segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

CARNAVAL EM LAVRAS DO SUL

O carnaval de Lavras é muito animado e motivo de atração. A cidade recebe muitos visitantes no período. Atualmente existe um grande número de blocos carnavalescos, mas nas décadas de 50 e 60 havia dava-se uma disputa entre dois blocos rivais: o dos Relaxados e o Vai de Qualquer Geito. Ambos desfilavam pela rua principal apresentando quadros satíricos, além de versos divulgados pela Rádio Mugango, dos Relaxados, e pela Rádio Galocha, do Vai de Qualquer Geito. O Bloco dos Relaxados é considerado o mais antigo do Brasil. Seus versos abre-alas: “Sant’Ana do Faxinal / Madrinha dos Relaxados / Auxiliai-nos a cantar / Esses sucessos rimados”.

Na década de 60 o carnaval também era uma forma de promoção do congraçamento social. Durante os bailes, havia uma troca de visitas: um cortejo saía do Clube Comercial, com sua Rainha do Carnaval, e fazia evoluções no salão do Clube Operário, o qual, por sua vez, retribuía a gentileza. O local onde funcionava o Clube Operário atualmente é o Salão Paroquial.

 A camiseta da foliã Ana Cristina Corrêa

O último verso da parte superior da montagem fotográfica diz: “Esta cascuda do Breno / É de grande tradição / Viaja poucos metros / Logo perde a direção”. “Cascuda” refere-se a automóvel, é uma variante de “barata”, termo muito usado na época, em especial para os carros de corrida. Na mesma linha, “aranha” designava charretes de duas rodas.


Apresentação dos Relaxados em 1966

O jornal “O Garimpeiro” de 12/03/1966, na coluna “Carnaval ao Ar Livre”, assinada por Tony, publicou o 2º Quadro de “Santaninha”, apresentados pelos Relaxados na Praça Licínio Cardoso, durante os festejos daquele ano. Os versos de abertura e de encerramento são sempre os mesmos em todas as apresentações. Os assuntos tratados eram sátiras a alguns cidadãos e críticas aos problemas da cidade.

Santaninha do Faxinal,
Madrinha dos relaxados,
Auxiliai-nos a cantar,
Êstes sucessos rimados.

Que orquestra horrorosa
O Clube foi contratá
Só aturam todo o baile
Aquêles que estão gambá.

No cinema da cidade
Grande é a sensação
Paga-se entrada a vista
E se assiste a prestação.

Nossas ruas são calçadas
Cuidado não erre o pé
Pois podem submergir
Nos buracos da CEEE.

Do seu Queno em Pôrto Alegre
Um cheque já lhe roubaram
De nervoso anda dizendo
Desta vez me liquidaram.

Os Relaxas não morreram
Nem chegaram a passar mal
Entêrro de Rei é samba
Somos reis do Caarnaval.

Zeferino De Bastiani
Dos pãos duros é o campeão
Come radiche com água
Pra não gastar um tostão.

Cinco homens importantes,
Como já é de costume,
Brigaram com a Ibraína
Por causa de seu volume.

O Arnesto anda na terra
Não veio sasaricá
O baixinho é o papa
Dos crentes do saravá.

Seu Geni não é tatu,
Mas na toca ainda fuça,
Pra fazer as brincadeiras
Ele usa a carapuça.

Com Carlos de presidente
Nosso Clube está mudado,
Tem até mesa na porta
Para os bois serem cobrados.

Aqui terminam, senhores,
Êstes sucessos rimados;
Viva todos os presentes
E viva os Relaxados.

O Carnaval de 1968

A coluna “Foi, viu e comenta”, assinada por “O Coruja”, publicada no jornal O Garimpeiro, de 21/03/1968, assim comentou as festividades recém acabadas (a transcrição abaixo respeita a acentuação da época e as pontuações do texto original):

O Carnaval acabou; dele só restam cinzas.
Nossos churrascos, Radio Galocha, Quadros, fogos de artifício, também, se foram acompanhando as águas do grande rio da vida.
Nada mais temos a fazer, só recordar e esperar.
Nossas rainhas, nesta hora, Marias, terminaram seu reinado de glória e alegria.
Nossos palhaços, (cada um de nós) antes riam, encobertos pela fantasia e pelas pinturas que escondiam suas faces. Agora, não terão mais as palmas tão esperadas pelas suas brincadeiras e ficarão chorando, por não terem mais a quem fazer sorrir.
Nossas bruxas, deixaram seus castelos mal-assombrados e buscaram no salão o que sempre foi o seu desejo, a alegria.
Assim se me apresentou o Carnaval da minha terra, o já famoso Carnaval de Lavras do Sul.
Jovem e Velha Guarda divertiram-se juntos, mostrando mais uma vez que só pode divertir-se aquêle que for portador de alegria.
Muita gente, muito samba, um pouco de ié-ié-ié, tudo isto contribuiu pra maior brilhantismo do nosso Carnaval.
A música predominante, de maior sucesso, foi a do mesmo autor, preferida do ano passado, Zé Keti com seu Amor de Carnaval.
Os blocos, no afã de melhor apresentar seu Carnaval, também contribuíram para que esta festa fosse coroada de êxito.

O bloco mais antigo do Brasil

O bloco dos Relaxados é considerado o mais antigo do Brasil. Veja a matéria abaixo:



O maquinário

O jornal “O Garimpeiro” e depois o “Batovi” eram impressos no mesmo maquinário: umas antigas máquinas de linotipo, com composição manual. O tipógrafo montava as palavras letra por letra (tudo invertido: “casa”, por exemplo, era composta como “asac”) até completar a linha. Os tipos, cada letrinha, eram guardados em uma caixa com várias divisões de onde eram selecionados: letra “A” maiúscula em uma divisão, letra “a” minúscula em outra. Não era fácil, mas os profissionais adquiriam grande experiência e rapidez para executar a tarefa. Fotografias eram pouco utilizados porque mais difíceis: era necessário fazer a gravação em uma chapa (o clichê). Este maquinário original está preservado na Casa de Cultura José Neri da Silveira. Na foto abaixo, as máquinas do jornal aparecem juntas com os projetores do antigo cinema de Lavras, o Cine independência.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

EM CACHOEIRA DO SUL

Meu pai era funcionário do IBGE e durante muitos anos foi agente de estatística. A atividade obrigava a deslocamentos dento do Rio Grande do Sul. Em 1948 foi designado para trabalhar em Cachoeira do Sul. Seguiram-se novas indicações para outros municípios e em 1951 voltou para a cidade. Esta oportunidade propiciou o começo de meus estudos, no pré-primário, no Colégio Roque Gonzalez, dos padres maristas.


A entrada do Colégio Roque Gonzalez

O uniforme do colégio era, literalmente, uma farda:


Com os pais

Depois disto voltei para Lavras do Sul, passando a morar com os avós maternos. Meu pai continuou seus deslocamentos e, com a colaboração de minha mãe, iniciou um projeto de aumento da densidade demográfica do RGS. Vieram, então, meus irmãos: Ila Maria nasceu em Porto Alegre, Iara Maria em São Jerônimo, e Regina Berenice e Jorge Antônio em General Câmara.

A cigana

Em uma das férias, em General Câmara, uma cigana leu minha mão: “vai ser latifundiário”. Apesar de não saber direito o que seria latifundiário, a perspectiva não me entusiasmou. Imaginei até algo meio vago como fabricante de latas, porque tampouco ninguém me explicou. Queria mesmo era ser chofer de caminhão. Aliás, tenho lido vários depoimentos de quem também tinha esta expectativa. Não é difícil entender o por quê. Minha geração queria sair de casa o mais cedo possível e meter o pé na estrada. A possibilidade de ser chofer de caminhão representava um ideal de liberdade e a chance de conhecer novos lugares.


Quanto à cigana, fez o que dela se esperava, isto é, disse o que todo mundo queria ouvir, principalmente no RGS, onde a perspectiva de ser latifundiário seguramente era algo de desejo geral. Além disto, nenhuma vidente diz coisas terríveis, a sua remuneração depende de que o consulente fique com a esperança de que terá um futuro brilhante.

Por esta circunstância particular do trabalho de meu pai, já pequetitinho eu viajava sozinho de ônibus de um município para outro. Naqueles tempos bastava uma recomendação ao motorista e pronto. E viajava não só por terra. Quando a família estava estabelecida em General Câmara, e ele trabalhava em Triunfo, do outro lado do Rio Jacuí, volta e meia eu ia levar sua marmita, fazendo a travessia em lancha, o que em dia de borrasca não era exatamente uma coisa relaxante.

As corridas de carreteras

Em Cachoeira do Sul assisti a uma corrida de carreteras. As carreteras clássicas eram carros antigos depenados, geralmente Chevrolets, Fords, das décadas de 30 e 40, que tinham os motores originais trocados por outros mais fortes, preparados. Posteriormente, foram também utilizados carros nacionais, como os DKW-Vemags. As carreteras corriam em circuitos mistos de estradas e cidades, nestas últimas enfrentando com freqüência calçamentos de paralelepípedos. A modalidade teve sucesso em vários pontos do Brasil, com corridas em Rio de São Paulo. O Rio Grande do Sul forneceu a maioria dos grandes pilotos de carretera, chamados de volantes, como Breno Fornari, Catharino Andreatta, Orlando Menegaz e Aristitides Bertuol, quase todos de origem italiana. Eram veneradíssimos.

Uma corrida de carreteras

Nas cidades o público ficava à beira da pista. A segurança era nenhuma. Quando muito, uma cordinha para delimitar o espaço do público. Nestas ocasiões seguramente o Altíssimo colocava uma legião enorme de anjos da guarda em estado de alerta e fazendo horas-extras.

A carretera de Catharino Andreatta, restaurada:


Ponte do Fandango

A Barragem Ponte do Fandango, inaugurada em 1961, possui eclusa para elevar e baixar embarcações, permitindo sua passagem pelo Rio Jacuí. Meu pai gostava de contar uma historinha sobre ela. O Governador do Rio Grande do Sul foi a Cachoeira do Sul conhecer a obra, tendo sido recebido pelo Prefeito Municipal. O Prefeito, que não estava muito à vontade com a presença do Governador, ficou num mutismo completo. O Governador, para puxar assunto, resolve indagar sobre as possibilidades de pesca no rio. E pergunta: “Este rio é muito piscoso?” O Prefeito pensou um pouco e então respondeu: “Bem, quando chuvisca, ele pisca”.

Ponte do Fandango

A cidade

Cachoeira do Sul há muitos anos é considerada a Capital Nacional do Arroz. Produzido pelo sistema de irrigação. Meu pai gostava muito da cidade, onde tinha seus velhos amigos e companheiros de pescaria. Foi novamente designado para a agência de estatística de Cachoeira do Sul ao final dos anos 60. Lá permaneceu após sua aposentadoria e até terminar seus dias.

Catedral Nossa Senhora da Conceição

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

AS PRIMEIRAS LIÇÕES

Aos seis anos de idade meu avô ensinou-me a melhor maneira de degolar um paisano. Era de um tipo que se sentia meio inquieto em tempos de paz. Mesmo que não fosse de comportamento atrabiliário, quando seu olhar se perdia nas recordações dos tempos de revolução provavelmente deveria pensar mais ou menos como Don Segundo Menchaca, para quem não havia nada mais lindo do que "ir a disfrutar de la guerra, que es la mallor de las fiestas tradisionales para los bástagos de nuestro suelo natibo, ya que en ella se pueden carnear bacas gordas y montar cualisquier caballo ajeno sin que le bengan a uno con reclamaciones los dañificados, como acontece por desgrasia en épocas de paz" (Simplicio Bobadila, "Los partes de don Menchaca". 3ª ed., Montevidéu, Libreria Blund, 1965) Don Menchaca era um comissário de polícia analfabeto e seus relatórios escritos por Esmeraldo Zipitrias, escrivão que não primava muito pelo espanhol escorreito.

Pouco tempo depois, recebi lições de como usar uma espingarda com o Dr. Peri de Souza, um humanista. Não prosperei em nenhuma das atividades. Talvez tenha sido um erro. Poderia vir a ser, na melhor das hipóteses, uma personagem de literatura. Na pior, sabe Deus.

Em primeiro plano a casa do Dr. Peri nos anos 40. Do seu lado a antiga Casa Paroquial

O Dr. Peri era fazendeiro. Médico formado que nunca exerceu a profissão. Não sei as razões. Financeiramente não precisava. Em sua mansão da cidade mantinha uma imensa biblioteca de livros de medicina. Como meu avô, que morava em frente, cuidava da casa, eu tinha acesso. Morrendo de medo. Na sua escrivaninha de trabalho o enfeite era uma caveira. Uma coisa inocente, mas que me dava um pavor terrível. Mesmo não tendo exercido a profissão, conservava alguns dos seus elementos de liturgia. Aproveitava para dar uma olhada nos livros. Quase todos de medicina e afins. Ainda lembro de dois: um era um horror, tratava de coisas tipo feridas feíssimas, cancros, por aí; o outro, não menos ameno, tratava dos distúrbios psicológicos sofridos por freiras de convento, por conta de auto-repressão sexual. Cada coisa...

Ele era um anticlerical simpático. Aliás, o anticlericalismo não era tão raro assim entre intelectuais da época. Devia ter alguma cismazinha com as freiras. Um dos quadros da casa, provavelmente coisa da família, mostrava uma imagem de Nossa Senhora do Bom Parto com várias freirinhas em volta rezando. Dizia o Dr. Peri que as freirinhas rezavam para obter um bom parto. A casa era imensa, comprida, com inúmeros quartos e apenas um banheiro. As, digamos, necessidades noturnas eram atendidas por urinóis. O que era então muito comum. Nas paredes espalhavam-se também gravuras de Molina Campos, desenhista argentino que retratou de forma esplêndida o cotidiano dos gaúchos.

O Dr. Peri foi uma das minhas grandes admirações intelectuais. Mas tive poucas informações sobre sua vida. Solteirão até o fim, escreveu um livro de poesias “Da minha lavra”. Infelizmente não conheci o livro. Nem imagino o estilo, embora o mais provável era que fosse parnasiano, o padrão da época. Este livro teve sua edição custeada por ele mesmo, não vendeu nada e ficou encalhado. Era uma de suas frustrações. Do que trataria? Algum amor frustrado, assuntos épicos e históricos à la Konstantinos Kafávis, odes à terra natal? Nunca saberei. O que restou da coleção foi incinerado pelos atuais proprietários da mansão, donos de um colégio. Deve ser gente que gosta do “Farenheit 451”, do Ray Bradbury, que imaginou uma sociedade onde os bombeiros atuavam não para apagar fogo mas para incendiar livros de literatura. O papel entra em combustão quando a temperatura chega aos 451 graus da escala Farenheit.

Dr. Peri se afeitava com meu avô Antonio Fagundes, que era barbeiro. Sentado na cadeira, a calça ficava repuxada e aparecia por baixo uma ceroula, que ele usava em todas as estações. A ceroula, usada por cima da cueca, é uma roupa de baixo com pernas compridas. No Sul, normalmente feita de flanela. Para o inverno é um espetáculo, protege muito. Como o Dr. Peri usava ceroula mesmo no verão provavelmente tinha algum problema de regulação térmica do corpo. Foi encontrado morto, vitimado por um ataque cardíaco, no mesmo lajeado de sua fazenda onde me ensinava a dar tiros em latinhas vazias.