósofo, moderno antes dos modernos, é um autor de autoajuda que pode auxiliar qualquer pessoa a viver melhor com a própria natureza e a natureza dos acontecimentos do mundo. Ela concorda com Andrew Sullivan, colunista do jornal inglês “The Sunday Times”, que disse ter sido Montaigne o primeiro blogueiro.
Na opinião de Sarah “há realmente algo especial em Montaigne, porque ele tende a fazer perguntas mais do quer dar respostas ou colocar sua opinião em primeiro plano. Algo muito raro em qualquer era”. E esclarece sua opinião sobre a caracterização de Montaigne como escritor de autoajuda, ou seja, faz a distinção entre o modo pelo qual ele via a filosofia e um livro de aconselhamento: “Eu não penso que deveria existir uma divisão rigorosa. Não se trata de alta cultura contra baixa cultura. Mas há uma diferença. Hoje a autoajuda procura por respostas fáceis e imediatas, com instruções sobre como fazer isso ou aquilo para ser feliz. Por isso Montaigne é um filósofo e não um guru. Não há respostas fáceis e imediatas. Talvez pudéssemos vê-lo como um romancista. Nós aprendemos em seu livro do mesmo modo que aprendemos ao ler um romance: vemos uma pessoa nas diferentes fases da vida, errando e tentando tomar boas decisões. Nos reconhecemos em outro ser humano”.
  Michel de Montaigne
Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) nasceu no castelo de Montaigne, na França. Preocupado com a preservação dos símbolos exteriores da aristocracia, seu pai dedicou especial empenho a propiciar uma educação esmerada a Michel. Para que seus ouvidos se tornassem refinados, todas as manhãs o menino era acordado ao som da espineta, uma espécie de cravo, e até os seus seis anos de idade familiares e serviçais só podiam falar em latim, para facilitar seu aprendizado da língua culta. Aprendeu as primeiras letras em latim ensinadas por um preceptor alemão. Estudou Direito, foi magistrado, membro do parlamento e prefeito de Bordeaux por duas vezes. Seus Ensaios, obra que lhe valeu ser considerado o inventor do ensaio pessoal, foram redigidos durante períodos em que passou isolado, na torre do castelo da família, após a morte de seu pai. 
Os Ensaios de Montaigne são compostos por três livros. Os dois primeiros volumes foram publicados em 1580. O terceiro foi edição póstuma, em 1593.  Alguns títulos dos capítulos: “Da tristeza”, “Dos nossos ódios e afeições”, “Somente depois da morte podemos julgar se fomos felizes ou infelizes em vida”, “Da incoerência de nossas ações”, “Como o nosso espírito cria suas próprias dificuldades”, “Da companhia dos homens, das mulheres e dos livros” e “Da arte de conversar”.      
Como é possível que a maioria dos leitores deste blog nunca tenha lido Montaigne, reproduzo abaixo trechos dos seus Ensaios. Pela sua extensão, não caberia aqui a reprodução na íntegra de qualquer dos capítulos. Além disto, é fácil encontrar na Internet uma coletânea de suas frases mais famosas e aforismos. Os poucos trechos escolhidos o foram pela curiosidade do seu enfoque, quer quando possui um viés, digamos, antropológico, quer quando comportamental. Os trechos são transcritos de “Michel de Montaigne - Ensaios”, coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, 2ª ed., 1980, tradução de Sergio Milliet.                                
Trecho do Capítulo XLIX “Dos costumes antigos” (Livro Primeiro): Os antigos tomavam banhos cotidianos, antes das refeições e os tomavam tão seguidamente quanto nós lavamos as mãos. A princípio lavavam apenas os braços e as pernas. Mais tarde porém (e isso durou séculos e se propagou por toda parte) mergulhavam completamente nus em banhos acrescidos de sustâncias perfumadas. Empregar água natural era prova de grande simplicidade. As pessoas particularmente delicadas e requintadas perfumavam o corpo todo ao menos três ou quatro vezes por dia. Arrancavam todos os pelos como nossas mulheres se acostumaram a fazer com os da fronte, de algum tempo para cá: “tens o peito, as pernas e os braços depilados” (Marcial) e os arrancavam, embora possuíssem ungüentos para o mesmo fim: “Unta a pele de ungüento depilatório ou a embebe de giz derretido no vinagre” (Id.).
Trecho do Capítulo XV “Nosso desejo cresce com a dificuldade” (Livro Segundo): Pensamos em tornar mais sólidos os laços do casamento, evitando a possibilidade de rompê-los; mas ocorreu que se relaxaram e desfizeram na mesma proporção em que se apertava o nó do constrangimento. Ao contrário, o que manteve os casamentos em honra durante tanto tempo em Roma foi a facilidade de dissolvê-los à vontade. Tanto mais se preocupavam com guardar sua mulher, quanto mais fácil era perdê-la. E embora o divórcio estivesse ao alcance de todos, decorreram mais de quinhentos anos sem que ninguém o requeresse: “o permitido não tem encantos; o proibido excita o desejo” (Ovídio).
Trecho do Capítulo XII “Da fisionomia” (Livro Terceiro): Parece-me que as formas e as linhas do rosto, pelas quais se inferem algumas características internas, bem como algo de nosso destino, não têm relação direta com a beleza e a feiúra, assim como um ar sereno e perfumado não garante a salubridade, nem uma atmosfera pesada e mal cheirosa é indício certo de infecção em tempo de epidemia. Os que acusam as mulheres de desmentirem sua beleza com seus costumes, nem sempre acertam, pois em um rosto que deixe a desejar pode alojar-se a probidade, ao passo que muitas vezes deparamos em lindos olhos ameaças reveladoras de um caráter mau e perigoso. Há fisionomias que nos parecem favoráveis, e, entre inimigos desconhecidos que nos cercam de todos os lados, escolhemos de imediato um de preferência a outro, rendendo-nos a ele com mais confiança e sem quem a beleza pese em nossa resolução.
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Mais Montaigne? Aos sebos, às livrarias.      
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