segunda-feira, 25 de outubro de 2010

INVENTÁRIO

Emanuel Medeiros Vieira

Em memória do professor Lauro Junkes, caro amigo e incansável estudioso da literatura catarinense

Aquela manhã posterior:
qual?
Não a verei – canto da cigarra matutina
morango na relva
grama orvalhada

O espelho me leva a outros espelhos,
a Morte à espreita, sorri na esquina
e diz que sabe esperar: “Tenho mais tempo.”
Olho-a e retruco: “Passou a hora de ter medo.”
Mas sentirei saudades de um certo mar,
de um arco- íris que um menino contemplou
numa ilha ao sul do efêmero.


Cumpri os rituais: afiei o lápis, contemplei a folha branca
(ah, pureza inatingível/impureza inaceitável).

Palavra arrancada da pedra: esta a memória que ficará.

No meio do café, Ela me olha de novo – fixamente.
Despisto, finjo que não a vejo, e sigo – é preciso
seguir.

Não, não verei meus olhos no momento derradeiro,
nem o novo dia sendo fundado.

As guerras que vivi?
Já não importam.

(Aquele que foi feixe de ossos e de emoções,
segue – pacificado – o rio.)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

EXÍLIO*

Emanuel Medeiros Vieira

Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.

Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.

Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.

*Poema premiado no Concurso Nacional de Poesias, cujo tema foi “O Mundo do Trabalho”, promovido pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná.